DECISÃO - Revogação da prisão preventiva - SP

VISTOS

 

 

O Poder Judiciário constitui o instrumento concretizador das liberdades civis, das franquias constitucionais e dos direitos fundamentais assegurados pelos tratados e convenções internacionais subscritos pelo Brasil. Essa alta missão, que foi confiada aos juízes e Tribunais, qualifica-se como uma das mais expressivas funções políticas do Poder Judiciário”

                 Ministro Celso de Melo, STF

                 ADPF n. 54

 

 

Os corréus RB, GPS e MFS, por seus defensores constituídos, requereram a revogação da prisão preventiva ou a concessão de liberdade provisória ou a aplicação de medidas cautelares alternativas, alegando um fato novo, ou seja, a pandemia do Covid-19, que seria motivo bastante para o seu desencarceramento (fls. 986/994).

O Ministério Público pediu a mantença da prisão preventiva, alegando que ainda há necessidade da medida cautelar aplicada e que os réus não demonstraram fazer parte do grupo de risco para que façam jus ao desencarceramento em razão da pandemia do Covid – 19 (fls. 998/1000).

DECIDO.

Os corréus estão presos, provisoriamente, desde 04 de janeiro de 2017, ou seja, há mais de três (03) anos. Em 14 de fevereiro de 2017, este juízo RECEBEU a denúncia oferecida contra eles. Vária vez durante a instrução este juízo fez a revisão da decretação da prisão preventiva e julgou necessário mantê-la. Em 19 de dezembro de 2018, os corréus foram PRONUNCIADOS e a sua prisão preventiva foi MANTIDA, em face da persistência de sua necessidade. Mas, agora, passados mais de três anos de segregação provisória, apesar dos esforços deste juízo para conferir celeridade a este processo, não é mais possível manter a prisão preventiva dos corréus, sobretudo em face da atual pandemia do COVID-19.

Aliás, diante da atual Pandemia do Covid-19, o CNJ recomenda, expressamente, no artigo 4º da Recomendação n. 62/2020, que os juízos criminais, “com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus, realizem a revisão das prisões preventivas decretadas, priorizando a situação das pessoas presas há mais de 90 dias, como ocorre neste processo.

E não tem razão o Promotor de Justiça, quando afirma que o desencarceramento dos acusados não seria cabível porque eles não demonstraram fazer parte do grupo de risco.

É que, na realidade, todos os encarcerados fazem parte do grupo de risco.

O CNJ - CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA editou, no 17 de março de 2020, a RECOMENDAÇÃO n. 62, subscrita por seu Presidente, Ministro Dias Toffoli, recomendando aos Tribunais e magistrado e magistradas a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus – Covid-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo, com  as seguintes finalidades: I – a proteção da vida e da saúde das pessoas privadas de liberdade, dos magistrados, e de todos os servidores e agentes públicos que integram o sistema de justiça penal, prisional e socioeducativo, sobretudo daqueles que integram o grupo de risco, tais como idosos, gestantes e pessoas com doenças crônicas, imunossupressoras, respiratórias e outras comorbidades preexistentes que possam conduzir a um agravamento do estado geral de saúde a partir do contágio, com especial atenção para diabetes, tuberculose, doenças renais, HIV e coinfecções; II – redução dos fatores de propagação do vírus, pela adoção de medidas sanitárias, redução de aglomerações nas unidades judiciárias, prisionais e socioeducativas, e restrição às interações físicas na realização de atos processuais; e III – garantia da continuidade da prestação jurisdicional, observando-se os direitos e garantias individuais e o devido processo legal (RESOLUÇÃO CNJ, n. 62/2020, art. 1º, parágrafo único).

