Os transgênicos e a deliciosa arte de comer veneno: o que os olhos não veem, o estômago sente

Fernando Antônio de Lima

Juiz de Direito em São Paulo e Membro da AJD.

No dia 28 de abril de 2015, a Câmara dos Deputados aprovou, por 320 a 135, o Projeto de Lei nº 4.148/2008, de autoria do Deputado Luis Carlos Heinze (PP-RS). Se houver aprovação no Senado, não será mais necessário informar ao consumidor a existência de transgênicos nos alimentos. A informação só se torna obrigatória, no concurso destes dois requisitos: a) se houver mais de 1% de Organismos Geneticamente Modificados no alimento; b) necessidade de uma análise técnica laboratorial detalhada. Caso contrário, sem a análise detalhada que detecte a existência de mais de 1%, dispensa-se a informação ao consumidor.

Hoje, há símbolos que identificam os transgênicos. A justificativa do projeto é de que tais símbolos denigrem a imagem dos transgênicos e enganam os consumidores. A solução, pois, é retirar a informação, para manter informado o consumidor![1].

Por verdade na mentira é um artifício velho. O capitalismo à brasileira é pródigo nessa arte. O projeto de abolição da escravatura foi tido como uma espoliação ao direito à propriedade; os escravos não deixariam as fazendas, “pelo gosto de morrer onde nasceram”[2].

Oprimir para garantir a liberdade e esconder para informar são as facetas de um drama histórico do Brasil: o verme do lucro, que nos deu escravos, agora, sorrateiro, quer plantar o câncer nos nossos estômagos.

E já me adianto: sou a favor da biotecnologia no campo. Mas da biotecnologia posta a favor da vida - e não dos transgênicos, pelo menos na maneira como cultivados no Brasil.

Mas o que esconde, em verdade, além da verdade[3], o projeto dos transgênicos calados?

São duas grandes colunas. A primeira: defecção na saúde, no meio ambiente, na vida. A segunda: controle, por multinacionais, da nossa comida.

Vamos à primeira coluna.

A engenharia genética permite que fabricantes de agroquímicos criem sementes (transgênicas) resistentes aos agrotóxicos produzidos por esses mesmos fabricantes. Permite, também, a criação de sementes que produzem plantas inseticidas.

O uso de sementes transgênicas – ao levar à resistência de ervas daninhas e de insetos – obriga o agricultor a aumentar a dose de agrotóxicos.

Os agrotóxicos, por sua vez, prejudicam macro e micro-organismos benéficos à fertilização dos solos, afetam predadores naturais, causando desequilíbrios ecológicos. Em suma, destruição à biodiversidade agrícola, quando se sabe que a biodiversidade é uma garantia de que, nestes tempos de crise climática, teremos alimentos para comer[4].

Relatório do Instituto Nacional do Câncer (Inca), divulgado no dia mundial da Saúde (8/4/2015), aponta que agrotóxicos usados na lavoura podem causar câncer na população e nos trabalhadores rurais. Cerca de 280 estudos, em revistas científicas internacionais, estabeleceram uma relação entre câncer e pesticidas.

Segundo esse mesmo relatório, a liberação das sementes transgênicas é responsável por colocar, o Brasil, no 1º lugar no consumo dos agrotóxicos – o Brasil, hoje, é o 2º maior produtor de transgênicos no mundo[5]. A solução é investir na agroecologia e na produção orgânica, aponta o Inca.

Mas não é só câncer que os agrotóxicos gostam de espalhar na população brasileira. Os agrotóxicos, diz o Inca, têm uma lista extensa de prejuízos à saúde do povo brasileiro – infertilidade, diarreias, abortos, malformações, desregulamentação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico.

A segunda coluna não é menos grave. O cimento, que a sustenta, remete a tempos amargos. Estamos – nós, País abundante – arriscados a frequentar a miséria da fome. Meia dúzia de senhores – donos de multinacionais e do nosso direito básico de comer o pão diário – agarrara-se ao prazer de controlar o que nós comemos e o preço que deveremos pagar pela nossa comida.

Por isso, o lugar escuro e inacessível para onde querem esconder os transgênicos revela muito mais do que subtrair o direito à informação. O projeto é mais profundo. “São coisas que não cabem em fazer ideia”[6], ou “a gente sabe mais, de um homem, é o que ele esconde”[7], ou “a senvergonhice reina, tão leve e leve pertencidamente, que por primeiro não se crê no sincero sem maldade”[8].

Pequeno grupo de multinacionais domina o mercado das sementes transgênicas. No Brasil, das 39 plantas geneticamente modificadas, aprovadas pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, 16 são da Monsanto, 9 da Bayer e apenas 2 da Embrapa.

As sementes nativas ou crioulas compõem a relação entre ser humano e natureza, alimento para o corpo e para as emoções, insinuam partilha, relação com o sagrado. Podem ser plantadas e reproduzem ano a ano. Constituem patrimônio do povo. Já as sementes transgênicas e híbridas não suportam mais do que duas safras, a partir do quê perdem o vigor. Existe tecnologia que impede o plantio – “terminator” -, gera sementes suicidas. As sementes transgênicas, além disso, são propriedade das multinacionais. A aquisição depende de pagar “royalties” ou licença de plantio à empresa produtora. Por isso, os transgênicos são a semente do império[9].

