As decisões monocráticas nos tribunais e a independência judicial

José Henrique Torres

“Cessa tudo que a antiga Musa canta, quando outro valor mais alto se alevanta” (Camões).

No próximo dia 27 de janeiro, o Tribunal de Justiça de São Paulo, por seu órgão censor de cúspide, terá mais uma importante oportunidade para reafirmar a independência judicial como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito.

Uma Desembargadora, no desempenho de sua função jurisdicional, atuando como Relatora em uma Câmara Criminal, em mais de cinquenta processos, ao constatar que os réus estavam presos, preventivamente, por mais tempo que aquele imposto para o cumprimento da pena infligida na sentença condenatória recorrida, determinou, monocraticamente, a sua soltura imediata. E, por ter assim decidido, está prestes a responder a um processo disciplinar, acusada de ter violado o “princípio da colegialidade”, ou seja, por ter determinado a soltura dos condenados, cautelarmente, sem antes submeter o recurso ao julgamento do colegiado.

Certamente, no juízo de libação dessa acusação, o órgão disciplinador do TJSP lembrar-se-á do disposto no artigo 232 de seu Regimento Interno para reconhecer o cabimento de tais decisões monocráticas, pois esse dispositivo normativo afirma, expressamente, que “as medidas assecuratórias previstas no Código de Processo Penal (...), quando urgentes e de manifesto cabimento, serão processadas pelo Relator (...) do recurso pendente de julgamento no Tribunal (...)”. Aliás, não será olvidado, com certeza, que, exatamente com base nesse dispositivo normativo, praticamente todos os dias, são proferidas decisões cautelares monocráticas pelos Relatores de recursos interpostos nesse tribunal, bem como em todos os demais tribunais deste país, sem qualquer alegação de violação ao princípio da colegiabilidade, tanto no âmbito da justiça cível como criminal, ad referendum do colegiado, inclusive para cassar benefícios concedidos aos réus em decisões de primeira instância.

E, com a mesma certeza, também será lembrado que, em um Estado Democrático de Direito, aos juízes e juízas cabe zelar pelo império dos direitos fundamentais, pois, “nas sociedades democráticas modernas, submetidas ao império do direito, a proteção dos direitos humanos é tarefa que incumbe ao Poder Judiciário” (Dalmo Dallari, O poder dos juízes). Assim, mesmo que não existisse aquele dispositivo normativo do RI do TJSP, ainda assim caberia ao Relator decidir, monocraticamente, sobre questões urgentes que implicassem violação a direitos humanos. Aliás, inaceitável e merecedora de censura seria a omissão de um magistrado diante da constatação flagrante de uma evidente violação a um direito fundamental. Tal omissão não implicaria mera conivência, mas, sim, cumplicidade com a arbitrariedade. É por isso que o CNJ, no final de 2015, celebrou um convênio com a CIDH, comprometendo-se a implantar a temática de Direitos Humanos nos concursos e cursos de formação dos magistrados brasileiros. Há poucos anos, uma pesquisa nacional com os magistrados brasileiros revelou que apenas 2,7 % deles havia lido, por exemplo, o Pacto de San José da Costa Rica! Isso talvez explique o porquê da resistência dos juízes e juízas à aplicação das normas de direitos humanos, inclusive como fator preponderante de interpretação de nosso sistema jurídico. Decididamente, portanto, será lembrado, nessa histórica sessão disciplinar do TJSP, que a proteção dos Direitos Humanos constitui, sobretudo, um dever de todos os juízes e juízas.

Todavia, a questão a ser enfrentada extrapassa o âmbito singelo da aplicabilidade ou não de uma norma regimental interna e é muito maior do que a discussão sobre o acerto, o cabimento ou a oportunidade das decisões de uma Desembargadora Relatora em face do princípio da colegiabilidade.

Trata-se, na realidade, de ser garantida ou não a independência judicial, que é uma premissa da jurisdição, não uma prerrogativa dos juízes e juízas, mas um direito do próprio cidadão. A independência judicial é imprescindível para a mantença do Estado Democrático de Direito e não existe como um privilégio, mas para que os juízes e juízas possam ser garantes dos direitos fundamentais. Por isso, comprimir a independência, exigir submissão nos julgamentos ou punir administrativamente pelo exercício do julgar é o que se pode chamar de suicídio na magistratura. É mortal para a democracia retirar do juiz a independência. Esse proceder não afeta apenas o magistrado em sua prerrogativa funcional, mas, sim, e principalmente, o cidadão de quem se subtrai o direito a um foro que possa fazer cumprir e garantir os demais direitos. É por isso que não se pode admitir que qualquer magistrado seja disciplinarmente processado por decisão jurisdicional que tenha regularmente proferido em seu ofício.

