Improbidade Administrativa

VISTOS

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO ajuizou ação civil pública com pedido de liminar em face de ORLANDO MOSCA DIZ, aduzindo, em síntese, que, em 25 de novembro de 2005, o réu se dirigiu à casa de Ângela Maria Ferreira dos Santos para tratar de assuntos referentes à alteração do Regimento Interno da Casa de Leis visando possibilitar sua recondução à presidência da Câmara Municipal na legislatura seguinte, cuja sessão legislativa ordinária para reelegê-lo se realizaria no dia 06 de fevereiro de 2006.

Contudo, durante a conversa, para conquistar o voto da vereadora, o requerido lhe ofereceu em troca a importância de R$20.000,00 (vinte mil reais), além de 02 (dois) cargos com salários de aproximadamente R$2.200,00 (dois mil e duzentos reais) cada. Oportunamente, disse que outros vereadores já haviam aceitado a proposta, que seria sacramentada em um churrasco que promoveria em sua própria casa no dia seguinte ao diálogo.

Ocorre que a conversa foi gravada pela vereadora Ângela sem o conhecimento do requerido, e divulgada no final do mês de janeiro de 2006, antes de ser efetivada a sessão que trataria da mudança do Regimento Interno e da eleição para a Presidência da Casa de Leis, no dia 06.02.2006.

Requereu o Ministério Público o afastamento imediato do requerido do exercício do mandato de vereador municipal, suspendendo, também, seus vencimentos, e que, ao final da ação, seja o réu condenado ao pagamento das custas, emolumentos, encargos e demais despesas processuais, inclusive eventuais perícias requeridas no curso do processo.

Com a inicial, foram juntados os documentos de fls. 15/181.

O requerido foi citado (fls. 209), e apresentou manifestação por escrito (fls. 215/228).

Recebida a inicial, foi deferida a liminar de afastamento do requerido, sendo indeferido o pedido de quebra do sigilo bancário postulado (fls. 250/251).

O Ministério Público interpôs agravo de instrumento, com pedido de efeito suspensivo, para que, ante a decisão de fls. 250/251, fosse determinada a quebra do sigilo bancário do requerido (fls. 261/267), mantida a decisão guerreada por seus próprios fundamentos, sem prejuízo de eventual decretação de quebra de sigilo, oportunamente, se necessária (fls. 84/89 do apenso próprio).

O réu foi intimado (fls. 274) e apresentou contestação, alegando: a) inépcia da inicial; b) impossibilidade jurídica do pedido; c) invalidade da escuta ambiental feita pela vereadora Ângela Maria Ferreira dos Santos; d) que o inquérito civil está incompleto; e) não haver fundamentação válida que enseje a quebra do sigilo bancário; f) que o requerido não praticou ato de improbidade administrativa (fls. 276/289).

Réplica às fls. 314/315.

O feito foi saneado por decisão não recorrida, oportunidade na qual foram entendidos presentes os pressupostos e condições da ação.

Durante a instrução, foram ouvidas quatro testemunhas do requerente (fls. 381/391 e 413/414) e duas do requerido (fls. 392/400), além do depoimento pessoal do réu (fls. 415).

Memoriais do requerente (fls. 439/455).

Memoriais do requerido (fls. 450/466).

É o relatório.

Fundamento. Decido.

As preliminares já foram rejeitadas por decisão não recorrida.

Analisemos, pois, a prova dos autos.

Primeiramente, não vislumbro a ilegalidade da principal prova dos autos, qual seja, a gravação da conversa havida entre a vereadora Ângela e o requerido Orlando.

Isso porque a gravação foi realizada e disponibilizada (consoante confirmou-se nas declarações de Hugo di Lallo à polícia) justamente por um de seus interlocutores.

Esse, justamente, o que se extrai das lições de Vicente Grecco Filho, transcritas pela própria defesa às fls. 452/453, in verbis: “a gravação unilateral feita por um dos interlocutores com o desconhecimento do outro, chamadas por alguns de gravação clandestina ou ambiental (não no sentido de meio ambiente, mas no ambiente), não é interceptação nem está disciplinada pela lei comentada (9296/96) e, também, inexiste tipo penal que a incrimine, Isso porque, do mesmo modo que no sigilo de correspondência, os seus titulares – o remetente e o destinatário – são ambos, o sigilo existe em face de terceiros e não entre eles, os quais estão liberados, se houver justa causa, para a divulgação.”

A vereadora Ângela realizou a gravação da conversa travada entre ela própria e o requerido, e a disponibilizou, sponte propria, para que o seu conteúdo pudesse ser devidamente apurado e sancionado. Induvidosa, outrossim, a justa causa à divulgação, uma vez que visava comprovar ato reprovável de corrupção ativa e de patente desrespeito às instituições democráticas.

