Vistos.
Trata-se de ação civil pública interposta por SINDICATO DOS AGENTES COMUNITÁRIOS DE SAÚDE DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO em face de 1) ORGANIZAÇÃO SOCIAL INSTITUTO GNOSIS; 2) SPDM- ASSOCIACAO PAULISTA PARA O DESENVOLVIMENTO DA MEDICINA, CENTRO DE EXCELENCIA EM POLITICAS PUBLICAS – CEPP; 3) IDEAS - INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO INSTITUCIONAL E AÇÃO SOCIAL E 4) FIOTEC - FUNDACAO PARA O DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLOGICO EM SAUDE na qual requer, em sede de antecipação de tutela, a liberação de todos os substituídos, enquadráveis no grupo de risco para a COVID 19, de comparecer ao trabalho.
A legitimidade ativa e o cabimento da medida encontram-se amparados pelos textos legais vigentes no ordenamento pátrio (Lei 7.347/85 c/c Lei 8078/90) que apontam a presente medida (ação civil pública) como o meio adequado para buscar provimento jurisdicional diante de lesão a direitos individuais homogêneos, coletivos e/ou difusos e, ainda, apontam as associações sindicais como uma das legitimadas para seu ajuizamento.
A partir da narrativa trazida pela parte autora depreende-se ser esse o objeto da pretensão, na medida em que pretende a concessão de provimento jurisdicional, que retire, dos substituídos que se encontrem no grupo de risco para a COVID 19, a obrigatoriedade de comparecer ao trabalhado. Desvela-se, pois, pretensão que abarca direitos coletivos e difusos dos substituídos.
Assim, satisfeitos os pressupostos processuais, passo à análise do pedido liminar formulado.
Em 11/03/2020, a OMS (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE) reconheceu que está em curso pandemia mundial causada pela COVID-19.[1] Diante desse cenário, protocolos mundiais foram sugeridos pela OMS no combate à pandemia, dentre as quais a necessidade de isolamento social e de proteção aos profissionais de saúde que atuem na linha de frente ao combate à pandemia.
No mesmo sentido, as orientações advindas do Ministério da Saúde, da Nota Técnica Conjunta nº 2/2020 da Procuradoria Geral do Trabalho – CONAP - Coordenadoria Nacional de Combate às Irregularidades Trabalhistas na Administração Pública e do Decreto do Governo do Estado do Rio de Janeiro de nº 46.973 de 16/03/2020 orientam quanto à necessidade de adoção do isolamento social e de proteção ao trabalhador que atua em atividades ditas essenciais (ou seja, aquelas que não podem curvar-se ao isolamento social).
Registre-se, ainda, que, em 20 de março de 2020, ficou reconhecido, pela República Federativa do Brasil, o estado de calamidade pública, nos termos do Decreto Legislativo de nº 06/2020, com efeitos até 31 de dezembro de 2020. Por sua vez, o estado de calamidade pública, para fins trabalhistas, foi reconhecido como hipótese de força maior, nos termos do disposto no artigo 501 da Consolidação das Leis do Trabalho, como se depreende dos termos da Medida Provisória n.º 927/2020, em seu artigo 1º, parágrafo único, e do Decreto Legislativo n.º 06/2020.
Na data de hoje (25/05/20), o Brasil conta com 367.906 casos de COVID-19, com 22.965 mortes, ocupando, tragicamente, o segundo lugar no mundo em termos de contágio.[2]
Pois bem, diante dos esforços mundiais que estão sendo implementados para o combate à pandemia, foram constatadas condições clínicas de risco para o desenvolvimento de infecção grave causada pela COVID-19 em pessoas com algumas dessas características: 1) idade igual ou superior a 60 anos; 2) cardiopatias graves ou descompensadas: insuficiência cardíaca; cardiopatia isquêmica e arritmias; 3) pneumopatias graves ou descompensadas: em uso de oxigênio domiciliar; asma moderada/grave; DPOC; 4) imunodepressão; 5)doenças renais crônicas; 6) doenças hepáticas em estágio avançado; 7) diabetes mellitus, conforme juízo clínico; 8) obesidade com IMC ≥ 40; 9) doenças cromossômicas com estado de fragilidade imunológica e 10) gestação.[3]
No mesmo sentido, consta no boletim epidemiológico emitido pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, publicado em 06 de abril de 2020, disponível em www.saude.gov.br , acessada em 25/05/2020, que estão no grupo de risco: pessoas com mais de sessenta anos, cardiopatas, portadores de asma moderada e grave, imunodeprimidos (aqui incluídos os que estão submetidos a tratamento quimioterápico), doentes renais crônicos, diabéticos e gestantes.
