Carlos Felipe Moisés
Os poetas de antigamente, quando falavam da cidade, falavam no geral com admiração e orgulho, a paisagem urbana tinha para eles uma marca positiva, índice de dinamismo, progresso, modernidade. Havia uma ou outra voz destoante (o Baudelaire dos “Tableaux parisiens”, o T.S. Eliot de “The waste land”, o Cesário Verde de “O sentimento de um ocidental”), mas o que predominava era o fascínio e o encantamento.
Já os poetas de hoje veem a cidade assim:
Um slide
[Sérgio Alcides, O ar das cidades, São Paulo, Nankin, 2000, págs. 30-31]
Mal consigo ler
a cidade no meio das letras
a gente fora dos outdoors.
Há muitos destroços
de palavras e luzes, rebites e bits
cobrindo o coração.
Suponho que tem um coração (e erro).
Não distingo seu ruído pelas ruas que clamam Pour Élise.
Ponho este poema – um slide – deitado na linha do horizonte.
Não desisto de desatar o enleio dos edifícios na paisagem-pregão.
Se houver um desabamento
o poema ficará no ar
escorado nos gritos.
Mas os letreiros, não.
O Tietê não vai ao mar
[Ruy Proença, Visão do térreo, São Paulo, Editora 34, 2007, págs. 39-40]
Vem, Lídia,
enlacemos as mãos
e atravessemos correndo
as sete pistas da via expressa
para não sermos atropelados
como os cães.
Vem, Lídia,
cheguemos mais perto
do rio retificado
ignoremos o barulho dos carros, o mato das margens.
Ignoremos os detritos na correnteza
e o cheiro nauseabundo.
Vem, Lídia,
mas não nos sentemos:
que a surpresa
de um cadáver com ratazanas
pode nos casar a ferro quente
para toda a eternidade.
Vem, Lídia,
desenlacemos as mãos,
não mais nos toquemos.
Simplesmente
deixemos a vida passar
como o rio passa: sem religião, um féretro, um morto.
Labirinto
[Tarso de Melo, Lugar algum, Santo André, Alpharrabio, 2007, pág. 45]
é da ordem do lugar não conseguir voltar
conscientemente ao mesmo ponto, perder
a cada passo o rumo previsto e qualquer
segurança no que vem a seguir; é comum
mesmo quando há menos pessoas (e quase
nunca há menos pessoas aqui), que lojas
troquem de lugar quando as procuramos,
barbearias virem casas de café que viram
lojas de bugigangas que viram alfaiatarias
que viram passa-se-o-ponto e desaparecem
à luz do dia; é aventura do lugar fixar linhas
imaginárias, afirmar pontos de referência,
transpor a multidão de um ponto a outro
levando na mente aquele de que se partiu
e aquele a que se quer chegar (até que, nele,
se desfaz a ilusão de achar que chegamos)
“Meu avô não viu”
[Annita Costa Malufe, Nesta cidade abaixo de teus olhos, Rio de Janeiro, 7Letras, 2007, pág. 17]
meu avô não viu os anos noventa
sob os monumentos dispersos na cidade antevejo algumas cicatrizes
lugares que não foram meus
tempos não são mais que lugares
dispersos
em uma cidade cicatriz que não foi nossa
tempos dispersos
e meu avô não viu os lugares
não viu os nossos lugares naqueles anos
meu avô e os monumentos da cidade
os anos noventa e os outros anos –
lugares a que não temos como ir
“a cidade deserta”
[Diniz Gonçalves Júnior, Decalques, São Paulo, Ed. do A., 2008, pág. 65]
a cidade deserta
lírica, imprecisa
um menino atrás do seu sonho
seu outubro
fugindo da maquinaria incessante
de seus dias iguais
Um outro homem inacabado
[Donizete Galvão, O homem inacabado, São Paulo, Portal, 2010, pág. 61]
Nesta cidade impermanente
um homem jamais está inteiro.
Parte perdeu-se em alguma rodovia,
outra sonha com montanhas,
água de bica, cachoeiras, maresia.
Esta cidade de São Paulo
nunca está arrematada,
corpo sempre em retalhos,
mutantes arquiteturas
que não penetram nas veias.
Nesta cidade de São Paulo
um homem constroi sua casa
como uma flor amarela
que teima em brotar
em zona de perigo.
Efêmera, como outras,
destinada à demolição.
Casca fina e provisória,
fraca diante das ventanias,
das máquinas e da solidão.
Nesta cidade dividida
cada homem é estilhaço,
entulho jogado na caçamba
porque há outro na fila
para ocupar o seu espaço.
É só meia dúzia de exemplos, eu poderia acrescentar uma, duas dúzias, mas é o suficiente para mostrar que o fascínio exercido pela cidade aumentou (os poetas de hoje falam mais da cidade do que os antigos), só que aumentou no rumo negativo: a cidade moderna provoca desconforto, aversão, náusea; é um território hostil, ameaçador, repleto de entulho, dejectos, sinais de destruição; é o espaço percorrido pelas pessoas sempre como transeuntes, como se ninguém vivesse ali, como se todo mundo estivesse ali só de passagem, forçado; ninguém é de fato habitante da cidade, cidadão. Para o poeta, a cidade moderna é a negação da verdadeira vida, é símbolo de desumanização.
Mas não vejo isso como negativo em si. Essa imagem desolada é manifestação de revolta, indignação, vontade de mudar, desejo de reumanizar o homem. Negativo seria os poetas olharem para isso tudo e acharem normal.