Márcia Novaes Guedes*
A semana terminou com os Juízes do Trabalho na Praça pública, se mobilizando
pela efetivação dos direitos trabalhistas. Em Salvador, os Juízes se
colocaram em frente ao Elevador Lacerda, cartão postal da cidade, na Praça
Tomé de Souza, para distribuir uma cartilha que detalha os direitos básicos
dos trabalhadores, isto é, o contrato mínimo: Carteira do Trabalho e
Previdência Social, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, jornada de
trabalho de 44 horas semanais, segurança e saúde, repouso e alimentação
entre as jornadas, férias e gratificação de Natal e, quando dispensado,
aviso prévio e seguro desemprego.
As mobilizações fazem parte da Campanha Nacional lançada pela
Anamatra(Associação dos Magistrados do Trabalho) que escolheu o dia 05 de
outubro (Dia da Cidadania) para a luta contra a flexibilização dos direitos
dos trabalhadores brasileiros. E também denunciar diversas outras violações
das relações de trabalho como a terceirização e o cooperativismo
fraudulentos, a contravenção penal pelo descumprimento das normas de
segurança, higiene e saúde do trabalhador e o assédio moral.
A Campanha tem como objetivo, também, reforçar e acelerar as discussões em
favor das mudanças na legislação tendo como móvel a efetividade dos direitos
trabalhistas, considerados essência dos Direitos Fundamentais da Pessoa
Humana. Para outras informações, a Anamatra disponibilizou um site exclusivo
para a Campanha: www.anamatra.org.br/efetivação.
Apesar de afogados em leis, a maioria dos trabalhadores brasileiros vive
precariamente na informalidade. Um dos pontos altos da Campanha é o respeito
à CLT - Consolidação das Leis do Trabalho, uma senhora lei de quase 70 anos,
cujo artigo 29 determina que o empregador anote a data de admissão, a
remuneração e as condições especiais de trabalho, se houver. Além de
registrar, carimbar e assinar o documento no prazo de 48 horas.
Sem CTPS assinada, o trabalhador é menos cidadão. Não pode comprar a
crédito, abrir conta nem fazer empréstimo bancário. Nem sequer sonhar com a
aquisição da casa própria, pois sem registro na CTPS não há recolhimento de
FGTS. Se adoecer ou, se for mulher e engravidar, vai depender da caridade
pública, pois o sistema previdenciário é tripartite - quer dizer, funciona
com a contribuição do Governo, dos patrões e dos trabalhadores, de quem o
empregador está obrigado a descontar e recolher mensalmente ao INSS.
O desrespeito a essa norma básica das relações de trabalho no Brasil é
incentivada pela indiferença da sociedade, que dá de ombros para a
banalização do mal no trabalho. A falta de registro em CTPS, com a
finalidade de fraudar os direitos do empregado e a Previdência Social, é
considerada crime, previsto no artigo 297, § 4º do Código Penal.
O resultado dessa medida, porém, é pífio, pois os patrões continuam
contratando ao arrepio da lei, sob a desculpa de que não podem arcar com os
encargos sociais. E entre Juízes e Promotores de Justiça corre acirrada
discussão acerca da competência da Justiça do Trabalho para impor tal
condenação. Afora a atuação corajosa de uns poucos juízes, que, tomando os
direitos fundamentais como base de suas decisões, condenam empregadores em
danos morais e não admitem instruir alegação de justa causa levantada pelo
empregador quando este não cumpriu as obrigações do contrato (CLT, art. 483,
d), a ilicitude não encontra cobro diante da insuficiente fiscalização do
ministério do Trabalho.
O brasileiro é cordial e, certas vezes, indiferente à injustiça social.
Participamos das festividades, aniversários e casamentos sem nos preocupar
se os "serviçais" têm seus direitos básicos respeitados. Entramos e saímos
de lojas, mercados e shoppings sem reparar que o comércio contrata salário
mínimo e comissões, mas, na prática, continua valendo a regra "se produzir
come, se não produzir, não come".