Além dos grupos de risco descritos acima, o Ministério da Saúde orienta que lactantes sem comorbidades, que atuem como profissionais de saúde no combate à COVID-19, sejam realocadas de função, para atividades de gestão ou apoio, de forma a minimizar a chance de contato com pessoas ou ambientes contaminados, preferencialmente em trabalho remoto, diante dos riscos decorrentes do estado de lactantes.[4]
Assim, dentro da cena inaugurada pela pandemia decorrente do COVID-19, o Ministério da Saúde recomenda o afastamento laboral de profissionais que apresentem condições clínicas de risco para infecção grave por COVID-19.[5]
A pretensão autoral deve ser analisada a luz do cenário gerado pela COVID-19 e ainda a luz do paradigma inaugurado pela Constituição Federal de 1988 (em especial o contido nos artigos 5º e 196, que garantem a todos o direito à saúde e, ainda, o artigo 225, que garante a todos trabalhadores meio de ambiente de trabalho salubre).
Entram em cena as significações passíveis de serem realizadas pelas agências judiciais para a construção da norma jurídica, norma aí compreendida como produto da interpretação dos textos legais.
Nesse sentido, o processo de compreensão (e, portanto, de produção de sentidos) não opera fora da história. No Brasil, a situação hermenêutica do intérprete é fixada pelo Estado Democrático de Direito, consubstanciado pela Constituição Federal de 1988.
Democracias constitucionais presentificam o direito dos cidadãos serem julgados a partir do campo semântico intersubjetivamente construído pelo processo democrático. Dito de outra forma: o processo democrático exige que as agências judiciais, no momento da atribuição de sentidos ao texto, observem os limites semânticos intersubjetivamente estabelecidos.
Interpretações que não permitam o acontecer do texto constitucional, quando promovidas pelo Judiciário, instituem um problema de cunho democrático, na medida em que afastam os consensos construídos democraticamente por atitude de um membro destituído de qualquer legitimidade democrática.
Assim, no paradigma democrático, as agências judiciais devem concretizar o projeto constitucional, buscando sentidos dentro dos limites constitucionalmente fixados. Ultrapassar tais limites e permitir que os sentidos atribuídos à constituição sejam elaborados à revelia do processo democrático é contrário os marcos de um Estado Democrático de Direito.
Dessa forma, para fins de produção de sentido, em sede de decisão judicial, entram em cena os constrangimentos linguísticos-epistemológicos que interpelam ao intérprete a aceitar sua posição enquanto ente que compartilha sentidos.[6] No paradigma democrático, a linguagem não está a disposição das agências judiciais quando da produção de sentidos.[7]
Uma vez desvelados os limites para as significações promovidas pelas agências judiciais dentro do paradigma democrático, vejamos a pretensão autoral:
O risco à saúde de todos, diante do cenário de pandemia causada pela COVID-19, é incontroverso. A ciência médica desvela, ainda, que a COVID-19 se manifesta de forma extremamente grave, com risco de evoluir para óbito, para pessoas do grupo de risco, o que evidencia que, para um grupo de pessoas, a COVID-19 implica riscos maiores (quando comparado aos riscos vivenciados pelas pessoas que não estão nos grupos de risco). Justamente por essa razão, o Ministério da Saúde, conforme visto acima, recomendou o afastamento laboral de profissionais que apresentassem condições clínicas de risco para infecção grave por COVID-19.[8]
Diante de tal quadro, pergunta-se: qual o fundamento constitucional (lembremo-nos que o intérprete, no paradigma democrático, não produz sentidos de forma incondicionada, mas balizado pelo paradigma constitucional) para retirar os substituídos de tal proteção? Será que o fato de atuarem em atividades essenciais exsurge como elemento que impeça que façam jus ao mesmo tratamento deferido aos demais trabalhadores? Dito de outro modo: há no caso, elemento que permita tratamento diferenciado a esses profissionais?
