Decretos Governamentais e Decisões Judiciais – Combate ao Coronavírus

O presente texto tem por objetivo prestar algumas informações importantes à coletividade, em especial neste momento de profunda angústia. É corrente a edição de decretos dos poderes executivo municipal e estadual, e que muitas vezes acabam esbarrando em decisões judiciais que limitam ou suspendem seus efeitos. Sobre isso, em especial com relação às decisões mais recentes quanto aos decretos do Prefeito de Porto Alegre e do Governador do Rio Grande do Sul, sobre o coronavírus, que tratará este ensaio.

Inicialmente é importante deixar claro que as decisões judiciais, notadamente as mais recentes, tiveram por norte fatos concretos com relação à lotação de hospitais, em especial em Porto Alegre, com filas de espera de mais de 200 pacientes, cidade esta epicentro nacional da pandemia do coronavírus neste final de março de 2021.

Estas sentenças têm sido devida e coerentemente fundamentadas nas normas de proteção fundamental à vida e à saúde da população, considerando a alta contaminação e a escassez de informações quanto às consequências futuras dos recuperados. E em nenhum momento deixaram de observar o que diz a Constituição federal e as leis do país, estando, portanto, embasadas na vontade popular, fruto do processo comunicativo de formação democrática da norma.

É interessante, dentro deste tema, esclarecer, já que há críticas a respeito, em especial de intervenção de um poder sobre outro, quanto às divisões de competências constitucionais e acesso ao Poder Judiciário.

Consta do capítulo II da Constituição federal, artigos 22 a 24 o que compete a cada ente federado. É da competência da União legislar sobre o direito civil, água, questões monetárias, desapropriação, entre outros, competência esta privativa mas que pode ser delegada, por lei complementar, aos Estados. A competência é comum, União, Estados, Distrito Federal e Municípios, artigo 23 da Constituição, para zelar pela guarda da Constituição, cuidar da saúde e assistência pública, proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação, preservar o meio ambiente, e tantos outros. Concorrentemente compete à União, Estados e Distrito Federal, artigo 24 da Constituição federal, legislar sobre direito tributário, financeiro, juntas comerciais, produção e consumo, educação, cultura, ensino e desporto e outros. Ainda, pelo artigo 25, são reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas pela Constituição federal, e aos Municípios, artigo 30, I, da Constituição legislar, entre outros, sobre interesse local.

Feitos estes esclarecimentos, somados à decisão do STF, ADI 6.341, é perfeitamente possível haja normativo municipal e/ou estadual sobre o tema coronavírus. Aliás, no momento presente, onde o negacionismo e a imprevidência do comando central estão levando a uma catástrofe, é muito importante que Prefeitos e Governadores tomem a frente no combate a este flagelo, que já levou mais trezentas mil vidas e do qual não se sabe, ao certo, os efeitos futuros sobre a saúde dos recuperados.

Contudo, o que deve pautar a análise, além do dito supra, possibilidade de haver decretos municipais e/ou estaduais, é que nenhuma lesão ou ameaça de direito ficará excluída da apreciação do Poder Judiciário. Esta norma, fixada no artigo 5º, XXXV, da Constituição federal, de direito fundamental de primeira geração, protegida, inclusive, da ação do poder constituinte derivado, traz ao Poder Judiciário do dever de, uma vez provocado, atuar por meio de fundamentação com racionalidade jurídica e ética que garanta a autonomia e força normativa do direito, em especial da própria Constituição federal e as leis.  E isso não significa que há uma ditadura do Poder Judiciário, pois que decisões no campo da saúde tem ocorrido de forma frequente nos últimos anos.

E isso deve ocorrer e ocorre porque os magistrados atuam nos limites que a Constituição estabelece, a partir das leis aprovadas pelos órgãos competentes. Não sofrem pressões eleitorais ou econômicas a fim de que tomem decisões. E é por esta razão que em havendo decretos e normativos que desrespeitem a Constituição, cabe aos juízes torna-los sem efeito ou suspender temporariamente sua aplicação até que haja maiores informações e dados a respeito. E este dever do magistrado consta dos artigos 1º, III, dignidade da pessoa humana, 5º, caput, proteção à vida, 6º, proteção à saúde, todos da Constituição federal, além do artigo 196 do mesmo diploma, que preceitua a saúde como direito de todos e dever do Estado, cabendo a este agir para a redução dos riscos de doenças.

Ou seja, os juízes, como membros do Poder Judiciário, agem após provocação e nos limites estritos da Constituição. Não agir em situações como as que se apresentam é deixar de prestar jurisdição e ignorar um rol exaustivos de normas jurídicas que demandam a promoção da saúde e a redução dos riscos de doenças e que determinam o primado da vida e dignidade humana.

E ainda que assim não fosse, argumentativamente falando, em uma análise apenas econômica, com o crescente número de mortes haverá redução do mercado consumidor. Outro dado importante é que uma pessoa saudável, de regra, consome mais que uma doente. Não se sabe ao certo os efeitos do coronavírus sobre os recuperados. Sequelas, sobrevida, novos tratamentos, recuperação plena ou não, o que, no mundo real, considerando o número de contaminados e recuperados, pode colocar em risco também o movimento da máquina econômica, em especial em tempos ultraliberais e rentistas.

Antes de encerrar, é saudável lembrar que a ordem econômica tem por fim assegurar o bem de todos e a existência digna, artigo 170, caput, da Constituição federal. Isso quer dizer que antes da análise meramente econômica dos fatos e situações postas é dever do intérprete e, portanto, do juiz, centrar-se sobre a vida boa e resguardo da saúde. Não há, por este dispositivo, movimento econômico que justifique a mitigação do primado da vida e da saúde. E cabe aos agentes públicos zelarem por isso e agir de forma a garantir vida digna a toda a coletividade.

Ficam estas considerações para reflexões conscientes!


 * Juíza de Direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD

** Juiz do trabalho e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD.