CNJ julga na terça juiz que ‘solta muito’ por decisões com ‘viés curiosamente garantista*

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) julga na próxima terça-feira, 1, o pedido de revisão disciplinar apresentado pelo juiz Roberto Luiz Corcioli Filho, que foi punido pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo por proferir decisões ‘com viés ideológico’ e por ‘soltar muito’.

A Corte paulista entendeu que as decisões do magistrado tinham viés ‘curiosamente vinculadas à ideia de garantismo’ e que a inclinação teria trazido insegurança para a população do município de Itapevi, na região metropolitana de São Paulo, onde o juiz atuava.

Os advogados do magistrado, Igor Sant’Anna Tamasauskas, Débora Cunha Rodrigues e Luísa Weichert, levaram o caso ao CNJ argumentando que o juiz teria sido punido exclusivamente por aplicar posições jurídicas minoritárias no Tribunal, ainda que respaldadas por jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF).

“Empreendeu-se no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo inaceitável perseguição ideológica contra um magistrado digno. Trata-se de estranho cenário”, diz um trecho do pedido de revisão. “Punir um Juiz por seu entendimento, além de obviamente ferir a independência funcional inerente à Judicatura, aniquila a noção consagrada em sede constitucional de que o Estado Democrático brasileiro se ergue sobre uma sociedade pluralista”, completam os advogados.

A defesa do magistrado diz que espera que o CNJ aplique o mesmo entendimento usado em 2017 no julgamento da desembargadora aposentada Kenarik Boujikian, também punida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo por soltar presos que já estavam cumprindo pena além do prazo estipulado nas sentenças. No julgamento em questão, o conselho anulou a condenação, absolvendo a desembargadora.

Juristas se manifestaram, alguns por meio de pareceres, em defesa de Roberto Luiz Corcioli Filho, entre eles Dalmo Dallari e o ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Celso Limongi.

“Fico espantado, com todas as vênias do Tribunal de Justiça, que amo intransitivamente, e por isso dói-me com mais intensidade, em ver que o juiz Roberto Luiz Corcioli Filho foi punido, em face de representação assinada por 23 promotores, acusando-o de conceder, com extrema liberalidade, a liberdade para presos”, diz o trecho de uma manifestação de apoio publicada por Limongi, que faleceu pouco depois, no portal jurídico Conjur na ocasião da condenação de Corcioli na Corte paulista.

O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) também divulgou nota em apoio ao magistrado. Na manifestação, a entidade acusa uma ‘criminalização da prática do garantismo penal no âmbito judicial’ e um ‘um precedente gravíssimo’ na decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo.

“Um magistrado foi condenado pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça paulista única e exclusivamente pelo conteúdo jurídico de suas decisões, conteúdo este que, conforme se pode apurar da leitura dos autos, reflete posições consagradas tanto na jurisprudência — especialmente nos Tribunais Superiores no Brasil — quanto em doutrina do mais alto relevo, não se tratando, portanto, de decisório temerário ou teratológico” alerta o instituto.

Em 2013, 0 Tribunal de Justiça de São Paulo chegou a afastar Corcioli da área criminal a pedido do Ministério Público. Para os promotores, ele era um juiz que soltava muito e prendia pouco. Nesse meio tempo, o magistrado ficou alocado nas áreas cível e de família, mas recorreu ao Conselho Nacional de Justiça que, no ano seguinte, determinou sua volta à vara criminal. Pouco tempo depois, em entrevista ao Estadão, Corcioli, que é ex-defensor público, resumiu sua conduta: “Não sou contra a punição, mas acho que ela deve se manter em parâmetros razoáveis”.

Na mesma decisão que anulou o afastamento do magistrado, o CNJ determinou que o Tribunal de Justiça de São Paulo criasse uma regulamentação para as designações de juízes. No entanto, Corte paulista recorreu ao Supremo Tribunal Federal e o ministro Ricardo Lewandowski concedeu liminar suspendendo a decisão do conselho.

COM A PALAVRA, O IBCCRIM

Diante do iminente julgamento de pedido revisional junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em razão de punição disciplinar sofrida pelo juiz Roberto Luiz Corcioli Filho, decorrente única e exclusivamente de sua atuação na esfera jurisdicional, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) vem manifestar sua extrema preocupação com o cerceamento da independência funcional de um magistrado e daquilo que se pode entender como a criminalização da prática do garantismo penal no âmbito judicial.

Conforme amplamente noticiado pela imprensa especializada, e também conforme notas divulgadas pelas mais diversas instituições e organizações ligadas ao sistema de justiça, a eventual reversão de tal censura aplicada ao juiz Roberto Corcioli é uma questão de suma importância para o Estado Democrático de Direito.

A perpetuação da referida punição disciplinar representará um precedente gravíssimo, na medida em que um magistrado foi condenado pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça paulista única e exclusivamente pelo conteúdo jurídico de suas decisões, conteúdo este que, conforme se pode apurar da leitura dos autos, reflete posições consagradas tanto na jurisprudência — especialmente nos Tribunais Superiores no Brasil — quanto em doutrina do mais alto relevo, não se tratando, portanto, de decisório temerário ou teratológico.

Nessa medida, pelos seus compromissos estatutários de “defender o respeito incondicional aos princípios, direitos e garantias fundamentais que estruturam a Constituição Federal”, bem como “defender os direitos das minorias e dos excluídos sociais, para permitir a todos os cidadãos o acesso pleno às garantias do Direito Penal e do Direito Processual Penal, de forma a conter o sistema punitivo dentro dos seus limites constitucionais” (art.4º, incisos I e III do Estatuto do Instituto), o IBCCRIM acredita que o CNJ reverterá a referida condenação evitando-se, portanto, a criação de um precedente inédito no mais alto grau de controle da atividade judicial, o qual representará um retrocesso imenso na garantia dos direitos humanos fundamentais e na independência dos magistrados.

Tal garantia não é dos próprios juízes, mas de todos os cidadãos e cidadãs que podem, com ela, ter a esperança de serem julgados por juízes que não se sintam pressionados a seguirem tal ou qual linha de atuação em razão das bandeiras e sinalizações de seus próprios tribunais.


  Artigo publicado originalmente no site Estadão no dia 25 de novembro de 2020.