Para editar esse ato normativo, o CNJ considerou que a ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE – OMS, em 11 de março de 2020, declarou pandêmica a proliferação do novo coronavírus (v. também Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional da Organização Mundial da Saúde, em 30 de janeiro de 2020, a Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional – ESPIN, veiculada pela Portaria no 188/GM/MS, em 4 de fevereiro de 2020, e o previsto na Lei no 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus). Reconheceu, também, o CNJ, nessa Recomendação, que “a manutenção da saúde das pessoas privadas de liberdade é essencial à garantia da saúde coletiva e que um cenário de contaminação em grande escala nos sistemas prisional e socioeducativo produz impactos significativos para a segurança e a saúde pública de toda a população, extrapolando os limites internos dos estabelecimentos”. Além disso, o CNJ também afirmou “a necessidade de estabelecer procedimentos e regras para fins de prevenção à infecção e à propagação do novo coronavírus particularmente em espaços de confinamento, de modo a reduzir os riscos epidemiológicos de transmissão do vírus e preservar a saúde de agentes públicos, pessoas privadas de liberdade e visitantes, evitando-se contaminações de grande escala que possam sobrecarregar o sistema público de saúde”. E, segundo o CNJ, também não se pode olvidar “o alto índice de transmissibilidade do novo coronavírus e o agravamento significativo do risco de contágio em estabelecimentos prisionais e socioeducativos, tendo em vista fatores como a aglomeração de pessoas, a insalubridade dessas unidades, as dificuldades para garantia da observância dos procedimentos mínimos de higiene e isolamento rápido dos indivíduos sintomáticos, insuficiência de equipes de saúde, entre outros, características inerentes ao “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário brasileiro reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 347”.

Assim, diante da insofismável necessidade de adoção de medidas desencarceradoras para   minimizar   os   impactos   da pandemia   da   COVID-19 e reduzir danos diante da atual situação de calamidade sanitária mundial causada por essa pandemia viral, que está infelicitando o planeta e, em especial, neste momento, nosso país e esta comarca, em particular, é preciso evitar a ampliação da população carcerária, desnecessariamente, observando, nos termos da Recomendação do CNJ, a máxima excepcionalidade de novas ordens de prisão preventiva (v. art. 4º, item III)

Ademais, como observou, recentemente, o Ministro Gilmar Mendes, do STF, ao conceder habeas corpus para uma mulher encarcerada preventivamente, “em   um   cenário   de   pandemia   mundial, que   evolui   no Brasil e provavelmente ainda se ampliará muito até o seu pico para então iniciar uma regressão, o Estado deve adotar uma postura proativa para reduzir os danos que certamente assolarão diversas vidas. Portanto, reduzir   o   número   de   mortes   que   certamente ocorrerão nas prisões brasileiras, que, em um estado de “normalidade”, já reconhecemos como   reprodutoras   de   violações   sistemáticas   a   direitos fundamentais a partir da declaração do Estado de Coisas Inconstitucional (ADPF 347). Em   tal   julgado,   o   Plenário   desta   Corte   declarou,   durante   o julgamento   da   medida   cautelar,   a   existência   de   um   “estado   de   coisas inconstitucional”   no   sistema   penitenciário   brasileiro,   tendo   em   vista   o cenário   de   superlotação,   falta   de   estrutura   adequada,   proliferação   de doenças   infectocontagiosas,   violências   físicas   e   psíquicas,   rebeliões, mortes e ausência de serviços de saúde nos presídios brasileiros. Do   exemplo   chinês   podemos   verificar   que   a   população   carcerária será   impactada   diretamente   pela   pandemia.   Noticia-se   que   houve contaminação de inúmeros presos (https://thediplomat.com/2020/03/cracks-in-the-system-covid-19-in-chinese -prisions) e que isso é um fato determinante para a proliferação da contaminação     na     própria     sociedade     externa     aos     presídios (http://theconversation.com/why-releasing-some-prisoners-is-essential-to-stop-the-spread-of-coronavirus-133516)” (HC 183584 / RJ).

É por isso que o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação CNJ n. 62, de 17 de março de 2020, estabelecendo medidas para reduzir a superlotação dos presídios e  impedir   a   propagação do Covid-19, com o objetivo de evitar a ocorrência de danos irreparáveis à saúde e à vida de milhares de pessoas que se encontram sob a guarda específica do Estado, bem como das pessoas que trabalham nesses estabelecimentos prisionais, o que certamente ocorrerá, caso haja a propagação em massa desse novo vírus nas condições atualmente existentes.

