Por Luiz Alberto de Vargas
Desembargador do TRT4 e membro da AJD
“O chamado paradoxo da liberdade é o argumento de que a liberdade, no sentido da ausência de qualquer controle restritivo, deve levar à maior restrição, pois torna os violentos livres para escravizarem os fracos” (Karl Popper)
A famosa polêmica entre Hans Kelsen e Carl Schmidt tinha como centro do debate justamente o papel de um Corte Constitucional no Estado de Direito. Baseado no que se chamou, de forma condescendente como uma “concepção sociológica da Constituição”, o discípulo de Kelsen (que terminou por trair o mestre, para quem não restou outro caminho que o exílio para fugir da perseguição nazista), Carl Schmidt, entendia que a Constituição apenas expressava uma decisão política fundamental do povo em determinado momento histórico, sendo o seu mais legítimo intérprete o Chefe da Nação. Nessa visão claramente antiliberal, não havia espaço para Parlamento livre, nem juízes independentes.
Por maiores críticas que possamos ter para o Judiciário (e, provavelmente, também muitos democratas alemãs não compartilhassem as mesmas ideias de Kelsen sobre as excelências de um controle de constitucionalidade concentrado como peça-chave do modelo institucional alemão), uma crônica desconfiança da legitimidade democrática do Judiciário e as acérrimas críticas ao elitismo dos juízes alemães (algo que, hoje, cem anos depois, parece se repetir, no Brasil, com um peculiar tom farsesco), não serviram à época para outra coisa que não minar as bases da incipiente República alemã e abrir caminho para o nazismo. Mesmo parte da esquerda, à época, vacilava em defender a “burguesia” no comando da República de Weimar e se punha ao lado das críticas “populares” ao Judiciário, sustentando que estes não passavam de funcionários públicos que melhor desempenhariam suas funções se estivessem sob controle do “povo” (e, claro, do seu “Chefe”). Tais críticas, independentemente de seu conteúdo, terminaram por ajudar a legitimar a transformação da Justiça liberal e soberana da República de Weimar em um instrumento de opressão e de afirmação do poder nazista que, a partir de 1934, iniciou seu domínio completo do aparelho de Estado por uma “limpeza” de juízes judeus e comunistas.
Ao se rever esse período histórico, parece claro que foi a omissão POLÍTICA de parte da esquerda alemã (ao não compor com os socialistas moderados, abrindo espaço para a chegada do partido nazista ao poder) um erro particularmente grave: o de não perceber que, em determinados momentos históricos, transigir com parte de determinando ideário programático em prol de uma composição política que viabilize o avanço (ou, no caso, inviabilize o retrocesso). Da mesma forma, não determinar claramente quais os momentos ou formas adequadas para reafirmar críticas ou repetir conceitos, deixando de perceber quais os efeitos políticos concretos que essas críticas causam, é mais que uma ingenuidade política: é uma irresponsabilidade histórica.
Nesse grave momento nacional, em que a cadela do fascismo não apenas está solta – mas arreganha seus dentes -, a única crítica que faço ao Supremo Tribunal Federal é porque demorou tanto tempo para, afinal, em todos nós, democratas, reagir à altura contra graves ameaças ao Estado Democrático de Direito.
Aplaudo, como brasileiro e patriota, comovido e agradecido, ao Supremo Tribunal Federal e, se em tese, posso ter alguma crítica a respeito da forma e conteúdo dessa reação, deixo as críticas teóricas para momento político diverso, em tempos em que a democracia não esteja ameaçada; em que juristas “notórios” não estejam a propor “intervenção constitucional” e contumazes golpistas não tentem utilizar as regras democráticas justamente para liquidar a democracia. Se houve algum excesso na legítima defesa que o Supremo faz do Estado Democrático do Direito, haveremos de analisar melhor e de forma mais aprofundada em tempos de paz. Não se trata de exaltar o punitivismo, mas de não defender a impunidade a pretexto de abolicionismo penal
Para obter a paz, é preciso lutar por ela!