O projeto de lei – de esconder o consumo dos transgênicos – é uma página histórica de indecência, um documento voraz que entrega ao lucro da insensatez o nosso direito inalienável de alimentar-se. Essa gente, que de gente gosta nada – ventanias de soberba que pelo lucro mata, pelo lucro espalha a fome – essa gente é pródiga na arte de matar – sem metralhadoras e fuzis – uma nova arte de guerra, plantada pelo assanhamento do imperialismo multinacional.

Hoje, não há no mundo falta de alimentos, mas sim falta de acesso. A cada 5 segundos, uma criança de menos de 10 anos morre de fome, 56 mil pessoas morrem de fome por dia. A agricultura mundial moderna é capaz de alimentar 12 bilhões de pessoas, com 2,2 mil calorias por dia. Então, uma criança que morre de fome é assassinada. É massacre criminoso, organizado[10].

A partir da crise mundial de 2008, intensificou-se a especulação nas bolsas de commodities com alimentos (trigo, arroz e milho). O preço aumentou significativamente. Na favela em Lima (Peru), as famílias têm menos de US$ 1 por dia, para comprar arroz. Em vez de comprar 1 quilo, compram no máximo 1 copo de arroz. Para alimentar as crianças. O setor de alimentos é o mais concentrado e cartelizado da economia mundial. Há 10 grupos multinacionais que controlam 85% dos alimentos comercializados no mundo, definem os preços – poder que ninguém jamais teve sobre a humanidade (nem papa, rei nem imperador). “Eles decidem, a cada dia, com a definição dos preços, quem vai comer e viver e quem vai ter fome e morrer”[11].

Por isso, esses especuladores de alimentos deveriam ser colocados diante de um tribunal internacional por crime contra a humanidade, diretamente responsáveis pela morte de milhares de pessoas[12].

Não basta comer os transgênicos, e os agrotóxicos que os nutrem. Agora querem que nós os comamos sem saber, sob a justificativa de que assim seremos melhor informados. O que os olhos não veem, o estômago sente. Sente até o momento em que os senhores das multinacionais resolverem que o povo brasileiro não tem direito à alimentação. Aí, em vez de morrermos por câncer, o direito que teremos será o de morrer de inanição.


Fernando Antônio de Lima

Juiz de Direito do Juizado Especial de Jales-SP. Membro da Associação Juízes para a Democracia.


[1]Vejamos parte da justificativa apresentada pelo Deputado Luis Carlos Heinze (PP-RS), a demonstrar tão preocupado ele está com a informação prestada ao consumidor:

“Ressaltamos que defendemos o direito do consumidor ser informado sobre as características ou propriedades dos alimentos.

“Entretanto, o direito à informação deve ser aplicado em consonância com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (...).

“A questão da biotecnologia no Brasil foi extremamente politizada. Algumas organizações, sob o pretexto de informar o consumidor, pretendem que o rótulo do alimento funcione como ferramenta de contra propaganda (...) É por tais razões que elaboramos a presente proposta de alteração da Lei n° 11.105/05 para que as regras de rotulagem possam atingir seu fim, estabelecendo o critério da detectabilidade, o limite de presença não intencional de OGM e a forma da informação de modo a não confundir o consumidor”.

[2] Machado de Assis. Memorial de Aires, p. 29. São Paulo: Globo, 1997.

[3]Eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados” (João Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas, p. 237. 19ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001). Queremos, brasileiros, que o informar se aparte do esconder e que a verdade seja o prato saboroso das nossas refeições diárias.

[4]Disponível em: www.greenpeace.org./brasil/pt/)-que-fazemos/Transgenicos/gclid=. Acesso: 5/6/2015.

[5]Os defensores dos transgênicos sustentam que não é a liberação dos transgênicos que fez aumentar o uso de agrotóxicos no Brasil, mas o aumento da produtividade no campo. De qualquer forma, não podemos negar que as multinacionais criam sementes transgênicas exatamente adaptáveis aos agrotóxicos produzidos por essas mesmas multinacionais. Há uma relação indissociável, no Brasil, entre transgênicos e agrotóxicos.

[6]Guimarães Rosa, ob. cit., p. 227.

[7]Guimarães Rosa, ob. cit., p. 353 e 354.

[8]Guimarães Rosa, ob. cit., p. 162.

[9]Horácio Martins. Transgênicos: sementes do império. Disponível em: http://www.servicioskoinonia.org/agenda/archivo/portugues/obra.php?ncodigo=161. Acesso: 7/6/2015.

[10]É o que diz Jean Ziegler, sociólogo, relator da ONU para o direito humano à alimentação entre 2000 e 2008. Entrevista concedida ao jornal O Globo. Disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/07/13/uma-crianca-que-morre-de-fome-hoje-assassinada-diz-jean-ziegler-503352.asp. Acesso: 5/6/2015.

[11]Jean Ziegler, entrevista citada.

[12]Jean Ziegler, entrevista citada.