O desprezo pelos pobres, em algun, vai além: temos medo deles. Numa festa de
aniversário ouvi de uma médica a seguinte explicação: "os pobres são
confundidos com bandidos, porque nessa classe o número deles é maior".
Sonegar salários e outros direitos sociais não é considerado furto. E apesar
da redação da Lei 9.983, de 14/07/2000, que introduziu o § 4º ao artigo 297
do Código Penal, para o jurista Damásio de Jesus não constitui delito a
singela conduta do empregador deixar de registrar o empregado.
Domésticas e babás trabalham 12 horas seguidas, muitas vezes sem receber o
salário mínimo, cuidando da casa e dos filhos da classe média, enquanto os
filhos delas crescem sem a companhia dos pais e do Estado. O desprezo que as
classes abastadas e remediadas nutrem pelos trabalhadores sugere temas ao
teatro do absurdo.
Minha fisioterapeuta contou-me que, ao ser apresentada a uma distinta dama
da sociedade local, dentre as lições de boas maneiras e etiquetas, ouviu a
seguinte pérola: "não deveria permitir que a babá de seu filho se vestisse
de modo a causar confusão nas pessoas, a babá não poderia ser confundida com
sua irmã". Afinal, ela (a babá) deveria saber qual é o seu lugar na escala
social!
Esse inominável preconceito social encontra reforço na imprensa dominante.
Recentemente, a colunista de um dos mais lidos jornais do País - cuja
circulação média, de segunda a sexta-feira, é de exatos 299.473
exemplares -, orgulhosamente revelou no frontispício da primeira página (!),
ao ensaiar uma explicação para o apoio popular revelado por uma pesquisa de
opinião ao presidente da República, que o apoio vem dos "seres simples",
beneficiados pelos programas sociais. O sentido discriminatório da opinião
veiculada pelo jornal, felizmente, não passou despercebido por um
jornalista, famoso por sua independência de opinião, que concluiu: a
colunista, certamente, se considera um "ser complexo".
A República e a economia de mercado foram forjadas com a exclusão dos
ex-escravos, considerados sub-raça destinada ao desaparecimento. A nação
desejada por nossa elite não poderia ser formada pelo "rebotalho", mas pelo
branco europeu, cuja imigração foi incentivada. Somos o único povo que
conseguiu se "modernizar" sem romper com a senzala. De modo inédito, a
transportamos para os modernos e arrojados prédios de apartamentos, onde uma
linha divisória, aparentemente invisível, separa a "área de serviço" da
"área social". Do velho engenho de cana-de-açúcar ao agronegócio do etanol,
nosso processo civilizatório segue linear, combinando exclusão social e
cinismo que se revelam no emprego da fraude nas relações de trabalho,
incluindo, em pleno século XXI, o trabalho escravo nos setores de ponta da
economia.
A resistência da elite brasileira em se tornar cidadã é notória. Segundo
Raymundo Faoro, nossa elite é marginal. A elite manda, mas não aceita ser
cidadã. Essa elite marginal imagina que pode modernizar o país excluindo o
povo e os que pensam em defesa da inclusão social, como na sátira de Machado
de Assis, descrita no conto "O Alienista", no qual um sábio, a pretexto de
estudar a loucura, interna num hospício três quartos da população.