Aliás, o presidente do CNJ e do Supremo Tribunal, ministro Dias Toffoli, ressaltou a importância da medida para atender à urgência e atipicidade da situação, afirmando que “estamos diante de uma pandemia com efeitos ainda desconhecidos. Mas não há dúvidas quanto à urgência de medidas imediatas e de natureza preventiva para os sistemas prisional e socioeducativos, considerando o potencial de contaminação em situação de confinamento de pessoas que se encontram sob a tutela do Estado. É imperativo que o Judiciário não se omita e adote uma resposta rápida e uniforme, evitando danos irremediáveis".

Como observaram mais de setenta entidades brasileiras dedicadas à proteção e garantia dos direitos humanos, em documento subscrito em apoio à Recomendação CNJ n. 62/2020, “o sistema prisional brasileiro e de socioeducação padecem há anos com as péssimas condições estruturais, superlotação, mortes de causas não violentas e proliferação de doenças graves, como tubérculos e sarna, retrato da sua atuação seletiva orientada pelo racismo estrutural, encarcerando majoritariamente pessoas negras e pobres. A gravidade das inúmeras violações foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, ao declarar o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional na ADPF 347, da mesma forma no Habeas Corpus Coletivo 143.641/SP, protetivo às mulheres e seus filhos, bem como ao reconhecer condições degradantes e medidas de desinternação de adolescentes, no Habeas Corpus 143.988/ES. O acerto da Recomendação 62 do CNJ, editada com a celeridade que o atual momento requer, foi reconhecido por organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, haja vista o alerta da comunidade científica de que o sistema prisional possui condições ideais para a proliferação do coronavírus. Importante que os Tribunais locais busquem maior incidência da Resolução. As medidas sugeridas igualmente visam à proteção de milhares de trabalhadores do sistema prisional, como agentes penitenciários, profissionais de saúde, educação, advogados e funcionários de empresas prestadoras de serviços, cuja essencialidade do trabalho torna imprescindível o deslocamento diário para as unidades prisionais e de socioeducação”.[1]

E não se olvide que a CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos - editou a Resolução n. 1/2020, Pandemia y Derechos Humanos en Las Américas, em 10 de abril de 2020, afirmando que, neste momento de necessidade de adoção de medidas de emergência e contenção diante da pandemia do COVID-19,  os  Estados  devem dar prioridade às pessoas historicamente excluídas ou em risco especial, entre as quais estão as pessoas privadas de liberdade.

Aliás, a CIDH, nessa Resolução normativa, reconhecendo que as prisões preventivas devem ser reservadas para casos excepcionais e aplicadas somente diante de absoluta imprescindibilidade, determinou que devem ser reavaliados os casos de prisão preventiva para serem identificados aqueles que comportam a substituição da privação de liberdade por outras medidas alternativas à prisão.

E não se olvide que a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948, em seu artigo XI, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica - 1969) garantem a todas as pessoas o direito à preservação de sua saúde por medidas sanitárias.

Além disso, o Protocolo Adicional à Convenção Americana Sobre Direitos Humanos em Matéria de  Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo De San Salvador - 1988) assegura a todas as pessoas o direito ao mais alto nível de assistência à saúde e afirma a obrigação dos Estados de reconhecer a saúde como um bem público, adotar uma série de medidas para garantir esse direito, entre as quais está a total imunização, a prevenção e o tratamento das enfermidades endêmicas, a educação da população sobre a prevenção e tratamento dos problemas de saúde e a satisfação das necessidades de saúde dos grupos de mais alto risco, o que é impossível garantir para as pessoas presas, máxime em tempos de pandemia.

A CIDH, por isso, determinou que os Estados adotem medidas especiais visando ao desencarceramento, com apego ao princípio «pro persona», para que prevaleça o devido e oportuno cuidado com a população sobre qualquer outra pauta ou interesse de natureza pública ou privada (“La CIDH y su REDESCA instan a asegurar las perspectivas de protección integral de los derechos humanos y de la salud pública frente a la pandemia del COVID-19.” Disponible en: http://www.oas.org/es/cidh/prensa/ comunicados/2020/060.asp.).