É evidente que a isonomia não se restringe a um aspecto meramente formal. A isonomia, em sua dimensão material, evidencia que, em casos nos quais os sujeitos não estejam em condições similares (como, por exemplo, na política de cotas), há justificativa para que recebam tratamento diferenciado por parte do Estado. Nesses casos, o tratamento diferenciado é justamente aquele que vai permitir (mais uma vez o exemplo da política de cotas mostra-se didático) que a isonomia (material) seja alcançada.
Pois bem, no caso dos autos, pergunta-se: qual o fundamento constitucional – diante do princípio da isonomia – que justifique que os substituídos, que se encontrem nas situações de risco para a COVID-19, não tenham a saúde tutelada da mesma forma dos demais trabalhadores brasileiros?
O fato de tais profissionais atuarem em atividades essenciais exsurge, por si só, como impeditivo da concretização da isonomia? Há aqui a mesma situação base (como na política de cotas, por exemplo) que justifique tratamento diferenciado para esses profissionais?
A resposta é dada pela norma emanada do texto constitucional: o direito à saúde é direito fundamental de TODOS OS BRASILEIROS. O direito ao meio ambiente de trabalho salubre é direito de TODOS OS TRABALHADORES BRASILEIROS. Não há fundamento constitucional que permita excluir os profissionais que exerçam atividades essenciais para o combate a COVID-19 de tais garantias. E isso se justifica na medida em que há condições de possibilidade de que as atividades essenciais para o combate a COVID-19 (ora prestadas pelos substituídos que estejam no grupo de risco) continuem sendo prestadas (apenas o serão de forma diversa).
O que está em jogo, portanto, é apenas a forma mediante a qual as atividades dos réus serão prestadas. O que se busca é um meio de conferir aos trabalhadores inseridos no grupo de risco a mesma proteção conferida aos demais trabalhadores.
Pergunta-se, pois: é possível que as atividades prestadas pelos réus continuem a ser prestadas sem que isso implique em risco para os agentes comunitários de saúde que se encontrem no grupo de risco? A resposta é positiva, seja por meio de contratações emergenciais de pessoas que não estejam no grupo de risco (algo que é previsto em lei); seja por meio do trabalho exclusivamente remoto/virtual dos agentes comunitários de saúde que se encontrem no grupo de risco ou por qualquer outro meio compatível com o quadro constitucional acima desenhado.
Assim, a tutela a saúde ora vindicada não implica em risco de de lesão a saúde da população em geral, na medida em que os serviços essenciais prestados pelos réus continuarão a ser prestados.
O que se tutela, por meio dessa decisão, é a forma mediante a qual as atividades dos réus serão realizadas: através da violação da saúde dos profissionais enquadrados no grupo de risco (o que viola o princípio da isonomia, já que os demais profissionais que experimentam a mesma situação – estar no grupo de risco – têm a saúde tutelada por meio do Estado ante aos riscos de morte, se expostos à COVID-19) ou mediante a proteção da saúde dos profissionais enquadrados no grupo de risco (da mesma forma deferida aos demais trabalhadores)?
Essa é a pergunta que se deve responder ao analisar o requerimento do autor. E, como dito acima, para a construção da resposta, as significações promovidas pelas agências judiciais devem observar os parâmetros constitucionais.
Assim, a atuação em atividade essencial não é algo que justifique a violação do direito à isonomia, à saúde e ao meio de ambiente de trabalho dos trabalhadores que estejam em grupo de risco, na medida em que há meios, amparados pelo ordenamento jurídico, para que os serviços essenciais, até então prestados por esses profissionais (inseridos no grupo de risco), continuem a ser prestados.
