Carandiru das Mulheres

KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE, HEIDI CERNEKA e MICHAEL NOLAN

No último dia 5/12, Iolanda Figueiral, 79, ex-bóia-fria, doente terminal de câncer, foi condenada por tráfico de drogas a quatro anos de prisão em regime integralmente fechado.
O caso nos faz refletir sobre duas questões que muito nos mostram sobre o crime e a aplicação do direito penal. A primeira delas refere-se à Lei de Crimes Hediondos. A segunda, quase invisível na imprensa, diz respeito ao crime e às relações de gênero.

Segundo Florizelle O´Connor, em trabalho apresentado à ONU, que recomenda aos Estados maior atenção à realidade das presas, é preciso rever os conceitos de delito, castigo e justiça. Tais vocábulos figuram nas páginas dos jornais em poucas situações. Na maioria das vezes, observa-se a predileção por apresentar a mulher encarcerada de forma pictórica.
Raras são as exceções, como as reportagens de Gilmar Penteado, desta Folha de S.Paulo, nas quais mulheres presas saem como fantasmas de suas celas para sussurrar os segredos e as dores que escondem a prisão feminina. Poucos as conhecem. São as Marias Aparecidas, acusadas de furtar xampus, as Suelis, acusadas de furtar biscoito e queijo, e as donas Iolandas, presas em razão da Lei de Tóxicos.
A força totalitária, de lei e ordem, que domina a Justiça penal, excluem-nas da nossa história sem medir esforços. Exclusão nascida na sociedade patriarcal, que hierarquiza as relações entre homens e mulheres, constrói desigualdades e reprime condutas. Precede o ingresso na prisão, permanece na sua estada e se pereniza depois da liberdade, retratando em cores acentuadas as desigualdades do espaço livre.
Pesquisas revelam que as presas por tráfico não ocupam papéis de liderança e desempenham funções de maior risco. A estratificação social das mulheres, obtida pela ocupação, trabalho, escolaridade e chefia de família, evidencia sua posição abaixo da base. O tráfico é, assim, uma fonte de renda e de inserção no mercado de trabalho. Levantamento da Pastoral Carcerária indica que 50,2% das mulheres presas em Dacar 4 (Cadeia Pública de Pinheiros) estavam detidas por tráfico de drogas, e quase 20%, por furto, estelionato e receptação.
De acordo com a Funap, órgão da administração paulista, 73% das presas são sozinhas; 67% viviam com os filhos; 19% dos seus companheiros assumem a guarda dos filhos (87% das companheiras dos presos assumem essa função); 18% recebem visitas dos companheiros (65% dos homens são visitados pelas mulheres). Porém, elas são mais visitadas pelos filhos, e 58% incluem a família no recebimento de seus ganhos, taxa que cai para 37% em relação aos presos.
Há um déficit de vagas, e as políticas destinadas à população carcerária assumem uma atitude discriminatória. Nos últimos anos, foram construídos inúmeros estabelecimentos prisionais masculinos, mas poucos femininos. Na maioria das vezes, os presídios femininos são reformas de antigas prisões, consideradas inadequadas para homens ou adolescentes. No Dacar 4, o mesmo levantamento da Pastoral aponta que havia 1.261 presas num espaço com capacidade para 512.
Ao tratar essa questão, na contramão das recomendações, que indicam que se deve cumprir a pena em estabelecimentos pequenos e próximos à família, foi inaugurada, neste mês, a penitenciária de Sant´Ana, com 2.400 vagas. Tudo indica que teremos o "Carandiru das Mulheres", e é bom não olvidar o que houve na Casa de Detenção (3.500 vagas).
A maior parte delas cumpre a pena em local inadequado, nos quais direitos, como saúde, educação, trabalho, acompanhamento de equipe técnica, local adequado para receber visitas e visita íntima e Defensoria Pública, são sistematicamente violados. Recebem o mesmo tratamento dos homens, inclusive usando uniformes iguais, em uma clara demonstração de que, ao ser presa, a primeira regra a ser aprendida é: "Esqueça sua condição de mulher".
Na área da saúde, a situação não é diferente. A campanha de vacinação contra a gripe para idosos, realizada em 2005, não contemplou as presas, das quais cerca de 3% têm idade superior a 55 anos. O mutirão de exame de mamografia para a prevenção do câncer de mama, a maior causa de morte feminina, realizado em São Paulo, também não chegou às cadeias femininas.
O Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas, fórum de entidades que atua na defesa dos direitos das mulheres presas, solicitou que todas as mulheres fossem incluídas no mutirão, e as idosas, vacinadas. Os secretários responsáveis não responderam.
Conceitos novos da relação entre crime e castigo são imprescindíveis para a Justiça. Ansiamos que o Supremo Tribunal Federal reformule o paradigma de constitucionalidade em relação à progressividade dos crimes hediondos no julgamento do habeas corpus 82.959, previsto para este mês, e que o Poder Executivo, ao editar o próximo decreto de indulto, contemple situações que sempre são excluídas, como a dos crimes previstos nessa lei.
O Estado precisa assumir uma atitude que considere as diferenças, e a prisão deve se destinar apenas àqueles que representam perigo real para a sociedade.

Kenarik Boujikian Felippe, 45, juíza, é diretora da Associação Juízes para a Democracia.
Heidi Cerneka, 40, mestre em teologia, é missionária da Pastoral Carcerária.
Michael Nolan, 64, advogada, é coordenadora do ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania).
Todas fazem parte do Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas.

[artigo publicado no Jornal “Folha de S. Paulo”, 14/12/05]