Marcelo Semer
Desde que foi editada, em novembro, a republicana resolução antinepotismo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vem sofrendo contínuos ataques dentro do Judiciário. Logo de cara, o Colégio de Corregedores-Gerais incitou seu descumprimento com um ambíguo chamado à resistência, espécie de desobediência civil "do andar de cima". Os presidentes de tribunais de Justiça do País, a seu turno, pressionaram o CNJ para rever pontos da resolução, sob a sutil forma de pedido de esclarecimento, conseguindo, inclusive, abrandá-la. Agora são decisões judiciais que pipocam Brasil afora para impedir que as exonerações sejam realizadas até 14 de fevereiro, data-limite fixada pelo CNJ. Para espancar de vez as dúvidas acerca da legalidade da resolução, melhor seria se o Supremo Tribunal Federal (STF) tivesse desde logo apreciado a questão quando interposta ação direta de inconstitucionalidade (Adin). A Adin foi, no entanto, indeferida liminarmente por uma interpretação restritiva sobre legitimidade processual. A decisão deu ensejo a uma multiplicidade de mandados de segurança a serem apreciados justamente pelas Justiças locais, mais refratárias à própria resolução, ainda que possa ser levantada controvérsia a respeito da competência, uma vez que os tribunais estariam apenas cumprindo uma determinação do CNJ, que, como "autoridade coatora", deslocaria o foro de julgamento para o Supremo. É o STF, aliás, o tribunal competente para processar e julgar, originariamente, todas as ações contra o CNJ, segundo dispõe o artigo 103, inciso I, alínea r, da Constituição federal, na redação da Emenda 45 (reforma do Judiciário). A reação, todavia, não é apenas jurídica, é política e cultural. Isso explica por que nenhuma providência foi tomada nos outros Poderes para a exoneração dos parentes de seus cargos, observando que a decisão do CNJ se baseou nos princípios da moralidade administrativa e impessoalidade, previstos na Constituição em vigor no País há 17 anos. O nepotismo, no entanto, é muito mais antigo. É herdeiro direto das capitanias hereditárias, com as quais o poder central distribuía o que era público de forma privada, como se fez por tantos e tantos anos com cartórios extrajudiciais, delegações do Estado que passavam de pai para filho. A lógica de tratar a coisa pública como particular ainda persiste no preenchimento de cargos de livre provimento: este é o verdadeiro pai de todos os nepotismos. É a ampla liberdade concedida a administradores, legisladores e desembargadores para contratarem assessores e funcionários graduados sem concurso público, sob o argumento da confiança. Essa indústria do cargo comissionado é que propicia nepotismos e apadrinhamentos de todo o gênero, invertendo a lógica de excelência e isonomia que deve existir no recrutamento dos servidores. Os juízes de primeira instância lidam com milhares de processos nos cartórios confiados à sua administração. Não contam com nenhum cargo de livre provimento. O escrivão, que prepara minutas de despachos, o escrevente, que digita termos de audiências e sentenças, ou os oficiais de Justiça, que executam decisões, todos são funcionários devidamente concursados. Por que os desembargadores precisam ter assessores comissionados que podem, e muitas vezes são, recrutados fora dos quadros do Tribunal? É neste cargo, na maioria dos Estados, e em particular São Paulo é uma exceção, que se aloca boa parte dos parentes. Há um vasto corpo técnico de assessores parlamentares no Congresso Nacional, especialistas nas mais diversas áreas do conhecimento, aprovados em concurso público de extrema dificuldade. Por que necessitam os parlamentares de um exército de assessores de sua livre confiança, no mais das vezes amigos, parentes ou companheiros de partido derrotados? Quantos não são os casos em que estes cargos no Legislativo representam simplesmente uma forma travestida de incrementar os próprios salários de deputados e senadores? E no Executivo o fato é tão público quanto notório; cargos comissionados são historicamente objeto de negociação por apoios partidários. E mesmo os recentes escândalos políticos não foram capazes de diminuir a sua incidência na máquina federal. O artigo 37, inciso V, da Constituição federal, impõe a edição de lei disciplinando reserva mínima para cargos comissionados a servidores efetivos de carreira. Poucas foram as leis promulgadas nesse sentido para regulamentar a Constituição e menor ainda o interesse em cumpri-las. Recentemente, um juiz de Pernambuco decidiu que o Tribunal de Justiça do Estado deveria afastar funcionários comissionados de fora da carreira contratados acima do porcentual previsto na lei local. A decisão foi cassada pelo próprio réu antes de ser cumprida. A proliferação de cargos de livre nomeação subverte a ótica republicana no sentido de transferir a idéia pública de confiança (cargo demissível ad nutum) para a esfera privada (compadrio). Os cargos passam a servir como favorecimentos de toda espécie, além de criar a figura de servidores públicos que servem mais aos interesses de seus contratantes, de quem são devedores, do que propriamente ao Estado. Para acabar com as várias espécies de nepotismo, andariam bem os senhores legisladores, senhores administradores, senhores desembargadores e senhores ministros se reduzissem o número dos servidores livremente contratados e aumentassem o espaço para os cargos destinados aos funcionários aprovados em concursos. Teríamos, assim, uma administração mais profissional e um serviço público mais transparente. Marcelo Semer, juiz de direito em São Paulo, é presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia [PUBLICADO NA SEÇÃO ´ESPAÇO ABERTO´ DO JORNAL ´O ESTADO DE S. PAULO´, edição de 08/02/06