Marcelo Semer
NO ANO DE 1990, após o sequestro de um empresário de renome, o Congresso aprovou, em regime de urgência, a Lei dos Crimes Hediondos. Era preciso "debelar a escalada da criminalidade", dizia-se, e impor penas e regimes mais severos para evitar a prática de condutas graves. Paradoxalmente, a partir da década de 90, a prática de extorsões mediante seqüestro foi sensivelmente maior do que antes, fato que se repetiu, aliás, com outros tantos delitos mais ou menos hediondos. Ainda assim, para atender o suposto reclamo da opinião pública, nesse período o Congresso viria a incrementar o rol das condutas hediondas, quase sempre acompanhando momentos em que a criminalidade teve maior exposição na mídia. Desatentos a esses dados, e na esteira dos acontecimentos que abalaram São Paulo, os senadores se jactaram de anunciar a aprovação de um pacote repressivo após uma única reunião. E mesmo magistrados vieram a público para repetir o bordão de que tempos duros exigem leis duras ("A verdade real", Folha, 31/05). A violência das últimas semanas, entretanto, não pode ser considerada filha direta da impunidade, mas, ao contrário, fruto da própria punição. A experiência tem reiteradamente mostrado que a expressão costuma ser invertida: penas mais rígidas é que tornam os tempos mais duros. O rigorismo penal não trouxe nenhuma melhora na segurança pública, mas como efeito colateral superlotou penitenciárias. Isso se deve em grande monta às seguidas legislações de emergência. Mas não só. Também tem contribuído uma certa jurisprudência do pânico. Decisões judiciais se fizeram mais severas, ao contrário do que o senso comum pode supor. O regime fechado para o cumprimento de penas se generalizou, mesmo quando a lei permite o semi-aberto; mantêm-se casos de detenções em crimes de bagatela; prisões processuais tornaram-se regra. Ainda que se tenha construído na última década mais penitenciárias do que em toda a história do Estado, elas continuam abrigando um contingente prisional bem acima de sua capacidade de ocupação, em um déficit que espelha a corrida do cachorro em torno de seu próprio rabo. São Paulo tem hoje, sozinho, a população carcerária que o país tinha há uma década, cerca de 150 mil presos. De outro lado, nunca se sentiu tanto a ausência do Estado em seu próprio reduto. Não somos capazes de agir para trazer os presos ao convívio social nem para mantê-los sob a necessária disciplina. Não se cumprem normas mínimas de respeito à integridade dos detentos e não há instrumentos de ressocialização, faltando vagas de trabalho ou estímulo ao estudo. Amontoamos os presos à espera do nada. Sua situação está muito distante das tais "benesses intoleráveis", mencionadas pelos magistrados no mesmo artigo. Todos sabemos o efeito deletério dessa ausência estatal. Como diz a máxima política, não existe vácuo de poder. Nos morros do Rio de Janeiro, abandonados pelo Estado, traficantes ocuparam as instâncias de poder, ora prestando serviços à população carente, ora intimidando moradores, tornando os locais quase inexpugnáveis à presença da polícia. O mesmo tem ocorrido com as prisões. Facções criminosas dividem territórios, filiam presos como organizações partidárias e vendem favores e proteção como verdadeiras máfias. Como temos visto, encher as prisões não é sinal de êxito na segurança pública, ou de menor preocupação para a sociedade. Por isso, o discurso fácil da pena mais severa pode desembocar numa situação mais grave. Tempos duros exigem serenidade, principalmente das autoridades. O momento de perplexidade já propicia por si só a efervescência de soluções mágicas e ineficazes, ainda mais na antevéspera do processo eleitoral. Há muito o que fazer na segurança pública. Retomar o controle dos presídios e aplicar efetivamente a lei de execução penal; fortalecer a carreira policial, fulminada pela depreciação generalizada do funcionalismo; aumentar a capacidade de integração e a inteligência dos sistemas de segurança, unificando as polícias, que até hoje competem entre si. Mas não é necessário recrudescer a legislação penal. Nem é certo que seja esse o desejo da maioria dos julgadores, que ao contrário do que se apregoou, não se constrangem na aplicação de direitos fundamentais. Seguro é que um grau exagerado de prisionalização fará aumentar ainda mais o exército de desesperançados à disposição das organizações criminosas. Se o fizermos, aí sim estaremos apagando fogo com querosene.
MARCELO SEMER , 40, é juiz de direito em São Paulo e presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia [artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 18/06/06]