O estranho mundo de Mariana – um conto marxista

Átila Da Rold Roesler e Rafael da Silva Marques

Mariana acordou no meio da manhã completamente nua e, desorientada, percebeu que não sabia mais onde estava. Demorou para levantar-se, pois lhe faltavam forças. Estava ferida. Em pé, não conseguiu olhar direito ao seu redor. O sol forte castigava impiedosamente seus olhos. Deu um ou dois passos e desabou. Do chão, olhou em volta e não conseguiu ver nada além de montanhas de areia. Sentia o vento. Parecia estar no deserto, não havia nenhuma pessoa, nenhuma construção próxima, não havia coisa alguma. Só areia, sol e vento. Levantou-se outra vez e tentou caminhar. A sede lhe matava. O correr da areia flechava suas pernas como pequenos alfinetes. Foi então que lembrou das máquinas.

Caminhou por alguns quilômetros, mas viu que era inútil prosseguir. Onde estou? Que fazer? Para onde vou? O que houve com o mundo? Não sabia. Mas por que se lembrou das máquinas?

De súbito, Mariana percebeu atrás de sua panturrilha um pequeno tubo que despontava. Puxou-o com força e sangrou. Sem sentir dor, descartou a pequena peça na areia. Confusa, o gesto lhe fez lembrar de novo das máquinas.

E lembrou que as máquinas reproduziram mercadorias e modos artificiais de vida, mas não sentimentos. Lembrou que as máquinas retiraram da maioria das pessoas a capacidade de pensar no outro e de ser solidário. Recordou que as máquinas comandaram a vida humana por décadas e trouxeram o caos. Mas o que houve, pensou Mariana. As máquinas teriam desaparecido também? Será que o sistema é autofágico até mesmo para elas? Por que recordava disso se não lembrava sequer da própria identidade? Por que estar nua, no deserto, ferida, no meio do nada?

Os últimos passos do sistema capitalista predatório foram dados. A última máquina se desconecta de si mesma e o caos mecânico se impõe no mundo. “Onde erramos?” Essa foi a última expressão determinada pela última máquina.

Mariana lembrou-se disso.

Os humanos passaram a combater, como máquinas, os próprios humanos, criando máquinas e mais máquinas contra a própria humanidade, numa reprodução sem fim da mercadoria. E não eram máquinas de guerra. Eram máquinas produtivas, tecnológicas, agrícolas e do lar que começaram a pensar a produção, a rotina, a circulação, os bancos, as plantas, a própria economia. Dominados por isso, os humanos passaram a imitar a rotina das máquinas e foram perdendo a conexão uns dos outros. Perderam o sentido de suas próprias vidas. Mas, afinal, o que fazia sentido? Quem eram as máquinas?

Só o que importava era a máquina e seu movimento. A sincronia com ela. O olhar vazio e frio do aço e do algoritmo. O conjunto das regras e procedimentos lógicos perfeitamente definidos que levam à solução de todos os problemas em um número finito de etapas. A inteligência é a inteligência artificial que a todos servia. Sem sentimento, compaixão e solidariedade não restou nada da humanidade. As relações líquidas e sem consistência fizeram das máquinas as donas do mundo.

Mariana só então percebeu que não sentiu dor no local do ferimento. Aliás, estranhamente a peça extraída parecia parte de si. Sou um ciborgue, um robô, pensou. Meu pensamento é artificial? O que seria natural? Respiro? Sangro? Sim, logo sou orgânica. Mas não tinha muita certeza.

De longe, Mariana avistou um homem vindo rapidamente em sua direção. Ele também parecia estar perdido no deserto. Vestia uma capa cinza e usava botas. Ela apressou-se para alcançá-lo. Poderia obter as respostas que lhe faltavam. Mas o sol queimava a sua face. De repente, não enxergava mais. Parou de ouvir. Sua mente tornou-se turva e, depois, escura. Perdeu a consciência de si própria. Aos poucos, a escuridão dissipou-se e Mariana voltou a si. Atônita, percebeu o homem caído na sua frente. Inerte. O que teria ocorrido? Em suas mãos, Mariana tinha sangue. E mais uma vez estava ferida. De repente, percebeu que o homem também tinha um pequeno tubo que despontava atrás de sua panturrilha. É um ciborgue, um robô, pensou.

Mariana não lembrava do que havia acontecido. Poderia ter posto fim à agonia horrível de estar só no deserto e obter as respostas que tanto precisava, mas não o fez. E não o fez de forma inconsciente. Sou máquina, mas respiro, sangro? Ajo sem consciência?

De repente, Mariana percebeu que não tinha mais sede.


* Os autores são juizes do trabalho na 4ª Região e membros da Associação Juízes para a Democracia (AJD).