Aborto Maria Maria

COMARCA DE CAMPINAS
Vara do Júri

PROCESSO Nº 279/2002

"De tal contexto probatório, resulta clara a inexistência de qualquer justificativa a que se obrigue a apelante a levar a termo uma gravidez em que é absolutamente inviável a sobrevivência do nascituro, em detrimento de sua sanidade psicológica, e até mesmo física, sendo certa a inexistência de vida humana na espécie, eis que se está diante de um ser que somente apresenta outros sinais vitais por sugar as energias e substâncias do corpo materno, e nada mais" (TRIBUNAL DE ALÇADA DE MINAS GERAIS, ap. nº 219.008-9; por v.u. foi dado provimento ao apelo da interessada e AUTORIZADA a interrupção da gravidez, em 18.06.96)

"Mas vós, por favor, não deveis vos indignar.
Toda criatura precisa da ajuda dos outros"
BERTOLD BRECHT (do poema "A infanticida Maria Farrar)

VISTOS ETC.

MARIA MARIA MARIA, qualificada na inicial, REQUEREU autorização judicial para a prática de ABORTAMENTO NECESSÁRIO ou TERAPÊUTICO, com fundamento no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, alegando, em apertada síntese, o seguinte: a interessada está gravida; foi diagnosticada a "anencefalia fetal e polidramnio": a extremidade cefálica do feto demonstra ausência dos tecidos cerebrais fetais, abertura da coluna vertebral cervical, e redução do volume da órbita fetal direita; a gravidez pode ser complicada por aumento do volume líquido amniótico, hipertensão arterial materna e alterações de mecânica do trabalho de parto; a gestação de fetos malformados, particularmente mais severas, resulta em prognóstico ominoso para a saúde materna, caracterizando GRAVIDEZ de ALTO RISCO; várias complicações podem surgir durante o parto; a interessada está deprimida e apresenta perturbação psicológica; a sobrevida extra uterina do feto é inviável (fls. 02 a 16).

O Ministério Público opinou favoravelmente ao pedido (fls. 18/19).

Eis o relatório.

1.- INTRODUÇÃO. O ABORTAMENTO POR INDICAÇÃO EUGÊNICA.

NELSON HUNGRIA, comentando as hipóteses legais de excludentes de antijuridicidade específicas para o abortamento, assevera que "andou acertadamente o nosso legislador em repelir a legitimidade do aborto eugenésico, que não passa de uma das muitas trouvailles dessa pretensiosa charlatanice que dá pelo nome de “eugenia”. Consiste esta num amontoado de hipóteses e conjeturas, sem nenhuma sólida base científica. Nenhuma prova irrefutável pode ela fornecer no sentido da previsão de que um feto será, fatalmente, um produto degenerado. Eis a lição de Von Franqué: "Não há doença alguma da mãe ou do pai, em virtude da qual a ciência, de modo geral ou nalgum caso particular, possa, com segurança, prever o nascimento de um produto degenerado, que mereça, sem maior indagação, ser sacrificado ... Os enfermos mentais, posto que capazes de reprodução, podem ter descendentes interinamente sãos e de alta espiritualidade ... A grande maioria dos tuberculosos gera filhos perfeitamente sãos e até mesmo robustos" (...)" (Comentários ao Código Penal, v. I, p. 314, FORENSE, RJ, 1.958).

Contudo, tal posicionamento do ilustre penalista não há de prevalecer e é descabido para o caso em exame.

Em primeiro lugar, devo lembrar que, por óbvias e conhecidas razões históricas, quando NELSON HUNGRIA fez tais afirmações, a palavra "eugenia" carregava, em sua singela expressão descritiva, uma pesada carga de rejeição emocional e social, a qual, obviamente, refletia-se no pensamento dos penalistas da época.

Aliás, ALBERTO SILVA FRANCO, que fez precisa análise a respeito da rejeição emocional à expressão "eugenia", afirma o seguinte: "Não se desconhece que inúmeras palavras, além de seu sentido puramente descritivo, têm o condão de provocar nas pessoas, que as ouvem, ou que as lêem, reações emocionais. Fala-se, então, do "significado emotivo" dessas palavras que se adiciona ao seu "significado descritivo". "Eugenia" é um dos vocábulos capazes de gerar, além de restrições a respeito de seu significado descritivo, um nível extremamente alto de rejeição emocional e tal reação está vinculada ao uso que dele foi feito, na Alemanha, durante o período nacional-socialista. A "Lei para a purificação da raça" (erbgesundheitgesetz) introduziu, por motivos da chamada "saúde do povo" (volksgesundheit) a justificação dos casos de indicação eugênica (esterilização, interrupção da gravidez, extirpação de glândulas sexuais). "Eugenia" tornou-se palavra tabu" (Revista de julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo, Aborto por indicação eugênica, v. 132, p. 9).