A CARTA SOCIAL DAS AMÉRICAS E SEU PLANO DE AÇÃO, por sua vez, dispõe sobre a garantia do gozo no grau máximo de saúde que se puder alcançar é um dos direitos humanos fundamentais, afirmando que os Estados membros da OEA reconhecem que o direito à saúde é uma condição fundamental para a inclusão e coesão social, o desenvolvimento integral, e o crescimento econômico com equidade, por um lado, mas, priorizam a integralidade ao abordar as outras facetas dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, como o direito à alimentação, à moradia, ao emprego e previdência social (https://www.unfpa.org/es/el-enfoque-basado-en-los-derechos-humanos).

E a OEA editou o Guia Prático de Respostas Inclusivas e com enfoque de Direitos diante da Pandemia do COVID-19 nas Américas, afirmando que a saúde é um direito e que essa pandemia afeta, diretamente, a todas as pessoas, mas, de modo mais profundo, as pessoas em vulnerabilidade, entre as quais estão as pessoas encarceradas, afirmando o seguinte:

“As pessoas privadas de liberdade encontram-se em uma situação de maior vulnerabilidade ao contagio do COVID-19 comparadas com a população em geral dado que vivem em espaços confinados com muitas outras pessoas por períodos de tempo prolongados. O encarceramento propicia a propagação de enfermidades, dificulta o acesso aos serviços básicos de saúde e os cárceres constituem fator de risco para a ocorrência de calamidades. (...) A separação física e o auto-isolamento dessas pessoas é praticamente impossível, assim como manter as condições de higiene e prevenção, como lavar as mãos, (...). As pessoas privadas de liberdade também enfrentam outros fatores que aumentam o risco ante o COVID-19, como o encontrar-se em piores condições de saúde e contar com um sistema imunológico debilitado devido ao estresse, má nutrição ou prevalência ou coexistência de outras enfermidades como tuberculose ou outras doenças virais sanguíneas. Experiencias passadas mostram que as prisões, cárceres e outros centros de detenção, onde as pesoas encontram-se muito próximas, podem atuar como uma fonte de infecção, amplificação e propagação de enfermidades infecciosas tanto dentro como fora dos estabelecimentos, motivo pelo qual o cuidar da saúde das pessoas privadas de liberdade é amplamente considerado como uma maneira de também cuidar da saúde pública”.

Assim, a OEA, no aludido documento, faz, em seu Capítulo 8 (La Protección De Las Personas Privadas De Libertad Durante La Pandemia Del Covid-19), entre outras, as seguintes recomendações: adotar medidas que reduzam drasticamente a população prisional e tenham um impacto imediato na situação de superpopulação; considerar a detenção ou privação de liberdade como uma medida de último recurso; e adotar medidas alternativas à privação de liberdade para as pessoas que estão em prisão preventiva.

Como se vê, é imprescindível que sejam tomadas providências para realizar o desencarceramento e a redução da população carcerária, observados os estândares internacionais de garantia de direitos, mas, também, para evitar a ampliação do aprisionamento, principalmente preventivo, que deve ser reservado, sobretudo neste momento excepcional, apenas para casos de extrema necessidade e que estejam a exigir o aprisionamento como solução única e insubstituível.

Aliás,  o CNJ, como bem observou o STF, ao também recomendar seja observada a máxima excepcionalidade e, também, a reavaliação de prisões provisórias em razão da propagação do Covid-19, na verdade, apenas reforçou   as   normas   que   já   constam   da   legislação federal   e   da   Constituição Federal, relativas aos direitos e garantias fundamentais à   liberdade,   ao   devido   processo   legal, à presunção de inocência e à  saúde,  previstas  no art.  5º, caput e incisos L, LIV e LVII, art. 6º e art. 196 da CF/88.

Decididamente, não apenas o STF, mas, todos os juízes e juízas devem exercer o seu papel primacial de guardiões e guardiãs  dos direitos   fundamentais, “mantendo   a proteção do núcleo essencial desses direitos, ou seja, as garantias mínimas que   não   podem   ser   restringidas   sequer   em   situações   de   emergência   e calamidade como a que ora enfrentamos”.

