Márcia Novaes Guedes
A semana terminou com uma vitória das maiorias que vivem e dependem do trabalho. Na sexta-feira (16) o Presidente Lula vetou a emenda 3, artifício agregado ao Projeto de Lei (PL) que cria a super-receita. A emenda é um enxerto, apresentado pelo senador Ney Suassuna ao PL 6.272/05, criado para otimizar a arrecadação tributária e previdenciária, centralizando a competência no Ministério da Fazenda. A dissonância entre o projeto da super-receita e a emenda enxertada, às pressas, para atender aos interesses do setor de informática, jornalismo e planejamento e comunicação, tem a sutileza de um trator.
O texto da emenda é curto e preciso, aliás, como devem ser as coisas destinadas a alcançar resultados com eficiência: "No exercício das atribuições da autoridade fiscal de que trata esta lei, a desconsideração da pessoa, ato ou negócio jurídico que implique reconhecimento de relação de trabalho, com ou sem vínculo empregatício, deverá ser precedida de decisão judicial".
De uma só tacada se retira dos fiscais do trabalho o poder de identificar e declarar o vínculo de emprego em contratos destinados a fraudar a legislação trabalhista, a exemplo daqueles em que o empregador obriga o empregado a abrir uma firma individual para ser contratado sem as garantias do estatuto mínimo; inviabilizam-se os eficientes programas em parceria com entidades da sociedade civil de erradicação do trabalho escravo, da exploração do trabalho infantil; e inviabiliza-se também a inversão tendencial da precarização das relações sociais, aliás, uma das metas programáticas do Ministério do Trabalho e Emprego.
Sob o ponto de vista da norma jurídica, a emenda encontrava-se eivada de vícios de inconstitucionalidade, já que golpeava dois dos princípios fundantes da República: a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, insculpidos logo no art. 1º da Constituição Federal, incisos III e IV. A emenda também viola tratados e convenções internacionais ratificadas pelo Brasil, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica, as convenções da OIT (Organização Internacional do Trabalho) 29 e 105, que tratam da abolição do trabalho forçado, de 1930 e de 1957, respectivamente, e a convenção 81, de 1947, que torna obrigatória a inspeção do trabalho na indústria e no comércio. Por esse viés, a emenda acaba ferindo, uma segunda vez, a Carta Maior do país, já que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, aprovados pelo Congresso Nacional, equivalem a emendas constitucionais, é o que estabelece o art. 5º, LXXVIII, § 3º da Constituição Federal.
Não é por outra razão que a OIT se manifestou oficialmente contra a sanção da emenda, destacando os esforços do governo brasileiro na erradicação do trabalho escravo e infantil e mostrando que a redução do poder de polícia do Ministério do Trabalho, restringindo a atuação dos fiscais do trabalho, terminaria por inviabilizar as conquistas obtidas nessas duas frentes. A nota destaca também as condenações em danos morais proferidas pela Justiça do Trabalho e condenação acessória lançando o nome dos réus na famosa "lista suja".
A constituição desta "lista" permitiu a identificação da cadeia produtiva do trabalho escravo e tornou possível a celebração de um pacto pelo qual as grandes empresas se comprometeram a não comprar produtos oriundos da mão-de-obra escrava. Desde o início do programa, foram libertados cerca de 25 mil trabalhadores submetidos à condição análoga à de escravos, a maioria concentrados nas atividades de criação, pastagem e de insumos agrícolas, seguidos daqueles encontrados nas plantações de soja e de algodão e, com menor percentual, na atividade de plantio e corte da cana-de-açúcar.
Atentando contra a separação e convivência harmônica entre os Poderes do Estado, a emenda dava à Justiça do Trabalho o poder exclusivo de dizer da existência de uma relação de emprego. Ora, mas o Judiciário, por sua própria natureza, é um poder inerte, somente funciona se provocado, isto é, a parte que se sente ofendida em um direito deve tomar a iniciativa de ajuizar uma ação, dando-se início a uma demanda, que poderia muito bem ser evitada com a fiscalização eficaz do MTE. Nisto, precisamente, consiste o tiro de misericórdia da emenda nas maiorias que clamam por reconhecimento e dignidade no trabalho.
Inúmeros são os casos em que a JT depende necessariamente da fiscalização do MTE, cujas provas, obtidas durante a blitz, são decisivas para o deslinde dos conflitos. Ressalte-se, ainda, que a distinção entre o contrato de emprego e o contrato de prestação autônoma de serviços, sem as provas pré-constituídas pelos auditores fiscais, constitui-se no calcanhar de Aquiles do processo trabalhista.
Diante da ameaça iminente da sanção presidencial e a estréia marcada para entrada em vigor da emenda 3, os empresários dos setores mais interessados organizaram rapidamente uma Frente Nacional pela Sanção da Emenda e veicularam notas na imprensa escrita, no Jornal Nacional da rede Globo de televisão e durante a transmissão de eventos esportivos. As notas conclamavam todos a lutar pela aprovação da emenda em nome da "segurança jurídica, da garantia dos empreendimentos comerciais estabelecidos e em defesa da geração de empregos para milhões de brasileiros".