Registre-se, ainda, que o valor social do trabalho (o que inclui a proteção a saúde dos trabalhadores e ao meio ambiente de trabalho em que inseridos) é o limite de atuação da ordem econômica, nos termos do artigo 170 da CF/88, o que evidencia que questões monetárias não podem exsurgir como óbice para que os trabalhadores dos réus tenham flexibilizados os direitos à isonomia, à saúde e ao meio ambiente.
Assim, se há condições de possibilidade dos réus continuarem a prestar as atividades sem que isso implique em violação a preceitos constitucionais (tais como, a contratação emergencial de pessoas não inseridas no grupo de risco ou a realização de trabalho remoto pelos trabalhadores inseridos no grupo de risco, por exemplo) não há fundamento constitucional para retirar as proteções constitucionais dos substituídos incluídos no grupo de risco.
Vejamos, agora, os contratos de trabalho dos trabalhadores que, em razão da pandemia causada pela COVID-19, encontram-se no grupo de risco.
Nos casos em que o trabalho remoto não seja viável, a hipótese é de interrupção do contrato de trabalho, com a suspensão da prestação de serviços e manutenção da complexo salarial, vejamos:
O artigo 61 da CLT prevê hipóteses de interrupção do contrato de trabalho; em tais hipóteses, as atividades do trabalhador serão suspensas com a manutenção de sua remuneração. Dentre as hipóteses, estão presentes causas acidentais e causas de força maior que impossibilitarem a realização do trabalho.
Pois bem, o artigo 161 da CLT prevê a possibilidade de interdição, por determinação estatal, de setor da empresa em caso de grave e iminente risco para o trabalhador. A Portaria 3.214/78, item 3.1.1, por sua vez, define como grave e iminente risco toda a condição ambiental de trabalho que possa causar acidente ou doença profissional com lesão grave à integridade física ao trabalhador.
Assim, considerando o direito fundamental à saúde; considerando o direito ao meio ambiente de trabalho salubre, preconizados pelos artigos 196 e 225 da Constituição Federal, e considerando os dispositivos infraconstitucionais acima indicados (artigos 61 e 161 da CLT c/c Portaria 3.214/78, item 3.1.1), há amparo para a pretensão autoral, na medida em que tais dispositivos garantem, aos trabalhadores que estejam em situação de riscos diante do cenário pandêmico causado pela COVID-19, o direito de terem os contratos interrompidos diante do iminente risco à saúde.
Assim, com fulcro nos artigos 294 e 300, § 2º ambos do CPC; com fulcro na probabilidade do direito autoral e no perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo, considerando que a demora na prestação jurisdicional poderá comprometer a vida dos trabalhadores, defiro parcialmente a tutela pretendida, nos seguintes termos:
1. determino que os réus se abstenham de exigir trabalho presencial, no prazo de 3 dias, a partir da ciência desta decisão, dos trabalhadores substituídos pelo Sindicato Autor que pertencem ao grupo de risco, assim sendo: 1) idade igual ou superior a 60 anos; 2) portadores de cardiopatas; 3) portadores de pneumopatias graves; 4) portadores de imunodepressão; 5) portadores de doenças renais crônicas; 6) portadores de doenças hepáticas em estágio avançado; 7) portadores de diabetes mellitus, conforme juízo clínico; 8) portadores de obesidade com IMC ≥ 40; 9) portadores de doenças cromossômicas com estado de fragilidade imunológica e 10) gestantes e lactantes, mantido o salário base, acrescido do adicional de insalubridade, bem como as demais vantagens fixadas em norma coletiva, enquanto perdurar o risco à saúde no período crítico de enfrentamento da emergência decorrente da COVID-19;
2. fica facultado aos réus a concessão de teletrabalho a esses trabalhadores;
3. os trabalhadores substituídos que não tiverem interesse em se afastar, deverão manifestar-se por escrito e com assistência do Sindicato Autor;
4. fica fixada a multa de 2.000,00 por dia e por trabalhador, caso descumpridas as determinações acima pelos réus.
Rio de Janeiro, 25/05/2020
Luciana Muniz Vanoni
Juíza do Trabalho substituta