Assim, a expressão "indicação eugênica" deve ser analisada, cientificamente, especialmente no caso em exame, sem tal carga da indesejável e prejudicial rejeição emocional.

A indicação eugênica, in casu, e hodiernamente, não está vinculada ao conceito abrangente que lhe emprestou o nacional-socialismo alemão: não há mais falar em abortamento eugênico para se obter uma raça de "super-homens" nem para a conservação da "pureza" de uma determinada raça.

A hipótese em exame é singela, direta e objetiva: o feto não tem cérebro e a sua vida extra uterina é inviável; e a gestante está vivenciando uma gravidez de alto risco.

Mas não é só.

Não se pode olvidar, também, de que o referido posicionamento do insigne penalista nomeado exsurgiu como crítica ao projeto do Código Penal Dinamarquês, que previa a possibilidade da prática do abortamento eugenésico "quando existe perigo certo de que o filho, em razão de predisposição hereditária, padecerá de enfermidade mental, imbecilidade ou outra grave perturbação psíquica, epilepsia ou perigosa e incurável enfermidade corporal" (op. cit. p. 313).

Entanto, in casu, a situação é totalmente diferente.

É que não há falar em mera "predisposição hereditária" nem se trata de "enfermidade mental, imbecilidade ou outra grave perturbação psíquica, epilepsia ou perigosa e incurável enfermidade corporal".

Na realidade, a interessada foi submetida a um exame ultrassonográfico pelo Serviço Médico Fetal do Serviço de Medicina Fetal da UNICAMP e, com base em tal exame científico, ficou constatado o seguinte: "ANENCEFALIA FETAL E POLIDRAMNIO" (fls. 15).

Eis a conclusão científica: "A extremidade cefálica do feto demonstra ausência dos tecidos cerebrais fetais, abertura da coluna vertebral cervical, e redução do volume da órbita fetal direita. O DIAGNOSTICO ECOGRÁFICO É DE ANENCEFALIA FETAL E POLIDRAMNIO" (fls. 15).

Portanto, não há falar em diagnóstico embasado em mera predisposição hereditária nem há falar em um "amontoado de hipóteses e conjeturas, sem nenhuma sólida base científica", como afirma NELSON HUNGRIA.

Há, na realidade, na espécie, um diagnóstico, exarado com exação científica, embasado em exame direto, moderno e preciso, que revelou, com a necessária e exigida certeza científica, a ANENCEFALIA FETAL.

Induvidosamente, há neste caso a reclamada "sólida base científica" para o diagnóstico obtido.

E ainda não é só.

Não se pode olvidar, também, de que NELSON HUNGRIA fez a referida crítica há mais de TRINTA E CINCO ANOS.

Inegavelmente, houve um brutal desenvolvimento científico daquela época a esta parte.

Atualmente, como é cediço, existem exames, que são realizados com eficácia absoluta e com precisão tecnológica, hábeis para a afirmação de diagnósticos exatos, com sólida base científica, os quais não existiam no primeiro quartel do século ou mesmo há alguns anos.

Os diagnósticos de "malformação fetal" e, em especial, aqueles que revelam a "anencefalia", não são tirados hodiernamente com embasamento em conjecturas nem em hipóteses empíricas nem em mera "predisposição hereditária".

Como aconteceu no caso em exame, o atual estágio do desenvolvimento científico e tecnológico da medicina permite um diagnóstico conclusivo, exato e preciso.

E, à evidência, o Direito Penal não pode ficar alheio ao desenvolvimento da ciência nem às conseqüentes evoluções históricas do pensamento, da cultura e da ética em um sociedade em constante transformação.

Como lembra FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO o Direito Penal é um fenômeno histórico e deve estar submetido, sempre e sempre, a um interminável processo de ajustamento às exigências de uma sociedade em constante mutação.

Aliás, afirma JUAN DEL ROSAL que "o penalista vive o centro da significação histórica do acontecimento da vida".

Assim, em situações como a que neste caso é trazida a juízo, as quais reclamam aplicação das normas penais, não se pode olvidar do atual avanço científico e tecnológico da medicina, o qual, inexoravelmente, acarreta profundas transformações éticas e culturais na sociedade.