Superada essa questão, analisemos a prova dos autos:

É fato incontroverso a existência da gravação de uma conversa entre um homem e uma mulher (CD às fls. 47), cujo diálogo está transcrito por laudo da Polícia Técnico-Científica às fls. 129/140, e cujo teor foi confirmado na reprodução do áudio realizada em Juízo, em audiência de instrução e julgamento (fls. 412). Do próprio teor da transcrição já se consegue extrair, independentemente do reconhecimento das vozes, que se trata de conversa travada entre dois vereadores acerca de tratativas para obtenção de apoio à reeleição do Presidente da Câmara – que ao que se depreende é um dos interlocutores -, e na qual o vereador Presidente da Câmara oferece à vereadora interlocutora vantagens indevidas em troca do apoio nas eleições, como as já oferecidas a outros vereadores, quais sejam, in verbis: “20 mil reais e 02 cargos para cada um (...) sendoque o salário é de 2 mil e 200 reais para todos (...) e, pode ser que (...) chegue a 2.500, depende do cargo”.

O teor da conversa, por si só, demonstra cabalmente a ‘materialidade’ da oferta de vantagens indevidas pelo então Presidente da Câmara à vereadora, em troca de votos na Câmara Municipal. Há, também, nos autos, prova suficiente de que os interlocutores de tal conversa eram, realmente, Orlando Mosca Diz e Ângela Maria Ferreira dos Santos. A gravação foi realizada pela própria interlocutora que, desde a fase extrajudicial, vem apresentando versões coerentes, confirmando tratar-se da sua voz e da voz do requerido. Não há qualquer indício, ademais, de que tivesse motivos para prejudicar gratuitamente o requerido, maquiando a autenticidade de gravação desse teor.

Ouvida em Juízo (fls. 81), a sra. Ângela confirmou que realizou a gravação da conversa travada na sua casa, entre ela e o requerido, bem como que Orlando lhe ofereceu vinte mil reais em espécie e dois cargos que poderiam variar de dois a dois mil e quinhentos reais. Segundo ela, ainda, Orlando disse-lhe que outros vereadores estariam com a mesma proposta e que realizariam um churrasco onde seria fechado o acordo. Orlando pretendia, com isso, que Ângela votasse nele para reeleição na Presidência da Câmara. Em Juízo, Ângela ratificou integralmente, ainda, suas declarações dadas à polícia, constantes às fls. 107/110 dos autos, cujo teor não destoa do depoimento prestado em Juízo. A testemunha Valdir Gonçalves Mendes (fls. 387/391), vulgo “Valdir do Açougue”, também vereador do Município de Itanhaém à época dos fatos, disse que a vereadora Ângela lhe trouxe a fita gravada, já que era também candidato à Presidência da Câmara Municipal, em oposição ao requerido Orlando. Afirmou, expressamente, ainda, que ouviu a fita e que reconheceu a voz do requerido. A testemunha Marcelo Strama (fls. 413), também vereador à época dos fatos, disse ter ouvido o teor das gravações, tendo, inclusive, disponibilizado-a no seu “site” para acesso da população. Disse que conversou com a vereadora Ângela, na época, que lhe confirmou a autenticidade das gravações. Lembra que, na conversa gravada, o requerido fez proposta de composição à Ângela, oferecendo-lhe vantagens pessoais – quais sejam, um cargo e certo valor em dinheiro -, pretendendo, com isso, sua reeleição à Presidência da Câmara Municipal. Não pôde afirmar com certeza que se tratava da voz do requerido, mas afirmou ser muito parecida.

A testemunha Hugo di Lallo (fls. 414) ratificou integralmente as declarações prestadas na polícia (fls. 152/153), nas quais afirmou que tomou conhecimento das gravações através da própria vereadora Ângela, tendo, por iniciativa própria, comprometendo-se a fazer as denúncias, como de fato fez. A testemunha José Carlos de Oliveira disse que ficou sabendo da suposta oferta de suborno à vereadora Ângela por parte do requerido, por fofocas na cidade, na Câmara e depois pela veiculação da notícia na imprensa. Afirmou que ouviu a fita gravada e que, embora não tenha podido reconhecer a voz de Orlando, concluiu do teor da conversa que se tratava de Ângela e Orlando conversando. Negou tivesse recebido proposta análoga de recebimento de vantagens indevidas. Ratificou integralmente as declarações que prestou na polícia (fls. 113/114), cujo teor não destoa do seu depoimento judicial. A testemunha Wilson Antonio Pontes Quintas (fls. 397/400) disse que ficou sabendo dos fatos pela imprensa. Confirmou na íntegra as declarações que prestou na polícia (fls. 115/116). Disse não ter ouvido o conteúdo das gravações.

Ouvido em depoimento pessoal (fls. 415), o requerido Orlando Mosca Diz negou seja o interlocutor da conversa gravada. Afirmou, num primeiro momento, que sequer considerava a voz parecida com a sua, mas, em reperguntas do Ministério Público, indagado sobre as declarações contrapostas que prestou ao MP em 17/05/2007 (termo de fls. 174/177), disse não saber se a voz constante das gravações era sua, mas que era, sim, parecida. Recusou a proposta ministerial de envio do material à perícia, para confrontação com a sua voz. Reconheceu as assinaturas apostas nas declarações de fls. 174/177 (MP) e 212/213 (Polícia) como sendo suas. Nas declarações prestadas na delegacia, o requerido admitiu que esteve na residência da vereadora Ângela, e que em tal conversa citou a quantia de R$20.000,00, bem como a criação de cargos. Naquele ensejo disse que o valor citado de R$20.000,00 seria para atender a verbas indenizatórias que são autorizadas por resolução da Câmara Municipal (para atender diárias, congressos, viagens etc). Quanto aos cargos mencionados na conversa, sua intenção era somente dar ciência, tanto a Ângela quanto aos demais vereadores, do possível aumento de cargos e valores de vencimentos, a fim de adequar a estrutura da Câmara e atender a necessidade dos parlamentares.