Com menos poder de fogo e quase nenhuma visibilidade na grande mídia, a ANAMATRA (Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho), a CONTRAE (Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo), o SINAIT (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Ministério do Trabalho) e a ANPT (Associação dos Procuradores do Trabalho) se manifestaram através de notas públicas e contaram com o denodado empenho do Ministro do Trabalho, Luiz Marinho, para convencer o Presidente a vetar a emenda. A nota dissonante veio da OAB, que, fazendo o caminho inverso, se distancia cada vez mais dos ideais democráticos corajosamente implantados na gestão de Raymundo Faoro em plena ditadura militar. Daí a inconveniência de se esperar que o Supremo Tribunal Federal (STF) desse a última palavra numa hipotética ADin (Ação Direta de Inconstitucionalidade).
Nossa singular condição de magistrada-cronista nos abre uma janela privilegiada para darmos testemunho de que, não apenas naquelas situações limites do trabalho escravo e do trabalho infantil, com freqüência, apreciamos casos em que a eficiência da fiscalização do Ministério do Trabalho na melhoria das condições de trabalho é decisiva na erradicação da pobreza, da marginalização e redução das desigualdades sociais.
O caso mais recente que julgamos envolvia um Instituto de Beleza e uma cabeleireira. Segundo a proprietária do negócio "todo o pessoal do salão trabalhava nessas condições: ´se produzir, recebe, se não produzir, não recebe´, até que a fiscalização do Ministério do Trabalho visitou o estabelecimento". Dessa data em diante, a empregadora decidiu regularizar a situação do seu pessoal, inclusive da cabeleireira, registrando o contrato e assinando a CTPS, recolhendo os encargos e pagando o salário mínimo sempre que a produção não alcance aquele valor.
Bem analisada, essa emenda integra a lógica da razão cínica e consiste em mais uma deslavada tentativa de reeditar no mundo do trabalho a agenda do século XVIII, que pode ser resumida na conjugação irregular do sedutor verbo da flexibilização total. A segurança jurídica proclamada pelos defensores da emenda é uma falácia, a norma trabalhista é a única capaz de assegurar tal objetivo, dado que é a variante de uma estratégia mais ampla na formação do consenso. Por outro lado, já está provado que a flexibilização não gera empregos, até porque, o termo ´emprego´ implica assunção de obrigações e encargos previamente regulados por uma lei. Ao invés disso, essa emenda ampliaria os índices já insuportáveis de trabalho semi-forçado, a exemplo do que ocorre nas plantações de cana-de-açúcar no Sudeste do país, onde se reeditou a morte por exaustão, antes conhecida nos campos de concentração nazistas e stalinistas.
Aprovar a emenda implicaria em chancelar o fenômeno conhecido pela sociologia como "adiaforização social", isto é, abandonar os pobres à própria sorte e liberar a produção de seres supérfluos, gente que não pertence ao mundo de forma alguma, e, por isso mesmo, o primado de que todos são iguais perante a lei não os alcança. Ser supérfluo, conforme explica Hannah Arendt, implica perda das capacidades políticas e de relacionamento social. "Nessa condição, o homem se vê abandonado pelo mundo das coisas, visto que não é reconhecido como homo faber, mas tratado apenas como animal laborans, cujo necessário metabolismo com a natureza não é do interesse de ninguém". A norma trabalhista baliza as regras de um contrato mínimo, considerando que o contratado é um ser humano, credor de respeito e dignidade, aliás, a precondição indispensável para que se possa conduzir uma vida humana digna deste nome.
Como no totalitarismo, a descontinuidade, a ruptura entre o passado e o futuro é a nota típica da sociedade pós-liberal, oriunda do processo de globalização globalitário, dominada por uma racionalidade que absolutiza a dimensão estratégico-instrumental a partir de um ponto de vista egocêntrico. Tanto o totalitarismo quanto o neoliberalismo partem do pressuposto comum de que os seres humanos são supérfluos e assim negam o paradigma kantiano da dignidade humana e a conquista histórico-axiológica que tem no ser humano o valor-fonte dos valores sociais.
Ainda não se tinha visto um ataque tão contundente aos direitos sociais; a vitória dos trabalhadores, porém, se deveu mais à solidariedade do Governo do que à mobilização social. Por isso mesmo, as forças democráticas não podem descansar, haja vista que a matéria tratada pela emenda será objeto proximamente de uma Medida Provisória, e os "delinqüentes acadêmicos" encontram-se bem apeados no poder e trabalham sem solução de continuidade engendrando regras jurídicas que fariam inveja aos tecnocratas que subservientemente serviam os generais.
Márcia Novaes Guedes é juíza do trabalho em Guanambi (BA), membro da AJD.
[Artigo originalmente publicado no site Terra Magazine]