Cooperativa habitacional e Código de Defesa do Consumidor

Proc. n.º 583.00.2010.155128-8 (1169/10)

Vistos.

Elias Miguel Elias Filho ajuizou ação declaratória de inexigibilidade de débito cumulada com pedidos de obrigação de fazere de indenização por danos morais em face de Cooperativa Habitacional dos Bancários de são Paulo (BANCOOP) e OAS Empreendimentos S/ A (OAS). Alegou, em síntese, ter assinado “Termo de Adesão e Compromisso de Participação”, por meio do qual adquiriu uma unidade habitacional em empreendimento realizado pela primeira ré, recebendo as chaves do imóvel após o pagamento integral do valor pactuado. Ocorre que, decorridos quatro anos da quitação do imóvel, recebeu cobrança de valor adicional por parte da mesma ré. Além dessa irregularidade, tomou conhecimento de que o empreendimento foi objeto de cessão em favor da segunda ré, após realização de assembleia da qual fora impedido de participar. Pleiteou indenização por danos morais, bem como a averbação de seu nome na matrícula do imóvel transacionado e a declaração de inexigibilidade de débito.

A antecipação de tutela foi deferida em parte (fls. 165/169).

Regularmente citadas, as rés apresentaram contestação.

A fls. 246/285, a ré BANCOOP alegou, preliminarmente, a sua ilegitimidade passiva, coisa julgada, preclusão lógica e ausência de interesse processual. No mérito, aduziu ter sido necessária a cessão dos direitos referentes ao empreendimento imobiliário, tendo em vista a inexistência de fundos para a sua finalização e a elevada taxa de inadimplência dos cooperados. Defendeu ainda a legitimidade da assembleia realizada e impugnada na inicial, bem como dos valores adicionais cobrados do requerente, previstos no termo firmado pelo autor. Requereu o acolhimento das preliminares arguidas e a improcedência dos pedidos.

A fls. 463/504, a ré OAS alegou que o acordo pactuado para a finalização do empreendimento imobiliário foi aprovado em Assembleia Geral para tal finalidade, da qual participaram os cooperados adimplentes. Ademais, alegou que a possibilidade de rateio extra está prevista na lei, no termo de adesão assinado pelos cooperados e também no estatuto da primeira ré. Requereu improcedência do pedido.

Houve réplica a fls. 712/776.

Incidente de falsidade foi instaurado a requerimento do autor, tendo sido rejeitado a fls. 1864.

Instadas as partes à especificação de provas, a ré OAS requereu o julgamento no estado (fls. 1787/1791), ao passo que a ré Bancoop requereu a produção de prova oral (fls. 1802/1804) e o autor, pericial (fls. 1813/1824).

A audiência de conciliação restou infrutífera (fls. 1865).

É o relatório.

Fundamento e decido.

O julgamento antecipado da lide é de rigor, nos termos do art. 330, inciso I, do Código de Processo Civil, tendo em vista a desnecessidade de dilação probatória em demanda em que se discutem matérias de direito, assentando-se, no mais, em fatos cujas partes não requereram a produção das provas que lhe seriam especificamente pertinentes.

Cabe, de início, rejeitar as preliminares alegadas em contestação da ré Bancoop.

Não há que se falar em ilegitimidade passiva, tendo em conta que o autor impugna a validade de cláusulas contratuais que firmou justamente com tal demandada. É a ré Bancoop, pois, titular da relação de direito material em debate, sendo legitimada passiva para esta ação.

Não há, outrossim, que se falar em coisa julgada, pois o autor não teve qualquer participação e nem teve qualquer benefício no acordo celebrado em ação civil pública movida em face da mencionada ré. Tal ajuste é, pois, inapto a impedi-lo de buscar, perante o Estado-Juiz, suas pretensões individuais decorrente do contrato ora discutido.

Essa mesma não participação do autor em eventuais acordos também descaracteriza as alegadas preclusão lógica e falta de interesse de agir. É a presente demanda, portanto, o meio útil e adequado para o autor deduzir suas pretensões individuais.

Vencidas as questões preliminares, passo à análise do mérito da causa.