Como afirmou o STF, na decisão acima mencionada, “o Covid-19 afeta a vida de todas as pessoas. Contudo, impacta especialmente nas vidas dos mais vulneráveis, dentre   os   quais   se   incluem   as   pessoas   submetidas   a medidas   restritivas   de   liberdade, tendo em vista   as   condições   de encarceramento no país. Sabe-se, até o momento, que a maioria dos casos do Covid-19 geram sintomas leves, semelhantes   a   uma   gripe   ou   resfriado.   No   entanto, os presos   e   presas   possuem   imunidade   muito   baixa   por   conta   das condições   degradantes   existentes   nos   cárceres.  A tuberculose, por exemplo, possui uma incidência 30 vezes maior nas prisões do que na sociedade em geral. É   importante   destacar   que   a   possível   manutenção   de   presos submetidos ao risco de uma grave pandemia em condições inseguras e desumanas   de   detenção   pode   configurar   violação   à   proibição constitucional da imposição de penas cruéis (art. 5º, XLVII, “e”, da CF/88). Situação semelhante foi analisada pela Suprema Corte dos Estados Unidos   no   julgamento   dos   casos.   Coleman   vs.   Brown, Plata   vs. Schwarzenegger   e   Brown   vs.   Plata, em   2011, nos   Estados   Unidos (SALINS, Lauren; SIMPSON, Shepard.   Efforts   to   fix   a   broken   system:Brown v. Plata and the prison overcrowding epidemic. Loyola UniversityChicago Law Journal. V. 44. nº 4. 2013. p. 1169). O pano de fundo desses precedentes foram as violações dos direitos à saúde de presidiários portadores de deficiências mentais e as falhas nos tratamentos médicos desses detentos que, de acordo com o tribunal da Califórnia,   violavam   exatamente   a   oitava   emenda   da   Constituição   dos Estados   Unidos,   que   proíbe   a   aplicação   de   penas   injustas   e   cruéis (ESTADOS UNIDOS. Suprema Corte. Brown v. Plata. nº 09-1233)”.

E, como também afirmou, recentemente, o Ministro Nefi Cordeiro, do STJ, reconhecendo a situação de vulnerabilidade da população carcerária do país diante da crise de Covid-19, o risco da pandemia é ampliado nas condições de aprisionamento, em razão da concentração excessiva, da dificuldade de higiene e das deficiências de alimentação, comuns no sistema prisional”.

Decididamente, devem ser observados, no âmbito jurisdicional, os estândares e marcos jurídicos internacionais estabelecidos no âmbito de proteção dos direitos humanos, especificamente sobre os direitos das pessoas privadas de liberdade, pois, o sistema interamericano de direitos humanos estabelece que os Estados estão em uma posição especial de garante de todos os direitos das pessoas que estão sob a sua custódia (Corte IDH. Caso Vera Vera y otra vs. Ecuador. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 19 de mayo de 2011. Serie C No. 226, párr. 42. Véase también el Informe sobre los derechos humanos de las personas privadas de libertad en las Américas, en particular el capítulo II sobre “la posición de garante del Estado frente a las personas privadas de libertad”).

Portanto, a mantença da prisão preventiva dos corréus, neste caso, somente seria possível, em tal situação sanitária pandêmica, de modo absolutamente excepcional, se houvesse motivos concretos a determinar a sua necessidade extrema e a absoluta inaplicabilidade de qualquer outra medida cautelar.

Aliás, segundo o artigo 9º, 3 do PIDCP, a prisão preventiva é admitida no sistema internacional de garantias dos direitos humanos, e perfeitamente compatível com a presunção de inocência, mas, dês que existam motivos concretos, devidamente comprovados, hábeis para justificar uma medida cautelar com fundamento na necessidade da segregação provisória, máxime neste momento de emergência e crise pandêmica em que os riscos sociais gerais, concretamente demonstrados, são maiores e mais intensos que os riscos decorrente da liberdade dos corréus.

