Kenarik B. Felippe
O PAPEL do magistrado em relação ao tema da união heterossexual, assim como
em todos os demais, é o de ser o garantidor dos direitos humanos.
Constatamos que a legislação infraconstitucional e, principalmente, o
pensamento transmitido nas universidades têm como ponto irradiador a
propriedade, o que deu vazão para que o reconhecimento das relações pessoais
ocorra nos estritos termos de uma sociedade de fato, na qual o sentido é
exclusivamente a divisão do patrimônio. Sob este ângulo, são inexistentes
para aqueles que não têm bens. Há um mundo de excluídos entre os excluídos
homossexuais.
Contudo, os povos deram primazia, por tratados internacionais, ratificados
pelo Brasil, ao valor da dignidade humana, acolhido como paradigma e
referencial ético. É nesse nível que a relação homoafetiva deve ser
analisada, para qualquer efeito e finalidade.
Importante registrar que direitos humanos "não nascem todos de uma só vez e
nem todos de uma vez por todas". É um processo em construção, no qual o
Judiciário tem papel fundamental, que realiza pelas decisões de primeira
instância, construindo a jurisprudência e dando vida ao direito em seu
processo de transformação, acompanhando o giro do mundo.
Antes falávamos de heterossexuais; agora, de relações homoafetivas. O núcleo
da relação e da vida é outro, e essa compreensão os operadores do direito
precisam alcançar.
O Judiciário engatinha, mas há passos significativos. O STJ, em ementa que
teve como relator o ministro Quaglia Barbosa, que tratava de direito
previdenciário, fez constar: "Não houve, pois, de parte do constituinte,
exclusão dos relacionamentos homoafetivos, com vista à produção de efeitos
no campo previdenciário, configurando-se mera lacuna, que deve ser
preenchida a partir de outras fontes do direito".
Outra ementa, que teve como relator o ministro Humberto G. de Barros,
indicou que "a relação homoafetiva gera direitos e, analogicamente à união
estável, permite a inclusão do companheiro dependente em plano de
assistência médica".
O TSE, recentemente, considerou que o relacionamento homossexual estável
gera a inelegibilidade prevista no artigo 14, parágrafo 7º, da CF.
Temos inúmeras decisões relativas à guarda de filho e herança decorrente de
relações homoafetivas.
Em legislações estrangeiras, há previsão expressa de matrimônio entre
pessoas do mesmo sexo, como na Dinamarca, França, Portugal, Suécia e
Alemanha, entre outros. Em alguns países, há autorização de registro de
casais de um mesmo sexo e contratos especiais, como na Colômbia e Espanha e
em algumas Províncias da Argentina e do Canadá.
No Brasil, temos proposições legislativas de caráter restrito que não
chegaram a termo e estão nos meandros do Congresso. Entretanto, obrigatório
ressaltar recente norma brasileira, a Lei Maria da Penha, que trata da
violência doméstica e introduz novo parâmetro de aplicação do direito na
matéria, ao estabelecer no artigo 5º que as relações pessoais "independem de
orientação sexual".
A relação homoafetiva é um fato; hipocrisia fechar os olhos para sua
existência e cruel não garantir dignidade para essas pessoas. Ainda que o
nosso ordenamento jurídico infraconstitucional não discipline os direitos
advindos das relações homoafetivas, a dignidade da pessoa humana é
fundamento da República, que acolheu os princípios da igualdade e da
liberdade. Assim, cristalino que a união estável não pode ser entendida como
exclusivamente heterossexual.
Cabe ao magistrado atuar no vácuo normativo. Fábio Konder Comparato lembra
que "a finalidade última do ato de julgar consiste em fazer justiça, não em
aplicar cegamente as normas do direito positivo. Ora, a justiça, como
advertiu a sabedoria clássica, consiste em dar a cada um o que é seu. O que
pertence essencialmente a cada indivíduo, pela sua própria natureza, é a
dignidade de pessoa humana, supremo valor ético. Uma decisão judicial que
negue, no caso concreto, a dignidade humana é imoral e, portanto,
juridicamente insustentável".
Os magistrados têm a obrigação de dar eficácia à idéia de que os seres
humanos devem ter uma vida digna como atributo indissociável de suas
existências, e só atingiremos essa meta se, na lacuna legislativa, deixarmos
de tratar as pessoas envolvidas em relações homoafetivas como sujeitos de
segunda classe ou não sujeitos.
KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE, 47, juíza de direito em São Paulo, é presidente
da Federação de Associações de Juízes para a Democracia da América Latina e
Caribe e secretária do Conselho Executivo da Associação Juízes para a
Democracia.
[Artigo publicado na seção Tendências e Debates, do jornal Folha de S. Paulo, edição de 04/11/06]