Marcelo Semer
Quando a ministra Ellen Gracie tomou posse como presidente do Supremo Tribunal Federal, foi indagada acerca do foro privilegiado. A ministra respondeu que o instituto já fazia parte de nossa tradição.
Joaquim Barbosa, também ministro da Suprema Corte, ao receber para processar os volumes do inquérito do “Mensalão”, referiu-se ao privilégio de foro como uma excrescência.
Há bons motivos para supor que ambos estão com a razão.
A competência por prerrogativa de função (nome técnico do foro privilegiado) é ao mesmo tempo uma tradição e uma excrescência, fato, aliás, que não é isolado em nossa história.
Desde as Ordenações Filipinas que vigeram no Brasil Colônia, está presente a diferenciação entre Juízos, de acordo com o status da autoridade: fidalgos de grandes Estados só eram processados por mandados do rei.
A enorme infringência ao princípio da isonomia tem se mantido incólume no correr dos anos, ainda que as Constituições e o prestígio das normas referentes à igualdade tenham mudado profundamente desde o absolutismo que vigorava naquele período.
Neste sentido, faz bem que tenhamos deixado para trás algumas tradições de nosso direito. Outras ainda podem ser descartadas pelo caminho.
Há quem diga que a regra do foro privilegiado não perturba a isonomia, mas a revigora, pois, afinal, tal como os iguais devem ser tratados de forma igual, os desiguais devem receber tratamento distinto.
A lógica poderia ser aplicada ao apartheid sem grandes alterações filosóficas. Em determinado momento político, alguém sentenciou que brancos e negros eram diferentes e, portanto, mereciam tratamento desigual.
A questão, fundamental, por óbvio, é saber que desigualdade (na lei) pode contribuir para a afirmação da igualdade (na vida real) e qual a diferenciação pode simplesmente esvaziar o conceito de isonomia.
As autoridades são diferentes das demais pessoas quando cometem crimes? Por acaso, ao malversar verbas públicas ou receber suborno, são os cargos ou os indivíduos que praticam ilícitos?
Esta regra da desigualdade para desiguais apenas aprofunda a desigualdade, o que subverte a idéia de isonomia.
Tratamento desigual, para assegurar a igualdade, é o que deve ser dado ao pobre, por exemplo, não cobrando custas quando de seu ingresso em juízo, fornecendo-lhe advogado público para litigar. Sem essa “desigualdade”, a isonomia de permitir que todos ingressem em juízo certamente restaria esvaziada.
Afirmam, ainda, alguns doutrinadores, que a regra da prerrogativa de competência visa proteger o cargo, não seu titular. Explicação que, na verdade, é difícil de compreender, pois o cargo público independe de seu titular e, no mais das vezes, é justamente utilizando-se do cargo público, que o funcionário pratica o ilícito. A melhor forma de proteger o cargo é tornando mais fácil o julgamento daquele que por seu intermédio pratica um crime, e não o reverso.
O foro privilegiado é apenas um entre outros mecanismos da rede de proteção das autoridades (como a justiça dos militares, a prisão especial, a imunidade parlamentar). Convive bem com a síndrome dos desiguais, da sociedade do você sabe com quem está falando que ainda se mantém ativa entre nós, mas não é próprio da democracia republicana. A visão de proteção da autoridade (e não do bem público) é a que permeia o patrimonialismo, tradicional neste país desde as capitanias hereditárias. Mas não devemos ter nenhum orgulho dessa tradição.
Ao contrário, a desintoxicação destas regras de proteção dos mais fortes (portanto, os que menos precisam delas) é importante ao país, senão para diminuir a avassaladora improbidade, ao menos como um efeito didático para a sociedade, que deve se acostumar a uma regra básica da democracia republicana: todos aqueles que infringem a lei devem ser tratados sob as mesmas leis, com igual rigor e perante os mesmo Juízes.
Neste sentido, é completamente fora de propósito a PEC 358 que prevê a incorporação ao foro privilegiado dos ex-ocupantes de cargos públicos, ampliando-se ainda a esfera do privilégio às ações cíveis de improbidade.
Desde que a Lei 10628/02 aprovada nos estertores do governo FHC foi julgada inconstitucional pelo STF (com a mesma redação hoje proposta), tem-se tentado introduzir na Constituição a regra que estenderia o privilégio para ex-autoridades. A proposta, agora, está embutida na segunda parte da Reforma do Judiciário, pronta para passar quase despercebida.
A par de aumentar a já grande fissura ao princípio da isonomia, revigorar a rede de proteção de quem deveria servir o Estado (e não servir-se dele), se aprovada a proposta que tramita na Câmara, em breve estaremos transformando as Cortes Superiores, formatadas para apreciar recursos especiais e extraordinários, em varas criminais de primeira instância.