Marcelo Semer
Nesta semana realizaram-se as eleições para os cargos de direção do Tribunal de Justiça de São Paulo, o maior do país. As eleições foram tão emocionantes quanto uma assembléia geral do PC chinês. Isto porque, dos cerca de 2.500 juízes, menos de 15% tinha direito a voto. E destes 360 afortunados, apenas 3, os desembargadores mais antigos, podiam ser eleitos. E como eram justamente três os cargos em disputa (presidente, vice e corregedor geral), tratou-se de uma dança das cadeiras sem riscos. Quando a música parou, todos os candidatos haviam assegurado um cargo de direção na Corte paulista pelo fato de serem antigos.
Este culto à gerontocracia ocorreu por causa de uma recentíssima decisão do Supremo Tribunal Federal. Os desembargadores mais antigos recorreram ao Procurador Geral da República e este, por sua vez, recorreu ao STF, para fazer valer na íntegra, em seu aspecto mais literal e draconiano, norma da Lei Orgânica da Magistratura, entulho autoritário dos anos 70, que disciplina (podando, como era o espírito da época) as eleições em tribunais.
Segundo a regra considerada válida, só podem disputar eleições nos tribunais os desembargadores mais antigos entre os mais antigos, na proporção de um para cada cargo em disputa. Como eram três cargos, só os três mais antigos puderam disputar. Oito meses depois da posse, nova eleição será feita para a sucessão do vice-presidente porque, sendo mesmo um dos mais antigos, já estará aposentado compulsoriamente antes da metade da gestão. No novo pleito, dada a lógica matemática da proposição, apenas um desembargador poderá ser candidato, o que exponencia o contra-senso.
Pode-se imaginar que esta é mais uma daquelas decisões que os juízes tomam sem ter a exata noção das conseqüências, porque, não raro, vivem fora do mundo real. Seguem a lei em automatismo e provocam resultados não previstos ou desejados. Infelizmente não é. O STF tinha plena consciência dos resultados, tanto que o voto condutor da decisão, do ministro Cezar Peluso, demonstrou claramente a aversão às eleições. Segundo ele, o procedimento aberto estaria alimentando paixões políticas, incompatíveis com as nobres funções dos juízes. E, pela porta do pluralismo, sentenciou, “estaria aberto o caminho para o sectarismo”.
É preciso dizer que a decisão do STF desconsiderou totalmente a Reforma do Judiciário, de 2004. A Emenda 45 alterou a composição dos órgãos especiais dos tribunais, de onde saem os candidatos aos cargos de direção. Minimizou a regra da antiguidade, ao prever que apenas metade dos membros deste órgão, uma espécie de Senado judicial, seriam empossados pelo critério etário. A outra metade viria pela eleição. Ao reduzir o impacto da antiguidade, a Reforma abriu a porta para eleições da direção envolvendo todos os desembargadores. A nova interpretação do STF ignorou um dos poucos avanços da Reforma do Judiciário e tratou as eleições como elas eram tratadas na década de 70.
A idéia de que seja possível administrar sem política não é apenas retrógrada e conservadora, pressupondo que exista uma tecnocracia da antiguidade, mas é também destituída de qualquer fundamento razoável.
Para gerir um orçamento de mais de quatro bilhões de reais, como será o de 2008, quais as prioridades da nova gestão? Apostar na construção de novos e suntuosos prédios ou em instalações de mais varas, para ampliar o serviço? Comprar modernos veículos de representação aos juízes ou apressar a informatização? Destinar verbas para mais assessores aos desembargadores ou mais funcionários para os cartórios de primeira instância? Criar varas nas periferias, onde reside a população mais carente de recursos e de justiça ou instalar juizados em aeroportos?
A democracia produz racionalidade porque impõe projetos e torna claras as opções políticas. Se a democracia é imprescindível para a administração dos bens e projetos públicos do Executivo e Legislativo, porque não o seria para o Judiciário? Só teme tanto a democracia quem nela não acredita. E se não acreditamos na democracia, faz sentido que seja o Judiciário o poder a conduzi-la? Estão os juízes aptos para exercitar o gerenciamento do processo eleitoral, se na casa dos ferreiros os espetos são de paus, porque os juízes não são aptos a decidir livremente?
A expansão da democracia moderna, dizia Bobbio, está no fato de mais instituições a praticarem dentro da sociedade. Em um Estado que se afirma Democrático de Direito, não há sentido a existência de lugares em que o exercício de democracia esteja proibido. Tanto mais em uma instituição pública, como o Judiciário.
Opondo-se durante longo tempo à democratização interna, as cúpulas dos tribunais argumentavam que o corporativismo tomaria conta do Judiciário se houvessem eleições diretas. O que se tem visto é que a defesa dos interesses de classe está ainda mais imbricada entre os donos do poder, como se notou pela resistência dos mais antigos ao fim do nepotismo e o movimento dos desembargadores pela preservação de salários acima do teto.
É ingenuidade imaginar que será possível modernizar o Judiciário, torná-lo eficiente e justo, igual e efetivo, independente e emancipador, sem que se possa democratizá-lo. É certo que a democracia interna está longe de ser suficiente para transformar o Judiciário, afinal, o Poder deve pertencer ao povo e não apenas ao conjunto de seus juízes. Mas a democratização se articula com outras exigências indispensáveis para uma necessária e profunda reconstrução da Justiça, como a valorização da independência do juiz e o controle social do serviço. Temos visto que uma coisa não vem sem a outra.
Justiça democrática é aquela apta a garantir a igualdade efetiva entre as partes, que não exclua os já excluídos porque não fazem jus a pisar em seus tapetes vermelhos, de chinelos; que consiga enxergar a tarefa primordial do juiz em garantir direitos fundamentais e jamais promover a discriminação.
A complexidade moderna exige um juiz atento ao caráter político da decisão e às suas repercussões sociais. Um juiz com formação interdisciplinar, que supere a vetusta idéia do direito como ciência pura, que exista não em função da pessoa humana, mas apesar dela. Um juiz-cidadão, que participe criticamente da sociedade, ponto de partida para compreendê-la e ser por ela compreendido. Um juiz que não abdique do papel de garantidor de direitos em troca de benefícios corporativos, impondo, quando necessário, a implementação de políticas públicas para assegurar que direitos escritos não se transformem em tigres de papel. E juízes que saibam gerir os recursos pensando no caráter de serviço público da Justiça e não como mera reprodutora de tradições e regalias.
Medo da democracia têm os mesmos que têm medo da igualdade e, por isso, preservam redes de proteção ao poder, como imunidades parlamentares e foros privilegiados.
Enfim, ao querer ver os juízes longe das paixões políticas, receando o pluralismo que é marca indistinta da democracia, o STF demonstrou que não quer um Judiciário que se afaste das tradições, que saia dos trilhos já previamente afixados, que se modernize ou se democratize. Deve manter-se onde sempre esteve, autocentrado, gerido pela gerontocracia, e de costas para o povo. Como uma legítima tropa das elites.
Marcelo Semer, membro e ex-presidente do Conselho Executivo da AJD
[esta matéria foi publicada originalmente na Terra Magazine, dia 07/12]