Assim, o projeto de "modernização" dessa elite marginal inclui a redução de
pessoas à condição análoga à de escravo. Na verdade, o trabalho escravo
contemporâneo é um elo na cadeia produtiva que vem sendo denunciado pelo
Bispo de São Felix do Araguaia, Dom Pedro Casaldaliga desde 1971. O
crescente aumento do número de denúncias obrigou o governo a criar o Grupo
Móvel de Fiscalização do ministério do Trabalho, que, em parceria com
organismos não governamentais e com a Procuradoria do Trabalho, já libertou,
desde o início do programa, mais de 25 mil trabalhadores escravos. A maioria
está concentrada nas atividades de criação, pastagem e insumos agrícolas,
seguidos daqueles encontrados nas plantações de soja e de algodão e nas
atividades de plantio e corte de cana-de-açúcar. A Justiça do Trabalho,
porém, se apercebeu do problema muito mais tarde e somente em 2005 instalou
a Vara do Trabalho de São Felix, onde hoje a corajosa atuação do Juiz João
Humberto Cesário no combate e erradicação do trabalho escravo tornou famosa
a região, antes conhecida como o "Vale dos Esquecidos".
O lobby desses "modernos" senhores de engenho, no entanto, é poderoso, a
ponto de suspender o trabalho de fiscalização do ministério. Na
segunda-feira, 24 de setembro, a Justiça do Trabalho aceitou a Ação Civil
Pública movida pela Procuradoria do Trabalho que, com base no resultado de
uma fiscalização realizada pelo Grupo Móvel, denuncia a existência de
trabalho escravo na Pagrisa. Na fazenda dessa empresa em Uianópolis, a 417
km de Belém, foram encontrados 1.060 trabalhadores reduzidos à condição
análoga á de escravos. Essa foi a maior libertação já feita desde a criação
do Grupo.
"Eles nos tratavam como porcos". Assim um dos trabalhadores libertados
resumiu as condições de trabalho na Pagrisa. E não exagerou. Segundo os
relatórios dos fiscais, a empresa violava as normas de proteção ao salário
praticando o velho e abominável truck system (vendendo alimentos e remédios
aos trabalhadores por preços bem superiores aos praticados no mercado
livre); e praticava contravenção penal descumprindo as normas de higiene,
saúde e segurança do trabalho, obrigando os empregados a trabalhar sem
descanso. E até os alimentos fornecidos estavam deteriorados com a presença
de bactérias, vermes e fungos.
Acontece que os donos dessa empresa são poderosos e têm aliados de peso no
Senado Federal. Flexa Ribeiro (PSDB-PA) e Kátia Abreu (DEM-TO), acusaram os
fiscais de praticarem "abuso de poder", e conseguiram suspender o trabalho
de fiscalização. Desde o dia 20 de setembro, as ações de combate e
erradicação do trabalho escravo estão suspensas.
A construção da nossa racionalidade passa pela destruição dessa elite, isto
é, vai acontecer na medida em que ela se tornar cidadã. Nisso os Juízes
podem dar uma grande colaboração: primeiro, fazendo tesouro da lição de
Hannah Arendt (Eichmann em Jerusalém, 1962), segundo a qual a Justiça não
admite a teatralidade dos gestos, das condutas estudadas, mas requer o
isolamento. Admite mais a tristeza do que a raiva, e pede a mais cautelosa
abstinência diante de todos os prazeres de estar sob a luz dos refletores.
Segundo, é preciso cuidar para que o protesto na praça pública não se
transforme num palanque feito sob medida para os ávidos de ascensão
profissional, mas que em nome da disciplina judiciária seguem indiferentes,
remando a favor da corrente e dando as costas à desestabilizadora
banalização do mal. Por fim, é preciso não esquecer que o povo, cansado da
injustiça social, deseja ver coerência entre o discurso e a prática
judiciária.
O trabalho dos Juízes não termina na Ágora, mas no fórum, no recesso do
gabinete e a efetividade da justiça vai acontecer na medida em que os juízes
se empenharem em reverter com decisões corajosas o resultado de uma pesquisa
científica recentemente divulgada e que revela que o Judiciário brasileiro,
inclusive o trabalhista, não realiza justiça social.
* Márcia Novaes Guedes é juíza do trabalho, doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de Roma - Tor Vergata e membro da Associação dos Juízes para a Democracia.
[Artigo publicado originalmente na revista Terra Magazine, dia 08/10]