Ao que se infere dos autos, o autor e a ré Bancoop assinaram ajuste denominado Termo de Adesão e Compromisso de Participação em Cooperativa. Tal acordo tinha por objetivo possibilitar ao autor a aquisição de unidade habitacional descrita na cláusula 2ª (fls. 54), mediante de pagamento de determinado preço, que poderia ser acrescido de “ [...] valores decorrentes de eventuais aumentos de custos, aumentos da área construída, privativa ou não e alteração das unidades habitacionais e do próprio empreendimento” (cláusula 4.1, parágrafo único, fls. 54).

Na execução do acordado, o autor pagou à aludida ré o preço de R$ 37.000,00, o que lhe permitiu receber as chaves do imóvel que pretendia adquirir. Posteriormente, porém, a mesma ré passou a lhe cobrar a quantia extra de R$ 28.000,00, com fundamento no acréscimo dos custos da obra, prevista na cláusula 4.1. A ré OAS recebeu da ré Bancoop os direitos e obrigações desta, em cessão (fls. 137/150), perante os intitulados cooperados, cobrando do autor a quantia extra de R$ 146.405,11 (fls. 945), como valor residual, impondo tal pagamento como necessário para a transferência da titularidade do bem.

A cobrança de quantia superior a inicialmente determinada quando do início das obras de construção do imóvel em debate, em princípio, encontra amparo jurídico. É que a ré Bancoop não se colocou como incorporadora e construtora do bem, mas como uma cooperativa, a ser regida, portanto, pela Lei 5.764/71, cujo artigo 80 prevê a cobrança de rateio extra dos adquirentes, nos seguintes termos:



Art. 80. As despesas da sociedade serão cobertas pelos associados mediante rateio na proporção direta da fruição de serviços.

Parágrafo único. A cooperativa poderá, para melhor atender à equanimidade de cobertura das despesas da sociedade, estabelecer:

I - rateio, em partes iguais, das despesas gerais da sociedade entre todos os associados, quer tenham ou não, no ano, usufruído dos serviços por ela prestados, conforme definidas no estatuto;

II - rateio, em razão diretamente proporcional, entre os associados que tenham usufruído dos serviços durante o ano, das sobras líquidas ou dos prejuízos verificados no balanço do exercício, excluídas as despesas gerais já atendidas na forma do item anterior.

O problema é que a ré Banccop não é efetivamente uma cooperativa que visa administrar e organizar o rateio entre cooperados para aquisição de imóveis. Trata-se, a bem da verdade, de empresa que promove a venda de unidades habitacionais, procurando genericamente (como qualquer outra empresa do ramo) consumidores para este fim.

Tal conclusão decorre do teor do documento de fls. 41, consistente em um cartaz publicitário - semelhante ao que se vê nas ruas ou nos anúncios publicados pela mídia impressa ou eletrônica por incorporadoras e imobiliárias -, no qual a ré Bancoop oferece, para o grande público, o imóvel em debate para aquisição, inclusive indicando o preço. Não há dúvida: a Bancoop é uma comerciante do bem; tal entidade e, por conseqüência, sua sucessora (a ré OAS), assim devem ser juridicamente tratadas.

Esse mesmo documento revela ainda mais. Da forma que o imóvel é oferecido ao mercado, verifica-se que não existe entre os adquirentes – como o autor – qualquer intenção de se associarem para a realização de obra em cooperativa. O que existe é a intenção de cada adquirente, individualmente considerado, comprar um imóvel.

Daí ser inaplicável à espécie a Lei 5.764/71. Da relação entre entidades que desenvolvem atividade de construção, distribuição e comercialização de imóveis (as demandadas) e uma pessoa física que adquire tal bem como destinatário final (o autor), advém uma relação de consumo, a ser regida pela Lei 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor (arts. 2º e 3º).

Nesses termos, quando da celebração e da execução do contrato visando a aquisição do imóvel em debate, assistia ao autor-consumidor o direito de receber informação adequada e clara sobre o produto adquirido (art. 6º, III, do CDC). Por sua vez, à ré Bancoop, como responsável pela elaboração de contrato de adesão (fls. 54/66), cabia o dever de redigir com destaque as cláusulas limitativas de direito do aderente (art. 54,§ 4º).

Ora, uma cláusula como a 4.1 (fls. 54), que prevê a possibilidade da fornecedora do produto aumentar o total devido pela aquisição do imóvel, sem qualquer limitação, sob a justificativa de aumento de custos, não informa adequadamente o consumidor de todos os seus deveres contratuais, sujeitando-o, na verdade, a eventos futuros e incertos. Pelo mesmo motivo, esta cláusula é eminentemente limitativa de direitos do utente, devendo, por isso, ter sido redigida com o destaque legalmente exigido, o que não ocorreu. Não há, portanto, como se julgar pela validade da cláusula em questão, evidenciando a inexigibilidade dos valores cobrados pela entidade que redigiu o ajuste e pela entidade que a sucedeu.