2.- A ANENCEFALIA FETAL E A SITUAÇÃO DA GESTANTE.

O caso, comprovadamente, é de anacrania ou de anencefalia fetal e "não há na literatura médica relato de sobrevida neonatal (pós-parto) destes produtos gestacionais, exceto por horas ou excepcionalmente dias, pela ausência dos tecidos cerebrais (Referências: "Obstetrícia Rezende", Jorge de Rezende, Ed. Guanabara Koogan, 1.987, Capítulo 42, páginas 748-40: 2.- "Willianms Obstetrics", 19th Edition, Cunningham, MacDonald, Gat, Leveno & Gilstrap, 1.993, Ed. Appleton & Lange, Capítulo 40, páginas 928-9)" (fls. 14).

As condições decorrentes de tal malformação acarretam complicações sérias para a gestante.

Com efeito, segundo declaração do Dr. JOÃO LUIZ PINTO DA SILVA, Diretor da Divisão de Obstetrícia da UNICAMP, "para Edwards & Filly, (1.983) o polihidrâmnio, patologia gestacional de mau prognóstico, complica 50% dos casos de anencefalia (213 das malformações). De outro lado é bem conhecido que as condições associadas a hiperplacentose e freqüentemente polihidrâmnio predispõem a maior incidência de pré-eclâmpsia, patologia de prognóstico grave para o interesse materno. Segundo estes estudos, em 70 casos de polihidrâmnio, 17.7% evoluíram para pré-eclâmpsia severa e 45% para forma moderada da doença. Segundo Willians (1.982), os prejuízos impostos ao organismo materno são significativos: deslocamento prematuro da placenta, hemorragias pós-parto, disfunções uterinas. Há relatos de choque pós-rotura de bolsa amniótica e outros fenômenos associados à compressão causada pelo abdomem crescido para os aparelhos respiratório e cardio-circulatório da mãe. Rezende, em seu Tratado de Obstetrícia (1.982), afirmava que o reconhecimento de malformação, quase sempre a anencefalia, torna inútil o procedimento da prenhez e autoriza a interrupção. A indução do parto é, nestas condições, a conduta habitual e recomendável" (fls. 13 e 15/16).

Mas não é só.

Cabe lembrar, também, a respeito do caso, a declaração do Dr. BUSSAMARA NEME, Professor Titular de Clínica Obstetrícia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professor Emérito da Faculdade de Medicina de São Paulo e Professor Emérito da Faculdade de Ciências Médicas (UNICAMP), que assevera o seguinte: "1. Conceptos anencefalos, seguramente não têm condições de sobrevida extra-uterina, sucumbindo logo após sua expulsão. 2. Ao tomarem conhecimento da referida situação, com freqüência, as gestantes apresentam evidentes perturbações da espera psicogena, seguidas de atitudes inconseqüentes, como desorganização familiar e, por vezes, com risco de vida (suicídios). 3. De outro lado, a evolução do ciclo grávido-puerperal de pacientes com fetos anencefalos, com freqüência se associa com complicações da gestação (vômitos graves e incoercíveis, prenhez prolongada, polidrâmnio) e, também do parto (distócia do despreendimento do ombro fetal com risco de rotura uterina e choque hemorrágico)".

E, sob o aspecto psiquiátrico, há de ser lembrado que, segundo Prof. Dr. MAURÍCIO KNOBEL, médico psiquiatra, professor "Emérito" da Universidade Estadual Paulista, a interessada, gestante, in casu, está atingida emocionalmente pela situação vivenciada, e está "deprimida, preocupada e ciente de que para ela a melhor solução é não ter esta criança, poupando, assim, ela e sua pequena família de passar pelo constrangimento de ter essa criança e logo após submeter a todos aos rituais de enterro de um filho e um pequeno irmão" e "caso não se interromper a gravidez existe evidente risco de problemas psíquicos posteriores que podem afetar gravemente a vida futura desta mulher" (fls. 18 e 19).

Como se vê, a situação é grave e urge uma solução: a vida extra-uterina do feto é inviável, em face da anacrania; e a interessada está vivenciando gestação de alto risco.

Urge, sim, seja interrompido o processo de gestação, pois, comprovadamente, não há outra atitude a ser tomada diante de tão grave situação.

Não se pode exigir da interessada que leve a termo tal gravidez.

3.- DA EXCLUDENTE DE CULPABILIDADE EM FACE INEXISTÊNCIA DE REPROVABILIDADE OU CENSURABILIDADE DA CONDUTA. DA INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA.