Com efeito, com base nesse fundamento, recentemente, o STJ, com voto condutor do Ministro Rogério Schietti, decidiu o seguinte:

“Ante a crise mundial do coronavírus e, especialmente, a iminente gravidade do quadro nacional, intervenções e atitudes mais ousadas são demandadas das autoridades, inclusive do Poder Judiciário. Assim, penso que, na atual situação, salvo necessidade inarredável da segregação preventiva – mormente casos de crimes cometidos com particular violência –, a envolver acusado de especial e evidente periculosidade ou que se comporte de modo a, claramente, denotar risco de fuga ou de destruição de provas e/ou ameaça a testemunhas, o exame da necessidade da manutenção da medida mais gravosa deve ser feito com outro olhar”. “Apoiado nessas premissas, precipuamente em conformidade com os arts. 1º e 4º da Recomendação n. 62/2020 do CNJ, entendo que não são bastantes as ponderações invocadas pelas instâncias ordinárias para manter a ordem de constrição do réu”. “Deferida a liminar, para assegurar ao paciente que aguarde em liberdade o julgamento do mérito deste writ ” (STJ; Habeas Corpus nº 567.457-DF; rel. Rogério Schietti Cruz; Decisão Monocrática; j. 19/03/2020).

Decisivamente, como reiterou o STJ em outra decisão, “é preciso dar imediato cumprimento à recomendação do Conselho Nacional de Justiça, como medida de contenção da pandemia mundialmente causada pelo coronavírus (Covid-19), devendo a custódia ser substituída pela prisão cautelar em regime domiciliar.” Liminar deferida. (STJ; Habeas Corpus nº 567.006-SP; rel. Sebastião Reis Júnior; Decisão Monocrática; j. 19/03/2020).

No mesmo sentido, assim também julgou o   STJ:

“Tráfico de drogas (77,12 gramas de maconha). Pleitos de revogação da prisão preventiva e trancamento da ação penal. Deferida a liminar, apenas para ordenar a soltura do paciente. “Em conformidade com os arts. 1º e 4º da Recomendação nº 62/2020 do CNJ, entendo que não são bastantes as ponderações invocadas pelas instâncias ordinárias para embasar a ordem de constrição do réu, porquanto não contextualizaram, em elementos concretos dos autos, o periculum libertatis e a gravidade concreta da conduta perpetrada.” (STJ; Habeas Corpus nº 567.821-SP; rel. Rogerio Schietti Cruz; Decisão Monocrática; j. 23/03/2020).

         E o Tribunal de Justiça de São Paulo também já decidiu que, mesmo nos casos de graves acusações por tráfico de drogas, e embora presentes motivos para a decretação da prisão preventiva, esta não deve ser mantida diante da atual situação excepcional causada pela pandemia do Covid-19 (TJSP; Habeas Corpus nº 2043118-94.2020.8.26.0000, Rel. Xavier de Souza, 11ªC, j. 01/04/2020).

         Neste caso, portanto, não é mais possível manter a prisão preventiva, que deve ser substituída por outras medidas cautelares, com fundamento no artigo 319, III, IV e V do CPP, a saber: a) apresentação mensal a este juízo, a partir da cessação da suspensão do expediente forense presencial, para justificar e comprovar as suas atividades; b) proibição de manter qualquer tipo de contato com as testemunhas e vítimas nomeadas neste processo, devendo manter delas distância de pelo menos 500 metros; c) proibição de ausentar-se da Comarca até a realização do julgamento pelo Tribunal do Júri; e d) recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga.

  

         Aliás, o Tribunal de Justiça de São Paulo, em recente decisão, conduzido pelo voto do Desembargador Osni Pereira, afirmou que, mesmo em caso de acusação por tráfico de drogas, associação para o tráfico de drogas e receptação, mesmo diante da apreensão de 511 porções de cocaína, com peso de 378,48 gramas e 484 pedras de crack, pesando 165,45 gramas, a prisão preventiva, posto que bem decretada, deve ser substituída por outras medidas cautelares “previstas no artigo 319, incisos I, IV e V do Processo Penal”(TJSP; Habeas Corpus nº 2011096-80.2020.8.26.0000; rel. Osni Pereira; 16ª C; j. 30/03/2020).

         E o STJ já decidiu, também, no mesmo sentido:

“Defiro o pedido liminar para, excepcionalmente e em cumprimento à Recomendação CNJ n. 62/2020, substituir a prisão cautelar imposta ao paciente por prisão domiciliar.” (STJ; Habeas Corpus nº 567.961-SC; rel. Sebastião Reis Júnior; Decisão Monocrática; j. 23/03/2020).

