Processo: 0013281-62.2015.5.15.0096 ROT
RECORRENTE: SELMA DA SILVA MACHADO, VIA VAREJO S/A
RECORRIDO: SELMA DA SILVA MACHADO, VIA VAREJO S/A
Vistos e examinados.
A reclamada interpôs recurso ordinário às fls. 378/388, tendo recolhido regularmente o depósito recursal e as custas processuais, conforme guias juntadas às fls. 389/392. Diante disso, o recurso foi processado pelo juízo de primeiro grau (fl. 434).
Ocorre que, por meio da petição de fls. 534/537, a reclamada peticionou pleiteando a substituição do depósito recursal já efetuado nos autos por apólice de seguro garantia, pugnando pela concessão de prazo de 5 (cinco) dias para emissão e juntada da apólice aos autos.
Justifica sua pretensão na crise causada pela pandemia do novo coronavírus (Covid 19). Vejamos.
O depósito recursal constitui instrumento de garantia da efetividade do processo trabalhista, que encontra fundamento na dignidade da pessoa humana (artigo 1º,III, da CF), no valor social do trabalho (artigo 1º, IV, da CF), na função social da propriedade (artigos 5º, XXIII e 170, III, da CF) e na celeridade processual (artigo 5º, LXXVIII, da CF).
A real intenção do legislador, principalmente com a instituição do depósito recursal, foi justamente a de garantir que o trabalhador receba ao menos parte do seu direito, dado que a demora do processo provocada pelos recursos eleva o risco da perda de efetividade da prestação jurisdicional. Com a obrigatoriedade do depósito, tenta-se minimizar a possibilidade de fraudes ou tentativas do devedor tendentes a frustrar a execução.
As disposições constantes do art. 899 da CLT, alterado pela Lei n. 13.467/17, prevendo que “o valor do depósito recursal será reduzido pela metade para entidades sem fins lucrativos, empregadores domésticos, microempreendedores individuais, microempresas e empresas de pequeno porte” (§ 9º), que “são isentos do depósito recursal os beneficiários da justiça gratuita, as entidades filantrópicas e as empresas em recuperação judicial” (§ 10) e que “o depósito recursal poderá ser substituído por fiança bancária ou seguro garantia judicial” (§ 11), deixam claro que o legislador, estimulado por uma lógica de Estado de exceção, se desapegou dos compromissos do Estado Social e foi de encontro com a própria finalidade do processo. Com isso, criou um fator de discriminação, favorecendo alguns empregadores, sem qualquer apoio constitucional para tanto, ou até mesmo sem uma razão de ordem econômica, sobretudo, por estabelecer uma presunção juridicamente indevida e perversa, ao mesmo tempo em que, em diversas outras passagens, tentou onerar o trabalhador, criando obstáculos ao acesso à justiça.
Ora, quando tratou da assistência judiciária gratuita, visualizando a posição social, política, jurídica e econômica dos trabalhadores, o legislador impôs ao reclamante que ganha mais de R$2.440,42 a obrigação de provar a sua insuficiência econômica para obter os benefícios da assistência judiciária (e mesmo assim restrita).
Já, no art. 899, tratando especificamente dos empregadores, presumiu a insuficiência econômica, dispensando, pois, qualquer tipo de prova, para conferir o benefício processual da assistência gratuita,
Na lógica invertida do legislador de exceção (e por conta desses dois fatores, também antijurídica), o empregador foi tratado como hipossuficiente e o empregado como um privilegiado econômico, quando, na relação jurídica material, quem detém o capital, pressupostamente, é o empregador, pertencendo ao empregado apenas a força de trabalho, a qual vende ao primeiro.
O processo do trabalho existe, aliás, para garantir que o contrato de compra dessa força de trabalho, que segue parâmetros legais e constitucionais mínimos, seja efetivamente cumprido.
Isso quer dizer, inclusive, que o empregador, atendendo aos ditames constitucionais, do valor social da livre iniciativa (arts. 1º, IV, e 170, III, da CF), da função social da propriedade (arts. 5º, XXIII e 186, III e IV, da CF), para se valer do trabalho alheio e com ele levar adiante os objetivos de seu empreendimento, deve, necessariamente, possuir condições econômicas para tanto.
Inversamente, um empreendedor que não possua condições econômicas para adimplir as obrigações trabalhistas e mesmo assim contrata trabalho alheio para realizar seu negócio, só por essa conduta, pratica vários atos ilícitos, considerando as esferas jurídicas trabalhista, cível (arts. 186 e 187 do CC) e penal (art. 171, CP - estelionato).
Do ponto de vista moral, a inversão proposta pelo legislador representa uma inversão indevida e perversa a presunção, pois a realidade demonstra que empregadores domésticos, entidades sem fins lucrativos, microempreendedores individuais, microempresas e empresas de pequeno porte podem ter condições financeiras bem mais confortáveis que a de muitos outros empregadores.
De todo modo, ainda que sua condição econômica seja precária, o fato de se valerem do trabalho alheio para a consecução de seus objetivos não deve atrair uma postura de compaixão que, gere, inclusive, punição do trabalhador, pois o ato da contratação do trabalho, sem o respaldo econômico, já reflete a infringência de vários preceitos jurídicos.