ANIBAL BRUNO, ensinando que a culpabilidade não tem por base puramente o vínculo psíquico que prende o agente ao seu ato, mas que resulta, sim, de um conjunto de condições que justificam a reprovabilidade, assevera o seguinte: "a culpabilidade é a reprovabilidade que pesa sobre o autor de um fato punível, praticado em condições de imputabilidade, dolosa ou culposamente, tendo ou podendo ter o agente a consciência de que viola um dever e em circunstâncias que não excluem a exigência de que se abstenha dessa violação" (Direito Penal, Tomo II, p. 31).

Para ANIBAL BRUNO, portanto, a culpabilidade depende, também, da reprovabilidade que recai sobre o agente e, em conseqüência, "exclui-se a reprovação e, portanto, a culpabilidade, se ocorrem circunstâncias em face das quais não se pode exigir de quem atua um comportamento ajustado ao dever. A não exigibilidade de conduta diversa, em princípio, exclui do agente o juízo de culpável" (op. cit. p. 30).

Como se vê, na estrutura da culpabilidade está a exigibilidade de um comportamento adequado ao dever, isto é, que a conduta típica seja praticada em situação em que seja lícito exigir do agente comportamento diferente.

MAGALHÃES NORONHA, por sua vez, conciliando as teorias psicológica e normativa, que disputam o conceito da culpabilidade, e ensinando que, na realidade, a culpabilidade é psicológica-normativa e exige a caracterização do dolo ou da culpa, mas, também, a reprovabilidade da conduta do agente, assevera o seguinte: "Se a culpabilidade é juízo de reprovação social, é censurabilidade: compõe-se de outro elemento: a exigibilidade de outra conduta", pois "culpável é a pessoa que praticou o fato, quando outra conduta lhe era exigida, e, ao revés, exclui-se a culpa pela inexigibilidade de comportamento diverso do que o indivíduo teve" (Direito Penal, v. 1, p. 100)

A inexigibilidade de conduta diversa, portanto, exclui a culpabilidade.

Ensina DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS, por sua vez, que "só há culpabilidade quando, devendo e podendo o sujeito agir de maneira conforme o ordenamento jurídico, realiza conduta diferente, que constitui o delito. Então, faz-se objeto do juízo de culpabilidade. Ao contrário, quando não lhe era exigível comportamento diverso, não incide o juízo de reprovação, excluindo-se a culpabilidade" (Direito penal, v. 1, p. 417, SARAIVA, 1.985).

Como se vê, não basta o cometimento de um fato típico e antijurídico para que surja a reprovação social, e penal, da conduta.

É imprescindível que o agente, nas circunstâncias do fato, tenha a possibilidade de realizar outra conduta, de acordo com o ordenamento jurídico.

Assim, a conduta somente será reprovável "quando, podendo o sujeito realizar comportamento diverso, de acordo com a ordem jurídica, realiza outro, proibido" (Damásio Evangelista de Jesus, op. cit. p. 417).

Aliás, o Egrégio Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo já decidiu que "não há falar em crime, quando a conduta do agente, em desarmonia com o direito, embora ilícita, não é reprovável, pois em face da situação anormal em que agiu, outro comportamento se lhe não podia exigir" (JULGADOS, ed. Lex, v. 13, p. 39).

A inexigibilidade de conduta diversa, portanto, há de ser aceita como causa excludente da culpabilidade.

Lembro, a respeito, inclusive, precioso ensinamento de ANIBAL BRUNO que, apesar de exigir um "seguro critério seletivo" para o reconhecimento de tal excludente de culpabilidade, assevera o seguinte: "Cabe admitir a não exigibilidade de conduta diversa com caráter de causa geral de exclusão da culpabilidade em qualquer das suas formas, dolo ou culpa. Tal princípio está realmente implícito no Código e pode aplicar-se, por analogia, a casos semelhantes aos expressamente previstos no sistema. Na realidade, são casos de verdadeira lacuna na lei, que a analogia vem cobrir pela aplicação de um princípio latente no sistema legal. É a analogia in bonan partem, que reconhecemos como tendo aplicação no Direito Penal" (Direito penal, Parte Geral, v. II, p. 102).

Decididamente, as circunstâncias do fato, as quais FRANK, em sua obra Estrutura do conceito de culpabilidade, chamava de "concomitantes", não podem ser desprezadas na análise da conduta e, especialmente, de sua reprovabilidade.