Nas declarações prestadas ao MP (fls. 174/177), apresentou uma outra versão, dizendo que R$20.000,00 seria o valor aproximado da construção de uma piscina, que a vereadora Ângela tinha gostado em sua casa. Naquele ensejo disse que tinha estado na residência da vereadora Ângela por uma única vez, a despeito de, em Juízo, ter afirmado que já tinha estado várias vezes para conversar sobre questões políticas. Disse que o churrasco realizado em sua casa aconteceu antes da conversa gravada, ensejo no qual a vereadora teria ficado encantada com a churrasqueira e piscina do requerido. Tal versão, porém, em nada coaduna com o teor das gravações. Embora não se tenha realizado perícia de confrontação das vozes do requerido e do interlocutor da conversa gravada, do próprio teor da conversa se extrai quem eram os interlocutores, quais sejam: Ângela e Orlando.

Ângela confirmou ser sua a voz da conversa, bem como que o interlocutor era de Orlando Mosca Diz, e, o requerido, por sua vez, admitiu que a voz da gravação era parecida com a sua, muito embora tenha dito em Juízo “não saber se a voz era sua”. Ora, tivesse, ou não, o requerido travado a conversa em comento, certamente lembraria da existência ou não da mesma e poderia dizer, com certeza, tratar-se ou não de sua voz. O estranho é a assertiva de que não sabe se travou aquela conversa. Edemais, sintomática a negativa do requerido em fornecer sua voz para contraposição pericial, a despeito da garantia constitucional de não se produzir prova contra si mesmo. Tivesse certeza de que a voz não era sua, muito provavelmente teria, não apenas concordado, mas, exigido a produção dessa prova.

A testemunha Valdir reconheceu a voz como sendo a do requerido, com certeza, e as demais afirmaram que a voz é realmente parecida. Do conjunto probatório, pois, facilmente extrai-se que, de fato, o requerido ofereceu vantagens indevidas à vereadora Ângela, em troca de votos na Câmara Municipal, fatos esses que, além de configurarem ato de improbidade administrativa, configuraram, em tese, crime, com relação ao qual o requerido já foi condenado em primeira instância, conforme cópia da sentença criminal proferida pelo Juízo da 3ª Vara desta Comarca, acostada aos autos às fls. 432/434, na qual o requerido foi condenado, em razão dos mesmos fatos, por crime de corrupção ativa, a uma pena de dois anos de reclusão, substituída por duas restritivas de direito, e ao pagamento de 10 dias-multa.

Indubitável que a conduta do requerido, devidamente comprovada nestes autos, configurou ato de improbidade administrativa, uma vez que desvirtuou as regras de atuação ética, legal e moral estabelecida em nossa sociedade, violando os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade e moralidade administrativa e os deveres de honestidade, legalidade, e lealdade às instituições, subsumindo-se ao disposto no artigo 11 e inciso I da Lei 8.429/92, in verbis: “praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência”.

A conduta amoral e comprovadamente dolosa do requerido, de oferecer vantagem indevida à vereadora Ângela para obtenção de auto-favorecimento em votação na Câmara, caracteriza-se, pois, não só, em tese, como crime (conduta proibida em lei) como, também, em ato de improbidade administrativa, a ensejar as sanções do artigo 12, III da Lei 8429/92, independentemente das eventuais sanções penais, civis e administrativas. No caso em testilha, a conduta do requerido afigurou-se extremamente grave, pois, investido do mandato que lhe outorgou a população Itanhaense, desdenhou das instituições democráticas ao tentar subverter a vontade do povo, naquele ensejo representada pela vereadora Ângela. A conduta do requerido colocou em risco, em última análise, o próprio Estado Democrático de Direito, ao colocar em xeque o princípio fundamental da democracia representativa insculpido no artigo 1º, parágrafo único da Constituição Federal.

Por tudo isso, sua sanção deve ser tal que lhe sirva de efetiva lição sobre a tamanha importância do exercício da cidadania, bem como da importância da lealdade às instituições democráticas. Por tudo isso, julgo a ação procedente, e o faço para condenar o requerido ORLANDO MOSCA DIZ, cumulativamente, a:

1) suspensão dos direitos políticos por quatro anos, e;

2) proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos.

Deixo de condená-lo à perda da função pública, apenas porque atualmente o requerido não mais a exerce.

Custas e despesas processuais pelo requerido.

PRIC.

Itanhaém, 23 de março de 2010.

FERNANDA MENNA PINTO PERES

Juíza de Direito