         Com efeito, diante dos perigos sanitários da pandemia do COVID-19, e conforme recomendação do CNJ, a prisão preventiva, como regra, deve ser substituída por outras medidas cautelares:

“Em conformidade com os arts. 1º e  4º da Recomendação n. 62/2020 do CNJ –  inclusive o  conselho de ‘suspensão do dever de apresentação periódica ao juízo  das pessoas em liberdade provisória’ (art. 4º, II, grifei) –, constato ser suficiente e  adequado, para atender às exigências cautelares do art. 282 do CPP, impor ao réu – independentemente de mais acurada avaliação do Juízo monocrático – as providências alternativas positivadas no art. 319, IV e V, do CPP”. (STJ; Habeas Corpus nº 567.782-SP; rel. Rogerio Schietti Cruz; Decisão Monocrática; j. 23/03/2020).

         Por derradeiro, é preciso lembrar o que afirmou o ILANUD - Instituto Latino-americano das Nações Unidas para a Prevenção de Delito e Tratamento de Delinquente,  sobre a necessidade de medidas de desencarceramento e, em especial, sobre a imprescindibilidade da adoção de medida alternativas à prisão preventiva, lembrando, inclusive, as exigências das Regras de Tóquio:

“As prisões na América Latina e Caribe estão quase sempre superlotadas e isso dificulta o acesso ao saneamento adequado, o que exige que se tomem medidas para reduzir a quantidade de pessoas que se encontram privadas de liberdade; isso contribuirá, induvidosamente, a reduzir o risco de situações extremas nas quais o Covid-19 causa  estragos na população que, por si só, é vulnerável. O que se impõe, diante do atual cenário, é acelerar a implementação de propostas, inclusive, não são novas, mas que, agora, requer uma maior ênfase.  Com efeito, o que agora há que enfatizar é a colocação em marcha de mecanismos como os que podíamos encontrar em instrumentos como as Regras Mínimas Nações Unidas sobre as Medidas não Privativas da Liberdade, as Regras de Tóquio, as quais datam de 1990, mas agora com maior celeridade, diante da pandemia. As Regras de Tóquio estabelecem medidas substitutivas ao encarceramento, e são aplicáveis tanto durante o processo quanto às pessoas sentenciadas, o que é de grande relevância, dado que na América Latina e Caribe temos, além do uso às vezes excessivo da sanção penal privativa de liberdade, populações imensas em prisão preventiva em situações absolutamente inaceitáveis, o que faz com que a quantidade de presos preventivos tenha um peso demasiado no contexto global das pessoas privadas de liberdade” (O sistema prisional em face da encruzilhada produzida pela crise provocada pelo Convid-19, 19 de Abril de 2020).

 

ISTO POSTO, forte no artigo 319, III, IV e V do CPP, bem como na Recomendação n. 62/2020 do CNJ, no artigo XI da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica - 1969), no Protocolo Adicional à Convenção Americana Sobre Direitos Humanos em Matéria de  Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo De San Salvador - 1988), na decisão da CIDH, que determinou que os Estados adotem medidas especiais visando ao desencarceramento, com apego ao princípio “pro persona”, para que prevaleça o devido e oportuno cuidado com a população sobre qualquer outra pauta ou interesse de natureza pública ou privada, na CARTA SOCIAL DAS AMÉRICAS E SEU PLANO DE AÇÃO, no Guia Prático de Respostas Inclusivas e com enfoque de Direitos diante da Pandemia do COVID-19 nas Américas, editado pela OEA, especialmente em seu Capitulo 8, na Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional da Organização Mundial da Saúde, em 30 de janeiro de 2020, na Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional – ESPIN, veiculada pela Portaria no 88/GM/MS, em 4 de fevereiro de 2020, e o previsto na Lei no 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, na Resolução n. 1/2020, Pandemia y Derechos Humanos en Las Américas, de 10 de abril de 2020, editada pela Comissão Americana de Direitos Humanos, nas recomendações do ILANUD, em “O sistema prisional em face da encruzilhada produzida pela crise provocada pelo Convid-19, 19 de Abril de 2020”, no art.  5º, caput e incisos L, LIV e LVII, art. 6º e art. 196 da CF/88, SUBSTITUO a prisão preventiva dos corréus RB, GPS e MFS, pelas seguintes medidas cautelares:

a) apresentação mensal a este juízo, a partir da cessação da suspensão do expediente forense presencial, para justificar e comprovar as suas atividades;

b) proibição de manter qualquer tipo de contato com as testemunhas e vítimas nomeadas neste processo, devendo manter delas distância de pelo menos 500 metros;

c) proibição de ausentar-se da Comarca até a realização do julgamento pelo Tribunal do Júri; e

d) recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga.

