Nepotismo

Douglas de Melo Martins

Processo n.º 573/2006
Ação Civil Pública
Autor: Ministério Público Estadual
Réu: Lenoílson Passos da Silva


Vistos etc,

Trata-se de Ação Civil Pública, com pedido liminar de obrigação de fazer, interposta pelo ministério público em desfavor de Lenoílson Passos da Silva com o fim de promover a demissão de todos os parentes, até o terceiro grau, dele próprio, da vice-prefeita, dos secretários municipais e dos vereadores que estejam ocupando cargos de confiança ou que tenham contratos com o Município ou Câmara Municipal.

A exordial veio comboiada de inúmeros documentos que servem para escorar as alegações ministeriais.

A prática do nepotismo marca profundamente a administração pública no Brasil. De forma expressa ou tácita, os três poderes da república, em todas as suas esferas, sempre mantiveram um pacto de silêncio, de não agressão, quando o assunto era a contratação de parentes para os numerosos e bem pagos cargos de confiança da administração.
Essa prática nefasta causou uma distorção absurda na administração pública brasileira. Só para se ter uma ideia, segundo o editorial “A praga do nepotismo” publicado na edição de 04 do mês corrente do jornal “O Estado de S.Paulo”, citando o repórter Gabriel Manzano Filho, “existem mais de 524 mil cargos de confiança ou em comissão no Brasil (de livre nomeação). O executivo federal tem 19 mil cargos desse tipo, com salários que variam entre R$ 3,6 mil e R$ 9,8 mil. Ao todo, são 70 mil cargos na União, 104 mil nos Estados e 350 mil nos municípios. São neles que encontram abrigo esposas, irmãos, pais, filhos, tios, cunhados e primos de quem tem poder de nomear...” “Para efeitos comparativos, o Executivo federal dos Estados Unidos tem só 3,5 mil cargos de confiança. Na França, o presidente e o primeiro-ministro contam com apenas 500 postos de livre indicação e, no Parlamento desse país, até os assessores técnico-legislativos têm de passar por concurso”.

Naturalmente, esta distorção absurda, está relacionada com o “ouvido de mercador” dos governantes plantonistas, mesmo com todos os reclames dos princípios da moralidade e impessoalidade, consagrados na Constituição Federal.
Não é sem resistência que o nepotismo impera. Em 2000, faltaram 22 votos na Câmara para aprovar a emenda constitucional que proibia a contratação de parentes. Diante da força daqueles que insistem na manutenção da imoralidade surgem propostas intermediárias, como a do senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR) que, na contramão da onda moralizadora, defende a criação de cotas de até 10% para que o parlamentar ou o funcionário do Executivo contrate um parente.

Em Chavantes-SP, a Câmara conseguiu derrubar o veto do prefeito Luiz Severino (PP) que não concordava com a lei municipal aprovada neste ano que proíbe a contratação de parentes de políticos até o terceiro grau. Um dos argumentos contrários era que a medida poderia provocar a demissão de pelo menos 24 assessores com cargo de comissão. A votação para apreciar o veto foi apertada: 5 a 4. O prefeito ameaçou recorrer ao Poder Judiciário para suspender a lei.

Essa disputa entre os que querem dar efetividade aos preceitos constitucionais e os que querem manter os privilégios familiares não tem trégua. Os defensores da extirpação dessa prática da administração pública ganharam força decisiva com a Resolução nº 7/2005 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que vedou a contratação de parentes de magistrados, até o terceiro grau, para cargos de chefia, direção e assessoramento no Poder Judiciário.
A resolução do conselho causou reação feroz em quase todos os rincões do Brasil. Para pacificar a questão e conter as diversas liminares concedidas por diversos tribunais favoráveis à permanência dos parentes em cargos de confiança a AMB pediu ao Supremo que confirmasse a constitucionalidade da resolução do CNJ. O STF acolheu o pleito e declarou a constitucionalidade da resolução, com efeitos vinculantes para todos os órgãos do Poder Judiciário.
O ministro Carlos Ayres Britto, relator da ação declaratória de constitucionalidade, destacou que, em respeito aos princípios da moralidade, da eficiência, da impessoalidade e da igualdade “deve-se tomar posse nos cargos, e não dos cargos”. O ministro Eros Grau seguiu o voto do relator e afirmou que “o rompimento das relações de trabalho dos nomeados para cargos de confiança no Poder Judiciário, dentro das regras estabelecidas na resolução do CNJ, atenderá às imposições da moralidade e da impessoalidade administrativas.” De acordo com ministro Joaquim Barbosa, “a legitimidade da resolução é inquestionável, pois estabelece regras que buscam dar efetividade aos princípios da moralidade e da impessoalidade administrativas.” É também dele a afirmação de que “a resolução obedece plenamente os princípios da igualdade e da moralidade.” O ministro Cezar Peluso classificou o nepotismo como uma prática perniciosa ao interesse público e salientou que a questão deve ser tratada sob o princípio constitucional da impessoalidade. Esse princípio, segundo o ministro “está ligado à idéia da eficiência da administração pública e atua, sobretudo, como uma limitação ao exercício do poder discricionário de nomear funcionários em cargos em confiança”. O ministro Celso de Mello, por sua vez, esclareceu que o CNJ definiu, ao editar a Resolução, normas destinadas a impedir a formação de grupos familiares visando a patrimonialização do poder governamental. Ele acrescentou que a Resolução justifica-se plenamente em função da necessidade fundamentada na essencial distribuição que se impõe entre o espaço público e o privado. Seguindo esta mesma linha de raciocínio votaram os ministros Gilmar Mendes, Sepúlveda Pertence, Nelson Jobim e Ellen Gracie.