É preciso repelir qualquer tipo de ameaça de punição ou de exercício de poder censório contra atividade jurisdicional ou qualquer tipo de intimidação a qualquer magistrado por membro de qualquer dos Poderes, inclusive do próprio Judiciário.

Aliás, do Manual para o Fortalecimento da Independência e Transparência do Poder Judiciário na América Latina, consta que o seu principal interesse é chamar a atenção sobre a maneira como a distribuição de funções de governo e administração da magistratura pode incidir sobre a independência dos juízes, alertando para o fato de que a concentração de um poder disciplinar excessivo nas cúspides dos tribunais pode recortar a liberdade de julgamento dos juízes e juízas, que, subjugados às esferas disciplinares, podem ser pressionados e deixar de lado a garantia de direitos para decidir conforme as preferências de quem exerce o poder de conduzir a instituição.

Cabe ao Poder Judiciário, sim, no âmbito das instâncias jurisdicionais, analisar as decisões proferidas e aferir seus erros e acertos, mas são ilegítimas e descabidas, para tanto, providências de controle administrativo e disciplinar. A independência judicial exige que “o magistrado não estará submetido a pressões de poderes externos à magistratura, mas também implica a segurança de que o juiz não sofrerá pressões dos órgãos colegiados da própria magistratura”.

É por isso que a ONU, em seu 7º Congresso, em 1995, ao adotar os princípios básicos relativos à independência judicial, afirmou que (1) “a independência da magistratura será garantida pelo Estado e consagrada na Constituição ou na legislação nacional, pois é dever de todas as instituições, governamentais e outras, respeitar e acatar a independência da magistratura” e (2) que “os juízes devem decidir todos os casos que lhes sejam submetidos com imparcialidade, baseando-se nos fatos e em conformidade com a lei, sem quaisquer restrições e sem quaisquer outras influências, aliciamentos, pressões, ameaças ou intromissões indevidas, sejam diretas ou indiretas, de qualquer setor ou por qualquer motivo”.

Como afirma Comparato,“os juízes individualmente e o judiciário como órgão estatal não estão subordinados a nenhum outro poder do Estado, mas vinculam-se, sempre, diretamente, ao povo soberano”, pois a garantia da independência judicial “é um mecanismo de proteção dos poderes públicos destinado a proteger os direitos fundamentais da pessoa humana”.

Portanto, é preciso refutar acusações a juízes fincadas em ilegítima pretensão reducionista de cláusulas pétreas constitucionais de garantia da liberdade, evitando-se, assim, que sejam solapados os alicerces do próprio Estado de Direito Democrático e da independência judicial.

Em uma sociedade democrática, como esta em que vivemos, é preciso preservar a independência judicial e respeitar o pluralismo, a diversidade de ideias e as divergências, mas, sobretudo, repudiar a punição ao dissenso e repelir a pretensão de se estigmatizar os divergentes com o sinete da subversão ou da indisciplina.

Negar a independência judicial e a autonomia dos magistrados, que devem submeter-se, apenas, aos princípios de garantia constitucionais e aos direitos fundamentais, implica sepultar a democracia nas sombras dos ínferos, aniquilando o sentido do próprio Poder Judiciário, pois, sem essas imprescindíveis garantias, a sociedade ficará com as portas escancaradas para o totalitarismo e, em consequência, a própria atividade judicial, guardiã da independência e da liberdade, será anulada.

É por isso que, no próximo dia 27 de janeiro, o Tribunal de Justiça de São Paulo, por seu órgão censor de cúpula, terá mais uma importante oportunidade para reafirmar a independência judicial como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito.

Afinal, como o inconformismo é sinônimo de esperança, “quero que a justiça reine em meu país” (Milton Nascimento).

José Henrique Torres é Juiz de Direito e Professor de Direito Penal e Processual Penal. Foi Presidente da Associação Juízes Para Democracia (AJD).

Texto disponível também no site Justificando: http://www.justificando.com/2016/01/26/nesta-semana-tjsp-tera-oportunidade-de-reafirmar-independencia-judicial/