Márcia Novaes Guedes
Eis que a empulhação venceu! Berlusconi marcha de novo sobre Roma e faz do imigrante o inimigo público número um! A figura caricata do estadista que subiu na vida pela esperteza e usou a imunidade política para se livrar da Justiça, venceu as últimas eleições com folgada maioria e tomou posse nessa quinta-feira [08/05/08].
Estou presa à Itália e aos italianos por laços afetivos e intelectuais. Escolhi fazer o doutorado na velha Universidade de Roma, e defendi tese sobre a relação entre assédio moral e totalitarismo; por isso me interesso por tudo que diz respeito a democracia e imigrantes. Vivi entre Roma e Veneza de 2003 a 2005 em meio a familiares, professores, amigos e juízes como eu, e creio que a derrapagem da democracia naquele país deve botar nossas barbas de molho.
Berlusconi é populista. No seu governo a representação política legítima dos intereses gerais da nação foi sacrificada em nome dos interesses da maioria do "chefe". Numa aliança com a Liga Norte e herdeiros do fascismo tem-se o governo dos "Homens" em detrimento do governo das Leis, que subordina a esfera pública aos interesses privados.
Ao lamentar a vitória iminente de Berlusconi, Mino Carta [Carta Capital [16/04/08]] não poupou críticas ao centro-esquerda. Falando para os Juízes em 2003, Luigi Ferrajoli ressaltou que a ideologia populista contagiou também a esquerda, cuja principal obsessão parece ser a escolha de um líder oposto, mas semelhante. Pior, a esquerda não se dá conta da avançada adiaforização social que reduz a escolha ética à estética e afasta a responsabilidade moral pela criminalização dos pobres e imigrantes.
Na essência, as políticas da direita e da esquerda não se diferenciam quando o assunto é imigrante e trabalhador. Ao imigrante, Berlusconi aplicou a tolerância zero, respaldado na Lei Bossi-Fini. Essa lei é um atentado à memória constitucional depois do genocídio nazista, e aos valores da civilização. Em 2004, Berlusconi celebrou um acordo com a Líbia, e os imigrantes presos e algemados eram deportados em massa em vôos charter, o que rendeu uma condenação formal do Parlamento Europeu. A Líbia não assinou a Convenção de Genebra, mas o acordo Roma/Trípoli foi ratificado pela União Européia, sob a presidência de Romano Prodi.
Foi Prodi quem, na Itália, iniciou o processo de precarização das relações de trabalho, com o pacote Treu. Posteriormente aperfeiçoado no governo Berlusconi pela Lei Biagi. Essa lei é uma forma perversa de regulamentar a precarização. Os jovens de até 40 anos de idade possuem contratos precários com salários de até 5 mil euros/ano, mas o gasto médio/mensal de uma pessoa para se alimentar na Itália é de 450 euros!
A queda da atividade econômica não poupa sequer o trabalho submerso, preponderante no Nordeste italiano. A contínua deslocalização e reestruturação das empresas do Veneto e da Lombardia geram insegurança e medo na população. No mês passado foi a Collussi, uma tradicional marca de biscoitos, que se transferiu do Veneto para o Vale da Úmbria [sudeste]. Esse mês vive-se o medo do futuro da Eletrolux. A multinacional sueca decidiu transferir para Susegana parte da produção da fábrica de Scandicci [Florença] e fechar aquele estabelecimento. O que pareceria uma boa notícia para os trabalhadores de Susegana, porém, não é.
As geladeiras e os freezers mais baratos serão produzidos na Hungria para adequar-se ao custo de produção coreano e turco, 200, 300 euros. Com menor volume de produção, reduzido será também aquele orgânico. Afirma-se que o corte será de 450 empregos diretos. O grande desafio, porém, será manter em Susegana a fábrica que tornou conhecida a região como a capital do freezer.
Se por um lado, o italiano médio ignora os resultados da Operação Mãos Limpas e não confia na Magistratura, por outro lado, a jurisprudência trabalhista abraçou a vaga do pensamento único do fim do trabalho. O Estatuto dos Trabalhadores e a Constituição foram desprezados em prol de um direito da racionalidade econômico-social. Nas decisões de muitos juízes prepondera a interpretação de tipo empírico instrumental, que facilita a deslocalização das empresas, o desemprego e a redução legal dos vínculos garantistas e dos ônus salariais diretos e indiretos.
Mergulhados na mesma crise que arrastou as esquerdas nos anos oitenta, os sindicatos transformaram-se em instituições para-governamentais e são instrumentalizados para assegurar as políticas do estado da racionalização econômica e da neutralização dos conflitos distributivos.
O berlusconismo é um sintoma. Em Post Italiani _ cronaca di un paese provvisorio [Mondadori,2003], Edmondo Berselli afirma que a sociedade italiana pende entre um sedimento arcaico e uma secularização catastrófica. E na beira do precipício, é provável que entre o passado remoto e o presente post moderno não exista nada, nada que possa manter de pé a estrutura mental... O resultado é a loucura, ocasionada pela profunda crise de identidade.
Em uma de suas muitas obras não reeditadas, Norberto Bobbio afirma que a democracia italiana ficou no meio da estrada. A camorra totalmente integrada à economia globalizada tem "lavanderias" espalhadas em todo país. O "sistema", como é conhecida internamente, controla até a reciclagem barata do lixo que entulha Nápoles e a costa da Somália, já que os contêineres de lixo atravessam impunemente o canal de Suez e são lançados no oceano índigo. O assassinato de Marcus Biagi e Massimo D´Antona pelas Brigadas Vermelhas é outra prova de que o contrato social está longe do consenso.
E a invenção se fez realidade! Conclui Berselli. Dominado pelo medo e pela insegurança, o povo reproduz a vida na tevê e se deixa manobrar pelo apelo do salvador da pátria, que é a encarnação da ilusão coletiva vendida diariamente pela tevê. Promete-se prisão ao imigrante! O imigrante é acusado de roubar os poucos empregos que restam e fazer despencar os níveis salariais. Pior, o medo oficial alimenta a paura do inconsciente coletivo que o transforma num terrorista potencial.
Num filme chocante, Pasolini mostra uma cena onde uma família está jantando, numa sala ricamente decorada, mas a comida é cocô. As pessoas comem merda, enquanto conversam, sem se dar conta. Acho que escutei de Nelida Piñon: muitos brasileiros estão "boiando em espumas!" Quer dizer, preferem o mundo da tevê, do espetáculo e das celebridades à vida real. Analisar o fracasso alheio só faz sentido se nos ajuda a evitar o nosso próprio fracasso!
Márcia Novaes Guedes é Juíza Federal do Trabalho, Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de Roma [Tor Vergata] e membro da AJD