Como lembra HEITOR COSTA JÚNIOR, "não se duvida hoje que a autodeterminação humana está limitada pelas circunstâncias. Na célebre lição de Ortega y Gasset "eu sou eu e as minhas circunstâncias" (O direito penal e o novo código penal brasileiro, A reforma da parte geral do código penal brasileiro, p. 51, Porto Alegre, 1.985).

Assim, as circunstâncias especiais e complexas que envolvem o fato em exame não podem ser olvidadas.

Aliás, não se olvide de que a nova parte geral do Código Penal direciona-se para a punibilidade da conduta humana e não uma ficção, como adverte JOSÉ HENRIQUE PIERANGELI: "Ao estabelecer de maneira nítida a culpabilidade como critério individualizador da pena, estabelece que uma conduta só é punível quando o agente pode, pelo menos, prever a possibilidade de ofensa a um bem juridicamente tutelado, e, ainda, quando for possível fazer-se recair um juízo de reprovabilidade em face de suas características pessoais e das circunstâncias em que o agente atuou" (op. cit., Das penas e sua execução no novo código penal, p. 68).

E, in casu, as circunstâncias do fato desvelam a inexistência de reprovabilidade para o abortamento que se pretende realizar, pois, à evidência, outra conduta não se pode exigir da interessada.

Urge a prática do abortamento, na espécie, em face das circunstâncias peculiares e excepcionais que caracterizam a gravidez da interessada.

Não se pode exigir, social ou juridicamente, que a interessada leve a termo a sua gravidez.

Lembre-se, sempre e sempre, que a vida extra-uterina do feto é absolutamente inviável e que a interessada está sendo submetida a uma GRAVIDEZ DE ALTO RISCO, com sérios, comprometedores e óbvios prejuízos à sua saúde física, mental e emocional.

No âmago da culpabilidade, inegavelmente, tanto para a doutrina tradicional, mecanicista, como para a doutrina finalista, está um conteúdo normativo, valorativo, axiológico, que é a reprovação, em concreto, de um conduta típica.

Como lembra WALTER MARCILIGIL COELHO, "a culpabilidade é sinônimo de reprovabilidade. O comportamento é culpável porque censurável. Assim, a essência da culpa é a reprovação, a afirmação da culpabilidade não pode prescindir de um juízo valorativo de conduta humana, e esse elemento normativo é fundamental à configuração da culpa penal, deixando em segundo plano o simples nexo psicológico da antiga concepção clássica. E em que termos se fará esta avaliação ? Quando se poderá afirmar que a ação criminosa é culpável, isto é, reprovável ? Quando as circunstâncias do fato não impediam o agente de motivar-se de acordo com o dever, segundo Goldschmidt; ou, em outras palavras, indagando-se sempre da exigibilidade ou não exigibilidade de outra conduta, nas circunstâncias em que atuou o agente do crime, segundo Feudenthal" (op. cit, Erro de tipo e erro de proibição no novo código penal, p. 88).

E, à evidência, não se pode falar em reprovabilidade social nem em censurabilidade da conduta de quem interrompe uma gravidez nas circunstâncias em comento, ou seja, em face da inviabilidade de um feto anencéfalo e da exposição da gestante a uma gravidez de alto risco.

Como ensina DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS, a culpabilidade não está na cabeça do agente, mas, sim, "na cabeça do juiz", pois reflete, na realidade, juízo de reprovabilidade social da conduta.

E, segundo NELSON HUNGRIA, "o juiz deve ter alguma coisa de pelicano. A vida é variedade infinita e nunca lhe assentam com irrepreensível justeza as "roupas feitas" da lei e os figurinos da doutrina. Se o juiz não dá de si, para dizer o direito em face da diversidade de cada caso, a sua justiça será a do leito de Procusto: ao invés de medir-se com os fatos, estes é que terão de medir-se com ela" (op. cit. p. 68).

Decididamente, não há falar em reprovabilidade nem em censurabilidade de abortamento praticado em face das condições expostas na inicial, pois é inadmissível exigir da interessada que suporte a gravidez até o seu termo, com todas as conseqüências e riscos que até mesmo uma gravides normal acarreta, para que, depois do nascimento, ocorra inevitavelmente a ocisão fetal.

É verdade que NELSON HUNGRIA, prosélito do tecnicismo-jurídico, sustentou, com veemência, a impossibilidade do reconhecimento da licitude do abortamento por indicação eugênica, afirmando ser inadmissível o reconhecimento de causas extralegais de exclusão de ilicitude ou de culpabilidade.

