Marcelo Semer
Foi preciso a criação de um órgão de controle externo para que o nepotismo no Judiciário sofresse o seu mais duro golpe. Com a resolução editada em outubro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou a exoneração dos funcionários em cargos de comissão e funções de confiança que sejam parentes de magistrados e servidores com cargos de direção integrantes dos tribunais a que estejam vinculados.
A utilização da função pública para a consecução de interesses ou benefícios privados assenta o caráter anti-republicano das nomeações de parentes de juízes. Pesquisa realizada pela Fundação Joaquim Nabuco e pela Associação Juízes para a Democracia, em Pernambuco, revelou, às vésperas da decisão do CNJ, que, entre os funcionários do Tribunal de Justiça daquele Estado que exerciam cargos de confiança e não eram servidores efetivos, 40% dos nomeados eram parentes de desembargadores.
Embora não se tenha um levantamento parecido em outros Estados, é de imaginar, até pela recorrência do tema no noticiário nacional há décadas, que o quadro não seja incomum.
Suspeitando que apenas uma orientação não seria capaz de ser acolhida pelos Judiciários Brasil afora, o CNJ determinou desde logo a exoneração de todos os parentes, fixando prazo de 90 dias. Em vários tribunais já se antevêem argumentos contrários ao cumprimento da ordem. Os fundamentos da irresignação são vários: a exoneração não está definida em lei; a resolução não poderia ser retroativa e atingir os atuais ocupantes dos cargos; a demissão ao mesmo tempo de tantos funcionários poderia causar um atraso sem precedentes no Judiciário.
Ora, a decisão se funda na interpretação que de há muito os tribunais deveriam ter dado ao artigo 37 da Constituição federal, em especial à rigidez dos princípios da moralidade e impessoalidade. O ingresso de parentes pela via do comissionamento, muitas vezes em exercício com o próprio magistrado familiar, é uma afronta à impessoalidade e um dano irreparável à moralidade administrativa. Muito maior que o eventual retardo na fase de transição para a nomeação de outros servidores sem laços familiares, ou, de preferência, aprovados em concursos públicos. O prazo para a exoneração não é exíguo, se contarmos que a Constituição federal foi promulgada em 1988. Dandose a nomeação, ademais, a título precário, não há direito à estabilidade nos cargos.
A decisão do CNJ de pôr fim ao nepotismo não é arbitrária nem descabida. Está inserida entre as competências que lhe foram conferidas pela Emenda 45, entre as quais a de zelar pelo cumprimento do artigo 37 da Constituição federal nos tribunais, inclusive para desconstituir atos administrativos que o violem. É verdade que o nepotismo não se abriga exclusivamente no Judiciário. Ele está presente no Executivo e, despudoradamente, no Legislativo. Um ex-presidente da Câmara dos Deputados se jactava de sua capacidade de arrumar emprego para parentes, todos supostamente capazes e competentes, mas não concursados. O deputado, forçado a renunciar pela publicidade de outras mazelas ainda mais graves, está, no entanto, longe de ser uma exceção entre os pares que o haviam elegido. Tendo a decisão do CNJ se originado da interpretação dos princípios que regem a administração pública, firmados pela Constituição federal, é de esperar que os outros Poderes a tomem como paradigma para expurgar o nepotismo também em seus domínios, de modo que a moralidade não seja preservada na administração pública apenas pela metade. Ou que, não o fazendo, o Judiciário decida pela ilegalidade de tais nomeações.
Do CNJ se aguarda que prossiga na tarefa de fazer a administração judiciária cumprir a Constituição e os comandos da Lei Orgânica da Magistratura, sem ceder a corporativismos ou ao pragmatismo das cúpulas. Em suas mãos repousa agora uma representação para fazer cumprir o princípio do ´juiz natural´, tão desrespeitado em diversos Estados da Federação. Há no País juízes exercendo cargos de livre designação, podendo ser afastados ou removidos sem nenhum motivo, ainda que durante o julgamento de um processo, mesmo que a Constituição garanta a inamovibilidade. E existem membros da cúpula dos tribunais concentrando indevidos poderes para decisões de urgência.
O princípio do ´juiz natural´ visa a preservar, fundamentalmente, a imparcialidade do julgamento. A necessidade de distribuir por sorteio os processos a juízes previamente definidos se justifica para evitar escolha de julgadores pelas partes ou de processos pelo próprio juiz, como se noticia ter ocorrido no TRT paulista. A distribuição imediata de processos, consignada na Emenda 45, impede que um único juiz seja escolhido para decidir todas as matérias liminares em tribunais, mesmo que seja ele o presidente ou o vice-presidente da Corte.
Recentemente, foi noticiado que uma medida liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) foi decidida à noite por seu presidente, antes que o processo pudesse ser distribuído ao relator sorteado, seu juiz natural. O fato poderia ter assumido maiores proporções porque, à vista de insinuação de supostos interesses político-partidários, o comportamento do primeiro mandatário do Judiciário nacional tem sido severamente questionado, como se evidencia em editorial deste mesmo jornal do último dia 21/10.
Tal como o nepotismo e a promoção por indicações políticas, a prática de livre designação de juízes e a concentração de poder nas mãos de um membro da cúpula também afrontam atributos que o Judiciário tem de mais caros: a independência do magistrado e a imparcialidade de suas decisões.
Marcelo Semer, juiz de Direito em São Paulo, é presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia. (publicado no Jornal O Estado de S. Paulo, 03/11/05)