Irrelevante a alegação das rés de que tal cláusula se mostrou necessária em razão da elevada inadimplência e do aumento dos custos dos materiais de construção e regularização do imóvel. Tais circunstâncias, mesmo que verdadeiras, são inerentes ao próprio risco de um negócio como este, devendo, por isso, serem consideradas previamente pelas fornecedoras antes de disponibilizar o produto perante o mercado consumidor. Se tal consideração não ocorreu, devem as fornecedoras – e não o consumidor cuja única informação recebida foi o preço de R$ 37.000,00 – arcarem com os riscos assumidos.

Para agravar o caso, verifica-se que a ausência de informação deu-se também na execução do contrato. Com efeito, ao imporem ao autor o cumprimento da citada cláusula (inválida, como dito), com base em suposta majoração do valor da obra e da regularização do imóvel, as rés não justificaram devidamente a origem do valor a maior encontrado. Nem mesmo após o ajuizamento desta ação, tal justificativa foi externada, limitando-se ambas as demandadas, em suas respectivas respostas, a indicarem um valor que entendem devido, sem, contudo, dizerem como alcançaram exatamente este quantum.

Não há, portanto, como exigir do autor-consumidor o valor a maior impugnado na inicial. Deve-se ter o contrato, portanto, como quitado. É o que tem decidido o E. Tribunal de Justiça de São Paulo em casos semelhantes ao presente:



Voto n. 3389. Apelação n° 0107716-05.2008.8.26.0003. Comarca: São Paulo. Apelante: Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo - BANCOOP. Apelada: Aline Mara Pageu. Juiz prolator da sentença: Maria Priscilla Ernandes Veiga Oliveira.

COOPERATIVA HABITACIONAL Venda e compra de imóvel Relação regida pelo Código de Defesa do Consumidor Precedentes da jurisprudência Previsão contratual de cobrança de saldo residual após a quitação do preço Abusividade configurada na hipótese Cobrança efetuada depois de transcorridos quase três anos do término do pagamento das parcelas, deixando os cooperados em longeva situação de insegurança - Cooperativa que não demonstrou a origem das despesas cobradas a título residual Violação ao dever de transparência Sentença de improcedência mantida Recurso desprovido.





Ainda que não se adote esse entendimento (como efetivamente ora adotado) e se conclua pela aplicação da Lei 5.764/71 em detrimento do Código de Defesa do Consumidor, o valor cobrado pelas rés também não pode ser considerado exigível.

De fato, a incidência de tal diploma legal não isenta o ajuste celebrado entre as partes da aplicação das normas gerais que regem as relações contratuais do Código Civil brasileiro. E o artigo 422 do Código Civil impõe o dever de boa fé aos contratantes, o que implica, segundo a melhor doutrina, o dever de informação:



A doutrina mostra que as partes têm que cumprir a obrigação principal pactuada, mas têm, ao mesmo tempo, de observar outras condutas que são os deveres anexos ou acessórios à obrigação principal fundados na boa fé contratual. Os principais deveres anexos são: de lealdade (essência da boa fé objetiva), de informação, de cooperação (quem não coopera com a outra parte infringe fundamentalmente a boa-fé- cf. Betti: boa fé é cooperação), de segurança, dever de segredo, de custódia (das coisas negociadas) (LOPEZ, Teresa Ancona. Princípios contratuais. In: FERNANDES, Wanderley. Fundamentos e princípios dos contratos empresariais, São Paulo, Saraiva/GV Law, 2012, p. 75).



Ora, como se viu, o autor foi destituído das necessárias informações, tanto por ocasião da celebração, quanto por ocasião da execução do contrato. Não há, por isso, como obrigá-lo a pagar qualquer valor a mais do que aquele exatamente quantificado quando aderiu à “cooperativa” em questão – mesmo, diga-se mais uma vez, se não for aplicado o Código de Defesa do Consumidor à espécie.

Diante das circunstâncias acima colocadas, as quais levaram á consideração da quitação integral do ajuste em debate, impõe-se o acolhimento das pretensões de declaração de inexigibilidade de débito e de inscrição do nome do autor na matrícula do imóvel transacionado. Tudo, na forma do requerido na inicial.

