Punir a Corrupção, Não a Cidadania

Marcelo Semer

Uma infeliz e irônica coincidência mostra a quantas andam as preocupações dos órgãos de controle com possíveis irregularidades praticadas por magistrados. Na mesma semana em que desembargadores foram presos, suspeitos de praticar graves crimes contra a administração pública, juízes estão sendo obrigados a declarar, por determinação do Conselho Nacional de Justiça, que não exercem atividades de direção em organizações beneficentes ou não-governamentais.

Pode parecer um contra-senso que o CNJ esteja mais preocupado em estabelecer restrições à cidadania do juiz, do que aperfeiçoar mecanismos para apurar com mais presteza e idoneidade, ilegalidades praticadas.

O fato de que desembargadores tenham sido presos e venham a ser processados criminalmente já é por si só preocupante, independente de que suas responsabilidades penais devem ser devidamente apuradas e nenhum julgamento moral possa ser realizado a essa altura.

O problema, no entanto, não está na perversão, mas na regra —ou na ausência dela. É fato que as corregedorias dos tribunais não atingem os magistrados de segunda instância das próprias Cortes, que não são por elas investigados, diferentemente do que acontece com os demais juízes.

A diferenciação de tratamento pelo status do funcionário não é propriamente uma novidade entre nós. Há toda uma rede de proteção de autoridades no país, formada pela elegia à desigualdade, que distingue determinados réus na investigação, no processo ou na forma de punição, como é o caso das imunidades parlamentares, da justiça para militares, das prisões especiais e mesmo do foro privilegiado.

Resta saber se a sociedade brasileira concorda em manter esse quadro de desigualdades, pelo qual quanto mais elevado o cargo que ocupa, mais inacessível a autoridade para ser fiscalizada.

Ninguém pretendia que o CNJ se transformasse numa grande corregedoria. Seria inviável, ante o número de magistrados do país. Mas depois de ter exercido uma exaustiva função codificadora, estabelecendo regras minuciosas para diversas áreas do Judiciário, o órgão de controle poderia ter se debruçado nesta infração à isonomia: todos os magistrados devem estar sujeitos às corregedorias de seus tribunais.

Ao invés disto, o CNJ preocupa-se em explicitar e estender as proibições de uma vetusta regra da Lei Orgânica da Magistratura, de 1979, cuja recepção pela nova ordem constitucional, é discutível, dado o caráter de direito fundamental outorgado à liberdade de associação.

Segundo o conselho, é incompatível com o cargo de magistrado, o “desempenho de função de justiça desportiva, de grão-mestre da maçonaria, de dirigente de ONG, bem como entidades como Rotary, Lions, APAEs, sociedade espírita, Rosa-Cruz”.

Foi-se o tempo, no entanto, em que o habitat ideal dos juízes devia ser uma torre de marfim, distante da sociedade o suficiente para que, com seu isolamento, pudesse atingir o nirvana da neutralidade.

Juízes são cidadãos e fazem parte da sociedade que julgam. Não são entidades míticas ou santificadas, que não possam se misturar aos demais. Ao contrário, um juiz sem cidadania é um juiz que não conhece a sociedade que o cerca, nem é reconhecido por ela.

As regras que cuidam da suspeição já são suficientemente claras para evitar que magistrados julguem causas de pessoas físicas ou jurídicas com quem estejam pessoalmente relacionados. A norma existe justamente para impedir estes conflitos de interesses. Mas é de todo impossível eliminar ligações pessoais ou sociais dos magistrados, pois têm família, amigos, são sócios de clubes, filhos em escola e etc.

Não são as atividades públicas dos magistrados que causam desassossego, mas ligações escusas, que não podem ser de todos conhecidas.

Se o trabalho numa entidade assistencial atrapalhar o desempenho das funções jurisdicionais, da mesma forma como o magistério (que é remunerado, mas não proibido), as corregedorias podem atuar plenamente, já que recebem todos os meses relatos da produtividade dos juízes.

Enfim, a sociedade não deve estar preocupada se o juiz faz parte de uma entidade que luta para salvar a vida das baleias, se dirige uma ONG beneficente, ou se é membro do conselho do Rotary. Deve estar preocupada em saber se não será surpreendida com graves denúncias de atos de improbidade por parte de seus julgadores.

É a honestidade dos magistrados que pode por em risco a imparcialidade, não a sua vida social.

O CNJ deveria estar atento em construir mecanismos de fiscalização mais efetivos aos juízes das cúpulas dos tribunais, evitando as atuais distorções. Punir a corrupção é muito mais importante do que mutilar a cidadania.


Marcelo Semer é presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia.

[Artigo publicado originalmente na revista Última Instância, em 25/04/07]