O art. 2º da CLT, ademais, equipara diversas dessas entidades a um empregador como outro qualquer, fixando a noção de cabe ao empregador os riscos da atividade econômica. O parágrafo único do art. 7º da Constituição Federal, por sua vez, não faz distinção quanto à qualidade do empregador doméstico. O artigo 170 da CF, no inciso IX, garante tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte, mas o preconiza sem abalar a eficácia da valorização do trabalho humano e os ditames da justiça social (caput do mesmo artigo). E, por fim, a Lei nº 11.101/05, da recuperação judicial, não se trata de um mecanismo jurídico a serviço do “calote”, com o beneplácito do Judiciário, valendo lembrar que o risco da atividade econômica é do empregador (art. 2º da CLT) e que a livre iniciativa está vinculada a cumprir seu valor social (inciso IV, do art. 1º, da CF).
Fácil verificar, portanto, que a lei não pode se direcionar à mera defesa do interesse privado de um devedor determinado e muito menos a quebrar a eficácia dos direitos trabalhistas e dos mecanismos de sua efetivação.
O que se tentou fazer nos §§ 9º, 10 e 11 do art. 899 da CLT foi, portanto, estabelecer privilégios juridicamente indevidos e econômica, social e moralmente injustificados a certos empregadores, ferindo o princípio da igualdade, a livre iniciativa e o necessário respeito ao projeto social fixado na Constituição.
A quebra de isonomia, em detrimento do pequeno e médio empregador, fica evidenciada quando se constata que é somente para grandes empresas que bancos e seguradoras conferem o suporte de garantia e não fazem, por óbvio, gratuitamente.
A única forma de se minimizar essa disparidade, não se querendo declarar a inconstitucionalidade do dispositivo, é entendê-lo como uma forma de se ampliar a efetividade do processo e isso só se dará, por mais paradoxal que pareça, por meio da aplicação literal do § 11 do art. 899, que estabelece uma “substituição” do depósito recursal pela “fiança bancária ou seguro judicial”, que são institutos distintos, tratados, de forma específica, no 2o do art. 835 do CPC: "§ 2° Para fins de substituição da penhora, equiparam-se a dinheiro a fiança bancária e o seguro garantia judicial, desde que em valor não inferior ao do débito constante da inicial, acrescido de trinta por cento".
De forma mais clara, a fiança bancária e o seguro garantia judicial constituem modalidade alternativa à penhora de dinheiro, servindo, pois, à garantia plena da execução, com o requisito, inclusive, do acréscimo de 30% do valor da execução.
Não existe, pois, mesmo por meio da aplicação do § 11 do art. 899 da CLT, com a redação que lhe fora concedida pela Lei n. 13.467-17, a possibilidade de o empregador simplesmente apresentar um seguro judicial que meramente garanta o valor do depósito recursal, como quis acreditar a 2ª reclamada.
Não obstante, melhor sorte não socorre a 2ª reclamada quanto aos argumentos pertinentes à pandemia da COVID-19 provocada pelo novo coronavirus.
No momento em que sacrifícios são impostos a todas e todos, os que devem maior contribuição são, exatamente, o Estado e as grandes empresas e instituições financeiras, que, inclusive, adquiriram sua posição econômica privilegiada por meio da utilização da força de trabalho alheia.
Não há como se admitir que grandes empresas sejam “financiadas” em decorrência dos efeitos da pandemia sem se fazer qualquer avaliação em torno da sua postura histórica, na qualidade de empregadores, com relação ao pagamento de tributos, contribuições sociais e direitos trabalhistas dos últimos exercícios.
Do ponto de vista estritamente jurídico, uma substituição do depósito recursal por garantia fiança, como pretende a recorrente, exigiria:
- primeiro, o oferecimento do valor integral da condenação, com acréscimo de 30%;
- segundo, a apresentação do lucro líquido obtido pela requerente nos últimos 05 exercícios fiscais;
- terceiro, a comprovação da regularidade da situação fiscal e trabalhista;
- quarto, a demonstração de que o valor levantado seria destinado unicamente ao pagamento de salários;
- quinto, o compromisso em torno de não redução de salários e jornada dos atuais empregados; e
- sexto, a preservação dos empregos.
Só assim se poderia vislumbrar alguma utilidade pública na liberação do depósito recursal para o empregador. Do contrário, se teria apenas institucionalizado mais uma forma de beneficiar aquele que descumpriu a ordem jurídica (o que está inequivocamente pressuposto no fato de já ter sido condenado judicialmente), sendo, também, um forma de punir a vítima do ilícito.
Nenhum desses requisitos se encontra satisfeito nos presentes autos ou mesmo foi considerado na argumentação trazida pela reclamada em sua petição.
Por todos esses motivos, indefiro a pretensão formulada.
De todo modo, há de se reconhecer que a preocupação da requerente com a minimização dos efeitos da crise humanitária provocada pela pandemia tem bastante sentido.
Então, acolhendo o raciocínio da requerente - que por si expressa uma concordância - de que as quantias integradas aos depósitos judiciais devem ser postas em circulação, como forma de estimular a economia e minorar o sofrimento humano decorrente dos graves efeitos da pandemia da COVID-19, conforme reconhecido pela OMS, e considerando que a parte mais necessitada nos presentes autos é, inegável, inquestionável e insofismavelmente, o trabalhador, cujo direito fundamental, inclusive, não foi respeitado pela reclamada (requerente), determino a intimação da reclamante para que, no prazo de 05 (cinco) dias, manifeste-se a respeito de seu interesse no levantamento, para si, do depósito recursal, nos moldes previstos no art. 520, do CPC, o que, inclusive, dispensa a exigência de caução, por se tratar de verba de natureza alimentar, consoante previsto no inciso I, do art. 521, do CPC.
Jorge Luiz Souto Maior
Desembargador da - 6ª Câmara
ção Tribunal Regiona do Trabalho da 15ª região