Resta verificar se há danos morais a serem indenizados. E, mais uma vez, razão assiste ao autor.

É que as irregularidades contratuais acima mencionadas não consistem em mero dissabor a que todas as pessoas estão sujeitas a suportar em seu dia a dia quando celebram ajustes. Trata-se de descumprimento de normas de ordem pública, acima citadas, que prejudicaram pessoa que sonhava em adquirir seu próprio imóvel e que teve este sonho transformado em verdadeiro pesadelo. Vale dizer, sofreu o autor evidentes constrangimentos e não meros aborrecimentos, sendo atingido como ser humano, independente de eventuais conseqüências econômicas. Devem, portanto, as rés, conforme dispõem o artigo 5o incisos V e X da Constituição da República, o artigo 18 do Código de Defesa do Consumidor e o artigo 475 do Código Civil, indenizar integralmente a vítima do evento.

Cabe salientar que a existência de constrangimentos é realmente evidente e a demonstração destes independe de maiores comprovações. Neste aspecto, é cediço que a doutrina costuma afirmar que o dano moral dispensa prova em concreto, até porque, como bem esclarece o Prof. Carlos Alberto Bittar, “não precisa a mãe comprovar que sentiu a morte do filho; ou o agravado em sua honra demonstrar que sentiu a lesão; ou o autor provar que ficou vexado com a inserção de seu nome no uso público de obra, e assim por diante”(Reparação Civil por Danos Morais, Revista dos Tribunais,1993, p. 204).

Em relação ao valor da indenização, insta anotar que, como é muito bem sabido, o Direito pátrio não estabelece um critério único e objetivo para a fixação do quantum do dano moral. Cabe, assim, ao prudente arbítrio do juiz a fixação do respectivo valor, o qual, a toda evidência, deve ser moderado e, normalmente, leva em consideração a posição social da ofensora e do ofendido, a intensidade do ânimo de ofender, a gravidade e a repercussão da ofensa.

Na hipótese dos autos, como já se disse, não há dúvida de que o autor sofreu constrangimentos aptos à caracterização dos danos extrapatrimoniais. Deve-se considerar, contudo, que os fatos em questão não provocaram morte ou lesões graves e nem qualquer outra espécie de sofrimento irreversível, o que revela que eventual valor por demais elevado seria desproporcional ao dano sofrido.

Dessa forma, adotando-se os critérios acima expostos, é razoável fixar o quantum da indenização em R$ 20.000,00 (vinte mil reais). Cumpre-se, destarte, a função da indenização por danos morais, oferecendo-se compensação ao lesado para atenuação do sofrimento havido e atribuindo-se ao lesante sanção, a fim de que não volte a praticar atos lesivos à personalidade de outrem.

O valor arbitrado, portanto, é o que se revela justo, perante a legislação pátria.

Finalmente, cabe observar que todas as obrigações declaradas nesta sentença são impostas solidariamente às rés – contratante originária e sucessora da primeira -, nos termos do artigo 7º, § único do Código de Defesa do Consumidor. Ainda que o autor não reconheça a legitimidade da ré OAS, o que deixou de ter maior relevância ante a aplicação ao caso do Código de Defesa do Consumidor, e não do regime jurídico aplicado às cooperativas, o fato é que esta empresa colocou-se perante o autor como efetiva contratante e dele cobrou o quantum impugnado na inicial. Deve, por isso, igualmente responder pelo contrato e pelos danos havidos.

Ante o exposto, julgo procedentes os pedidos para, declarando a inexigibilidade do débito impugnado na inicial, condenar solidariamente as rés a: a) procederem à transferência da titularidade do imóvel descrito na inicial em favor do autor, perante o registro de imóveis, em 5 dias após o trânsito em julgado da sentença, sob pena de pagamento de multa diária de R$ 10.000,00, a vigorar por 60 dias; b) pagarem ao autor a quantia de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), a título de indenização por dano moral, corrigido monetariamente desde a data desta decisão e incidindo juros da mora legais de 1% ao mês desde a citação; c) arcarem com as custas, despesas processuais e honorários advocatícios, estes fixados por equidade em 15% sobre o quantum indenizatório.


P.R.I.C.


São Paulo,28 de setembro de 2012.


André Augusto Salvador Bezerra

Juiz de Direito