Por Claudia Maria Dadico,
Doutora em Ciências Criminais (PUC-RS), juíza federal em Santa Catarina, filiada à AJD
José Carlos Garcia
Doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional (PUC-Rio), juiz federal no Rio de Janeiro, filiado à AJD
O debate em torno da prisão do Deputado Federal Daniel Silveira tem suscitado uma série de questionamentos por parte da comunidade jurídica e do público em geral, desde a efetiva configuração do estado de flagrância para a decretação da prisão cautelar, a configuração das condutas como eventuais crimes permanentes, a eficácia de medidas cautelares ao caso concreto, e a própria possibilidade de atuação “de ofício” por parte do julgador, no bojo de um inquérito etc. Todas essas questões mostram-se extremamente relevantes, no marco do devido processo legal.
Todavia, de todas as questões suscitadas pelo fato, a mais fundamental e dramática diz respeito aos limites à liberdade de expressão que, desta vez, foram dados pelo Supremo Tribunal Federal com recurso aos dispositivos da Lei de Segurança Nacional.
Não se ignora que a vigente de Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983) teve como antecedentes históricos o clima político instável do primeiro Governo Vargas, com a cassação da Associação Nacional Libertadora (ALN) e a repressão à denominada “Intentona Comunista” em 1935. Nesse contexto, emergiu o Tribunal de Segurança Nacional e a primeira lei de segurança nacional cujo objetivo consistia, basicamente, em submeter os acusados de ofensas à segurança nacional e a um processo especial, esvaziado de garantias. Historicamente, as sucessivas leis de segurança nacional repercutiram os temores resultantes da Guerra Fria e serviram como instrumento de perseguição aos movimentos sindicais e repressão às organizações de trabalhadores e todos aqueles que se enquadrassem no temível rótulo de “comunistas”.
Daí ser compreensível a preocupação por parte de setores da comunidade jurídica com o enquadramento das condutas do Deputado Federal Daniel Silveira nos ditames da Lei de Segurança Nacional que, a essa altura da história constitucional brasileira, já deveria ter sido substituída por outra lei, inspirada em outra concepção, tal como se colhe do projeto de lei da lavra do Deputado Federal Paulo Teixeira, que propõe a edição de uma lei de proteção ao Estado Democrático de Direito.
Ocorre que, antes de se falar em ofensas ao devido processo legal e a possíveis conflitos com as garantias do acusado, há uma questão que se coloca como prejudicial a todas as demais: a defesa das garantias do devido processo legal somente podem ser concebidas e exigidas num ambiente democrático, em que as instituições estejam em regular funcionamento.
Na linha defendida por Paulo Bonavides, para que se possa cogitar de garantias constitucionais é preciso, antes de tudo, que estejam em pleno vigor garantias institucionais, quais sejam, a separação e o funcionamento equânime e harmônico dos Poderes da República, a periodicidade das eleições, a autonomia dos entes federados.
Como exigir o respeito às garantias do acusado no processo diante de um poder judiciário de portas fechadas? A quem apelar?
Chega-se àquilo que, de certa forma, já se tornou um lugar comum nas discussões sobre os limites da liberdade de expressão que é o paradoxo de Popper: até que ponto a democracia deve assegurar a liberdade de expressão quando essa liberdade é utilizada para destruir a própria democracia?
A história fornece a resposta.
O caso da Alemanha, país que viu florescer e vicejar a erva daninha do nacional-socialismo em seu jardim democrático, colhendo como frutos podres todas as barbáries que se seguiram, é paradigmático. A ausência de limites aos detratores da democracia favoreceu não apenas seu próprio extermínio, mas igualmente o extermínio de mais de 6 milhões de seres humanos, nos campos de concentração engendrados por poderes milicianos, sob os auspícios da “banalidade do mal”.