O único voto dissonante foi do ministro Marco Aurélio que votou pelo indeferimento da liminar na ADC sem, entretanto, defender a prática do nepotismo, mas questionando, tão somente, o poder normativo do CNJ.
Vê-se, pois, que com pequenas diferenças de ênfase, todos os ministros do Supremo Tribunal Federal concordam que as nomeações de parentes, até o terceiro grau, para o exercício de cargos de chefia, direção e assessoramento ferem os princípios da moralidade, impessoalidade, eficiência, e igualdade; sendo os dois primeiros citados por quase todos.
Pois bem, o que se questiona agora, em vários espaços de discussão, é se esses princípios constitucionais aplicados ao Poder Judiciário têm o mesmo efeito em relação aos demais poderes (executivo e legislativo). O vice-presidente de Interiorização da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Mozart Valadares entende que os princípios da Administração Pública devem ser aplicados em todos os Poderes e que, se a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) foi baseada nos princípios constitucionais, não pode ser aplicado única e exclusivamente ao Judiciário. Ainda segundo posição da AMB, caso os “chefes” dos Poderes Legislativo e Executivo não promovam espontaneamente a exoneração de seus parentes dos cargos de confiança devem ser processados por improbidade administrativa.
O raciocínio é simples, os princípios constitucionais da moralidade, impessoalidade, igualdade e eficiência que regem o Poder Judiciário e que foram corretamente interpretados pelo Conselho Nacional de Justiça quando da edição da Resolução 07/2005 vedando a contratação de parentes de magistrados, até o terceiro grau, para cargos de chefia, direção e assessoramento no Poder Judiciário, também são aplicáveis aos Poderes Executivo e Legislativo. Absolutamente descabida é a espera de promulgação de Emenda Constitucional para vedar expressamente as nomeações de parentes no Executivo e Legislativo, mormente depois do Supremo Tribunal Federal pacificar a questão ao declarar a constitucionalidade da Resolução.

O esforço para regular a matéria por meio de emenda constitucional ou através de lei é bem vindo, mas desnecessário, na medida em que já se encontra implicitamente proibida a nomeação de parentes pela interpretação simples dos preceitos constitucionais. A discussão nos órgãos legislativos, da forma como tem sido posta, passa a impressão de que o legislador ordinário tem liberdade, inclusive, para permitir o nepotismo, o que me parece incongruente com o entendimento do Supremo Tribunal Federal. Toda essa discussão sobre permitir o nepotismo por meio de lei ou emenda constitucional é inócua, na medida em que o STF firmou entendimento de que essa prática fere os princípios constitucionais já citados anteriormente.
A verdade é que todos os gestores do Brasil, em todos os poderes e em todas as esferas da administração pública, têm conhecimento da decisão do Supremo Tribunal e, naturalmente, já deveriam ter promovido a demissão de seus parentes dos cargos de chefia, direção e assessoramento.


O PEDIDO LIMINAR

O indício do direito (fumus boni iuris) ficou devidamente demonstrado através da extensa avaliação sobre a aplicabilidade dos princípios constitucionais da moralidade, impessoalidade, eficiência e igualdade.
O perigo da demora (periculum in mora) é evidenciado em face da possibilidade de desvio de recursos públicos para pagamento de pessoas que lograram acesso ao serviço público por meio ilegal.

A demora na prestação jurisdicional muitas vezes invalida toda eficácia prática da tutela e quase sempre representa uma grave injustiça para quem depende da manifestação judicial. A liminar designa provimento judicial emitido in limine litis, isto é, no momento mesmo em que o processo se inicia. É, pois, a proximidade do risco de lesão grave e de difícil reparação que justifica a medida liminar.

O poder geral de cautela diz respeito à eficácia plena da tutela jurisdicional, situando-se, por isso mesmo, no nível das garantias fundamentais de acesso à Justiça e à segurança jurídica.

Recusar, em certos casos, a concessão de liminar significa risco de inutilização da própria tutela jurisdicional. É a própria denegação da Justiça, o que se revela inaceitável para o sistema das garantias fundamentais asseguradas pela Carta Republicana.

Nestas condições, acolho o pedido para:
1º - determinar que requerido (prefeito municipal de Pedreiras) promova a exoneração, no prazo de 05 dias, de todos os parentes, até o terceiro grau, dele próprio, da vice-prefeita, dos secretários municipais e de todos os vereadores do município de Pedreiras e se abstenha de realizar outras nomeações de pessoas que se enquadrem na situação supra, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00 (mil reais), nos termos do art. 12 da Lei 7.347/85.
2º - determinar que o requerido apresente, em igual prazo, a relação de servidores municipais que se enquadrem na situação do item anterior, além dos respectivos atos de exoneração;
Cite-se o requerido para, querendo, contestar a ação, no prazo de quinze dias, sob pena de revelia e confissão.

Oficie-se.

Pedreiras, 30 de março de 2006


Douglas de Melo Martins
Juiz de Direito