Expeçam-se os alvarás de soltura.

Int.

Campinas, 1º de junho de 2020, ano do 72º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

JOSÉ HENRIQUE RODRIGUES TORRES

           JUIZ DE DIREITO

 

[1] Conselho Federal da OAB - ABJD-Associação Brasileira de Juristas pela Democracia - ABRACRIM-Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas - AJD-Associação Juízes para a Democracia - Andhep - Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação

ASBRAD Associação Brasileira de Defesa da Mulher da Infância e da Juventude - Assessoria Popular Maria Felipa Associação Brasileira de Juristas pela Democracia ABJD/ES - Associação de Apoio aos Presos, Egressos e Familiares- APEF(DF) - Associação Elas Existem -- Associação Grupo Orgulho, Liberdade e Dignidade-GOLD/ESCEDP- Comissão de Estudos de Direito Penal da OAB/RJ. Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação (CEDD/UnB) Centro de Referência em Direitos Humanos da Universidade Federal Rural Do Semiárido–CRDH/UFERSA - Centro de Referência em Direitos Humanos Marcos Dionísio da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – CRDH/UFRNCFNTX-Centro de Formação do(a) Negro(a) da Transamazonica e Xingu Círculo Palmarino – ES - Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais-CONDEGE Coletivo Amazônico - LesBiTrans Coletivo por um Ministério Público Transformador-Transforma MP Coletivo Rosas no deserto-Familiares, Amigos/as e egressos/as do sistema prisional DF. Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito da OABRJ. Comissão de Direito Penal da OAB/SP Comissão de Direitos Humanos OAB/SP Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB/SP Comissão de Segurança – pública da OAB/RJ COMITÊ ESTADUAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA DO RIO GRANDE DO NORTE – CEPCT/RNCOMUNEMA- Coletivo de Mulheres Negras Maria-Maria Conectas Direitos Humanos Conselho Estadual de Direitos Humanos e Cidadania do Rio Grande do Norte–COEDHUCI/RN Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo-DPES Todas Unidas Vicariato para Ação Social, Política e Ecumênica da Arquidiocese de Vitória-ES - Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro Eu Sou Eu-Reflexos de uma vida na prisão Fórum de Saúde Penitenciária do RJ Frente pelo Desencarceramento do DF Frente Estadual pelo Desencarceramento-RJ Frente pelo Desencarceramento de Minas Gerais Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas Privadas de Liberdade de Minas Gerais Grupo Prerrogativas Grupo Tortura Munca Mais IDDD-Instituto de Defesa do Direto de DefesaIGP- Instituto de Garantias Processuais Il e Ase OpoIya Olodoide Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial – Baixada Fluminense-RJ Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas-INNPD Innocence Project Brasil Instituto Brasileiro de Ciências Criminais-IBCCRIM Instituto Carioca de Criminologia Instituto de Cultura e Consciência Negra Nelson Mandela Instituto de Pesquisa e Estudos em Justiça e Cidadania–IPEJUC Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB Instituto Terra Trabalho e Cidadania-ITTCISER-Instituto de Estudos da Religião Laboratório de Direitos Humanos LADIH/UFRJ LibertaElas/PE Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ) Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate a Tortura (MNPCT) Movimento Moleque Movimento Negro Unificado-MNU/ESNEV-Núcleo de Estudos da Violência da Usp Coletivode Advocacia em Direitos Humanos-CADHu Observatório da Justiça de Cidadania do RN–OJC/RN Pastoral Carcerária Nacional-CNBB - Plataforma Brasileira de Política de Drogas-PBPD Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência Rede Justiça Criminal Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares no Rio Grande do Norte-RENAP/RN Sacerj-Sociedade dos Advogados Criminais do Estado do Rio de Janeiro Sindicato dos Advogados e Advogadas-SP (SASP)