Márcia Novaes Guedes¹
“A engenheira Elza Maria Lianza, de 25 anos, presa no Rio, narrou em seu depoimento, em 1977:
[...] que a interrogada foi submetida a choques elétricos em vários lugares do corpo, inclusive nos braços, nas pernas e na vagina; que o marido da interrogada teve oportunidade de presenciar essas cenas relacionadas com choque elétrico e os torturadores amplificavam os gritos da interrogada, para que os mesmos fossem ouvidos pelo seu marido”.
Esse depoimento e muitos outros está no livro BRASIL NUNCA MAIS __ UM RELATO PARA A HISTÓRIA [editora Vozes, 5ª edição], livro que conta os horrores da ditadura brasileira de 1964-1985.
“De joelhos, em praça pública, pedindo perdão ao povo brasileiro”! Essa foi a sentença do jurista Fabio Konder Comparato, lançada, numa carta indignada, ao editorialista e ao diretor do Jornal Folha de São Paulo.
A ira de Comparato é justa. Na edição de 17/02/09, a Folha definiu a ditadura brasileira de DITABRANDA. De acordo com os donos do jornal, o regime instaurado com o golpe de estado de 1º de abril de 1964, que rompeu com a ordem constitucional, expulsou o Presidente da República, eleito democraticamente, torturou, matou e exilou inúmeros brasileiros e brasileiras, se comparada a outros regimes, não foi dura, mas branda.
Diante das cartas, indignadas, de Comparato e da socióloga e professora da USP Maria Victoria de Mesquita Benevides, a Folha baixou o nível e xingou os dois. A defesa de ambos veio num manifesto com mais de 3 mil assinaturas, que circulou na internet em pleno carnaval, e a Folha se desculpou.
Para a professora Maria Victoria de Mesquita Benevides, “o que explica essa inacreditável estupidez da Folha de São Paulo é um insidioso revisionismo histórico conduzido por certos políticos acadêmicos e jornalistas” [Carta Capital, 04/03].
O episódio protagonizado pela Folha não é inédito, tem precedentes históricos e consequências funestas. O maior pesadelo que torturava os prisioneiros dos campos de concentração e extermínio nazistas era __ se sobrevivessem __ descrever para os homens livres sua triste história e não serem acreditados. Viver para contar, essa foi a razão que alimentou Primo Levi a lutar pela sobrevivência em Auschwitz.
Primo Levi era um jovem químico com um futuro brilhante, mas em 13 de dezembro de 1943, aos 24 anos de idade, foi capturado pelos fascistas e, como era italiano descendente de judeus, foi levado para o campo de concentração de Fossoli, perto de Modena, província de Bolonha.
Em Fossoli, ele conviveu, por alguns meses, com centenas de outros prisioneiros, homens, mulheres e crianças. Num determinado dia, todos foram informados de que iriam partir no dia seguinte. Por informações dos refugiados poloneses e croatas, eles sabiam que “partir” significava Auschwitz, o maior campo de extermínio dos nazistas.
Em Se Questo è Un Uomo [Se isto é um homem] __ obra recusada por diversas editoras e publicada 13 anos depois da Guerra __ Primo Levi descreve a pavorosa noite da véspera da partida. Particularmente, considero essa passagem a mais sincera homenagem a nós mulheres, por isso transcrevo-a na íntegra:
“E veio a noite, e foi uma noite tal, que se sabe que olhos humanos não deveriam assistir e sobreviver. Todos sentiram isso: nenhum dos guardas, quer italianos, quer alemães, teve ânimo de vir ver que coisa fazem os homens quando sabem que vão morrer. “Cada um se despediu da vida do modo que melhor lhe competia. Alguns rezaram, outros beberam além da conta, outros se inebriaram de nefasta e última paixão. Mas as mães vigiaram e prepararam com doçura e cuidado o alimento para a viagem, lavaram as crianças, fizeram as bagagens; ao raiar do dia, os varais estavam cheios de roupas infantis estendidas ao vento para enxugar; e não esqueceram as fraldas, e os brinquedos, e os travesseiros, e centenas de pequenas coisas que elas bem sabem, e das quais as crianças sempre necessitam em qualquer caso. Não fariam também vocês a mesma coisa? Se fossem mortas amanhã com suas crianças, vocês não lhes dariam hoje o que comer?”
Animado pela idéia de não permitir que aquele crime contra a humanidade, praticado no corpo de judeus e ciganos, se repetisse, Primo Levi publicou muitas outras obras e realizou dezenas de conferências em toda a Europa. E, em 1986, publica seu último livro: I Somersi e i Salvati [Afogados e Salvos]. Este livro surge, precisamente, quando ele sente que forças se erguem para cancelar a história e reabilitar politicamente o nazismo.
Em Junho de 1986 se trava o confronto entre o historiador Ernest Nolte e o filósofo Jürgen Habermas. O debate se desenvolve em torno das teses do primeiro. Segundo Nolte, o genocídio nazista teria sido uma resposta ao terror comunista; a conquista do Leste Europeu entre 1944-1945 teria sido uma escolha patriótica do exército alemão e não uma estratégia para sustentar o prosseguimento, em modo ainda mais radical, do extermínio; e Auschwitz teria sido apenas uma mera inovação tecnológica.
Primo Levi não viveu para ver o extermínio do povo palestino pelos judeus. E, diante das evidências de que o mundo caminhava para fazer tudo de novo, preferiu por fim a própria vida. Contemporaneamente, um bispo mereceu a mais veemente reprovação pública mundial e foi expulso da Argentina por ter negado o genocídio dos judeus. Israel, porém, prossegue incólume, exterminando crianças, mulheres e adolescentes palestinos.
Em sua carta para a Folha de São Paulo, Fabio Konder Comparato deixa a lição que todo cidadão não deve esquecer: “Quando se trata de violação a direitos humanos, a medida é uma só: a dignidade de cada um e de todos, sem comparar importâncias e estatísticas”. Ao se referir a Auschwitz, Hannah Arendt lembra a mesma coisa, não importam os números. “Lá aconteceu qualquer coisa com a qual não podemos nos reconciliar. Nenhum de nós pode.”
Para equacionar o dilema entre a angústia da morte e o desejo da imortalidade é que os humanos desenvolveram o culto da memória e inventaram a história. Mas, diante de fatos que nunca poderiam ter acontecido, surge o paradoxo da memória. Lembrando Hegel, Hannah Arendt ensina que, a obrigação do intelecto é compreender o acontecido. Quando compreendemos nos reconciliamos com a realidade. Então, o objetivo da compreensão é o de se colocar em paz com o mundo. Se a mente é incapaz de pacificar e reconciliar, se torna prisioneira da própria guerra __ conclui Arendt. Assim, a reconciliação se dá por meio da apuração rigorosa dos fatos, único modo de compreender qual foi o papel que cada um desempenhou.
O Beatle John Lenon costumava dizer: “Não confie em ninguém com mais de 30 anos!” Hoje, é precisamente o contrário. A moçada com menos de 30 anos deve cuidar para não ficar “boiando em espumas” e depois se lamentar dessa nossa história pendular, que oscila entre ditadura plena e democracia relativa.
05 de março de 2009.
¹A autora é Juíza do Trabalho, autora do livro Terror Psicológico no Trabalho [LTr, 3ª edição], Doutora pela Universidade de Roma e membro do IBDT e da AJD.