Após o término da Segunda Guerra Mundial, com a restauração do regime democrático alemão, seu Tribunal Constitucional passou a produzir copiosa jurisprudência de defesa da democracia, fenômeno nomeado pela teoria constitucional como “militância democrática”, assim descrita por Daniel Sarmento:
A ideia de democracia militante envolve a noção de que o Estado deve defender a democracia dos seus “inimigos”, que não aceitam as regras do jogo democrático e pretendem subvertê-las. Neste sentido, a Lei Fundamental alemã vedou a criação de associações “dirigidas contra a ordem constitucional ou contra a ideia de entendimento entre os povos” (art. 9º), previu a possibilidade de decretação de privação dos direitos fundamentais, pela Corte Constitucional, para aquele que abusar das liberdades constitucionais visando a “combater a ordem constitucional liberal e democrática” (art. 18), e proibiu os partidos políticos que, pelos seus objetivos declarados, ou pelo comportamento dos seus filiados, proponham-se a atingir ou eliminar “a ordem constitucional liberal e democrática ou por em risco a existência da República Federal da Alemanha” (art. 21). Na década de 50, a Corte Constitucional alemã chegou a declarar a inconstitucionalidade do Partido Socialista do Reich (SRP), pelas suas tendências neonazistas, e – em decisão muito mais polêmica e controversa, adotada no auge da Guerra Fria –, também a do Partido Comunista Alemão (KPD), porque entendeu que este tinha como “fixo propósito combater constante e resolutamente a ordem constitucional livre e democrática”, e que manifestava concretamente esta sua intenção através da sua “ação política, dirigida por um plano predefinido”.
No Brasil de 2021, os discursos de incitação à violência contra o Supremo Tribunal Federal, à reedição do AI-5, ao próprio fechamento daquela Corte suplantam, em muito, meras ofensas às honras de Ministros do Supremo Tribunal Federal, ainda que estas se constituam bens jurídicos dignos de 2 tutela jurídica. Trata-se de defender garantias institucionais que buscam preservar o próprio funcionamento do Estado Democrático de Direito.
As expressivas votações ocorridas nos Plenários do Supremo Tribunal Federal (11 X 0) e da Câmara dos Deputados pela manutenção da prisão do Deputado Silveira (364 X 130, com 03 abstenções) demonstram que nem mesmo a imunidade parlamentar pode servir de licença para a incitação à prática de atos antidemocráticos. A contundência do relatório da deputada Magda Mofatto, particularmente, contrasta com interpretações liberais naïves e anódinas, baseadas em truísmos conceituais e incapazes de compreender a gravidade dos ataques à democracia e dos riscos efetivos de fascismo que estamos vivendo. Nesse sentido, STF e Câmara dos Deputados alinham o Brasil aos parâmetros internacionais de proteção à democracia e contra a disseminação de discursos de ódio, dos quais cabe destacar a Resolução nº 15/2006 da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância, cujo texto recomenda que imunidades políticas não sejam invocadas para a produção de discursos que caminham na contramão da democracia e da diversidade.
Por isso nos parece tão incompreensível que pessoas que se consideram progressistas se posicionem no sentido de criticar a atuação do Supremo Tribunal Federal no caso do Deputado Silveira, agora referendada pelo Plenário da Câmara dos Deputados.
Parece-nos uma miopia histórica terrível fingir-se que se está em um momento de funcionamento normal das instituições quando o fascismo bate às portas, repetindo-se os erros do passado – agarrar-se a formalidades da Constituição de Weimar enquanto ocorre a Noite dos Cristais. É para evitar esse tipo de ingenuidade liberal que a própria Constituição, assim como a quase totalidade das Constituições dos países democráticos, prevê mecanismos para sua defesa.
Pretender que não se esteja em um momento de particular tensão institucional é um equivalente liberal e individualista a achar que um empregado poderia negar-se à vacinação anti-Covid19 por exercício de sua liberdade de escolha, violando o direito dos demais trabalhadores a um ambiente de trabalho sanitariamente seguro, o que é mesmo obrigação do empregador. Ambas as posições padecem do vício original de ler a Constituição sem os olhos do sentido de comunidade que deve envolver assim a luta democrática como o combate ao negacionismo anticientífico em meio a uma pandemia global sem precedentes.
Se o decreto de prisão teve como fundamento os dispositivos da Lei de Segurança Nacional, talvez essa seja uma excelente oportunidade para que o Supremo Tribunal Federal possa debruçar-se sobre a questão de sua recepção pela Constituição de 1988 e mesmo para que o Congresso Nacional possa aprovar sua substituição pela Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito.
Para que isso seja possível, todavia, é preciso que a democracia e suas instituições estejam em funcionamento. A fragilização das instituições democráticas, nessa quadra histórica, somente alimenta a escalada fascista, o crescimento de suas ameaças e a ampliação de suas oportunidades históricas de sucesso.
Jacques Ranciére alerta que a democracia, diante dos avanços do poder econômico, está “entregue apenas à constância de seus atos”. Sua defesa exige atitudes eficazes e não mera retórica. Se mais alemães houvessem denunciado e se posicionado de forma corajosa contra as atrocidades do partido nacional-socialista, a história poderia ter sido diferente, em uma época de fracasso coletivo da humanidade. Não será com ingenuidades liberais e ausência de militância constitucional que a Democracia poderá ser eficazmente defendida.