Marcelo Semer
Depois do fim do nepotismo e da limitação do teto salarial, outra questão se encontra em pauta no Conselho Nacional de Justiça e no Supremo Tribunal Federal na agenda de moralização e modernização do Poder Judiciário: a eleição para os órgãos especiais dos tribunais.
A Constituição autoriza aos Tribunais com mais de 25 membros que instituam órgãos especiais atribuindo a estes a competência administrativa e jurisdicional delegada do Tribunal Pleno. Servem tais órgãos para deliberar pelo Tribunal, quando a reunião dos membros da Corte não se reveste de praticidade –como é o caso de São Paulo, integrada por 360 desembargadores. Na esfera política, funcionam como um parlamento, co-responsáveis pela formulação de diretrizes administrativas.
A Reforma do Judiciário buscou modernizar a composição dos órgãos, até então restrita aos desembargadores mais antigos. Estipulou a regra de que metade dos componentes deve ser eleita. Para além da democracia, o escopo de propiciar mudanças na administração das cortes, quase sempre refratárias a avanços tecnológicos ou respeito a padrões de eficiência.
A regra da composição paritária entre antigos-eleitos estava na Constituição Paulista desde 1999. O TJ-SP recusou-se a aplicar a lei e foi ao STF para declarar sua inconstitucionalidade, pois a mudança tinha de estar expressa na Constituição Federal. Mesmo com a emenda da Reforma do Judiciário, os desembargadores mais antigos continuaram resistentes à eleição. O argumento é de que a mudança da Constituição não é suficiente, sendo necessário, então, aguardar-se o Estatuto da Magistratura (cuja proposta dormita há anos no STF), ainda que nada no texto constitucional indique a dependência desta lei.
O Conselho Nacional de Justiça não se debruçou sobre o assunto no primeiro ano de sua existência. Enquanto isso, seis dos 15 tribunais brasileiros que têm órgãos especiais realizaram suas eleições, sem nenhum impedimento, estabelecendo regras em seu próprio regimento, como autoriza o art. 96, I, da Constituição Federal. O silêncio do CNJ sinalizou que o órgão de controle não só anuía com a auto-aplicabilidade da emenda constitucional, como concordava com a regulamentação nos regimentos internos.
Por tudo isso, causou espanto na comunidade jurídica, a decisão monocrática do conselheiro Marcus Faver, do CNJ, suspendendo a portaria que criou grupo de estudos no Tribunal de Justiça de São Paulo, para preparar a eleição, uma das primeiras providências do desembargador Celso Limongi ao assumir a presidência. A decisão atendeu a pedido de desembargadores paulistas, que pretendem permanecer no órgão sem disputar eleição.
A reação contrária da comunidade jurídica, aí incluídas entidades de magistrados, a expressiva maioria de desembargadores do Estado e parte significativa dos conselheiros, fez o CNJ reapreciar a matéria com uma inusitada urgência. A polêmica interna suscitou até a realização de uma sessão reservada (que em relação aos tribunais, a Constituição expressamente proíbe), em que se discutiu o assunto à exaustão, como revelado na sessão pública. O resultado foi que o relator, retrocedendo do entendimento anterior, sugeriu que um acordo entre os conselheiros viabilizaria edição de resolução pelo CNJ em 30 dias, regulamentando as eleições em todo o país. Enquanto isso, a liminar foi estendida, suspendendo todos os processos de eleição nos tribunais, não apenas em São Paulo.
O princípio contido no art. 93, XI, da Constituição Federal, que determina a realização de eleição, é auto-aplicável. Como o próprio CNJ já decidiu em relação a outros princípios do mesmo dispositivo (regras do concurso de ingresso, fixação do teto, proibição de férias forenses, critérios de promoção), não há necessidade de aguardar o Estatuto da Magistratura.
A questão que agora se coloca para evitar as eleições é uma espécie de “direito adquirido ao poder”, algo inconciliável com o conceito de democracia. Inamovibilidade é princípio constitucional que impede seja o juiz afastado sem punição de seu cargo jurisdicional, prerrogativa para evitar que seja ele manietado ou pressionado a julgar de uma forma ou outra. Não alcança, no entanto, funções de direção ou representação, como são aquelas desempenhadas nos órgãos especiais.
Em relação a São Paulo, há outra particularidade interessante.
Logo após a Emenda 45, os desembargadores do Órgão Especial decidiram se afastar de suas Câmaras originais, para julgar apenas as questões administrativas e as poucas jurisdicionais que são apresentadas semanalmente ao plenário. O Judiciário de São Paulo ficou com duas dezenas de seus melhores julgadores fora da distribuição ordinária no momento em que mais se fazia necessário –pois a reforma constitucional determinou a distribuição imediata de todos os processos represados, quase meio milhão nesta Corte. A decisão, que outorgou aos desembargadores a perpetuação do poder sem o mesmo ônus dos demais juízes, vem sendo hoje utilizada como fundamento contrário à eleição: os desembargadores mais antigos seriam inamovíveis no Órgão Especial, justamente porque não teriam mais assentos nas Câmaras para voltar.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, do qual faz parte o conselheiro Marcus Faver, se negou a fazer a eleição, e por este motivo a questão foi levada ao STF, em ação movida pela AMB e desembargadores cariocas. O ministro Joaquim Barbosa indeferiu a liminar, mas sugeriu rapidez no processamento para apreciação do pedido em plenário.
Espera-se, agora, que o Conselho Nacional de Justiça e o Supremo Tribunal Federal prossigam na tarefa de modernizar o Judiciário brasileiro, afastando os interesses corporativos e fazendo cumprir as determinações da reforma do Judiciário. Resistências existirão, mas o resultado seguramente aproveitará à sociedade.
Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo e presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia
[publicado no Jornal "O Estado de S. Paulo", edição de 24/05/06]