Entanto, com a sabedoria que lhe era peculiar, compreendendo, com sensibilidade e inteligência, que a sociedade altera historicamente o seu modo de ser e de encarar os acontecimentos, especialmente impulsionada por transformações científicas e tecnológicas, recomendou também ao juiz que, ao aplicar as leis, não se olvide dessa constante mutação da vida.

Aliás, em face da importância do tema desta decisão, vale lembrar o que NELSON HUNGRIA asseverou em uma conferência que proferiu, em 1.942, no Teatro Municipal de São Paulo, sob o título "Introdução à ciência penal", fazendo uma verdadeira crítica ao tecnicismo jurídico:

"A ciência penal não se esvai numa pura esquematização rígida de princípios, pois que é uma ciência modelada sobre a vida e para a vida. Não se pode isolar-se da cambiante e multifária realidade social e humana. O tecnicismo jurídico, que reserva o Direito Penal para os juristas, não quer dizer que estes devam colocar entre eles e o mar picado da vida, como parede cega, a inteiriça contextura da lei. Como diz MAGGIORE, o Direito, para garantir-se à própria estabilidade e certeza, constrói os seus dogmas, que são retábulos em que se enquadra a experiência jurídica no seu desdobramento histórico; mas o predomínio desses dogmas não deve degenerar em tirania e protrair-se até o ponto de alheiar-se ao "elan" da vida, ao invés de limitar-se a construir os anteparos e sulcos em que ele deve acomodar-se à ordem jurídica. A dogmática, quando entregue à exasperação de abstrair, esquematizar e classificar, arrisca-se a romper os pontos de contato com a vida ou a pôr-se em dissídio com esta. É certo, e chega a ser lapalissiano afirmá-lo, como ainda observa o professor da Universidade de Palermo, que a ciência do Direito é construída juridicamente, isto é, com o método originário e sempre mais aperfeiçoado da jurisprudência romana; mas não é jurista digno desse nome aquele que desconhece a advertência de VON HERING: o irrestrito culto da lógica, que cuida de transformar a jurisprudência numa espécie de matemática do direito, é um erro, e assenta no desconhecimento da natureza do Direito. A vida não é para os teoremas, mas estes para aquela. Não o que a lógica exige, mas o que a vida, o convívio dos homens e o sentimento jurídico reclamam é que deve acontecer, seja ou não possível dentro da lógica" (Novas questões jurídico-penais, RJ, Ed. Nacional de Direito Ltda, 1.945, p. 5).

E também há de ser lembrado o que afirmou GUIMARÃES ROSA, em uma entrevista, pouco antes de morrer: "A lógica é a força com a qual o homem algum dia haverá de se matar. Apenas superando a lógica é que se pode pensar com justiça. Pense nisto: o amor é sempre ilógico; mas cada crime é cometido segundo as leis da lógica".

Com efeito, o direito não pode isolar-se da "cambiante e multifária realidade social e humana".

Como ensina o mestre argentino LUIZ GIMENEZ DE ASÚA, "o juiz não pode mostrar-se alheio às transformações sociais, jurídicas e científicas. Por isso a vontade da lei não deve ser investigada somente em relação à época em que nasceu o preceito, mas sim tendo em conta o momento de sua aplicação. O magistrado adapta o texto da lei às evoluções sofridas pela vida, da qual, em última consideração, o Direito é forma. Daí o poder ele ajustá-la a situações que não foram imaginadas na hora remota de seu nascimento. Assim têm podido viver velhos textos como o Código Penal francês, que tem mais de século e meio de existência" (El criminalista, t. II/103).

Aliás, cabe lembrar, neste momento, recente posicionamento esposado pelo Meritíssimo Juiz Corregedor da Polícia Judiciária da Capital Paulista, GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO, que, em recente estudo, afirmou o seguinte:

" (...) permite-se o aborto para evitar o perecimento da mãe, independentemente da situação da saúde e da condições do feto. O Código Penal é de 1.940. Passaram-se 51 anos desde sua entrada em vigor. A ciência médica evoluiu. Situações antes imprevisíveis, hoje podem ser antevistas. E refletem necessariamente a aplicação do direito. Assim é a hipótese do aborto em que haja constatação da impossibilidade de vida extra-uterina por malformação física, como ocorre no caso de acrania (ausência de crânio). A preocupação do legislador pátrio ao vedar o aborto de forma generalizada é a de assegurar a todo custo o direito à vida. E sua preocupação é legítima. Mas existem casos, definidos por ele próprio, em que o rigor da lei deve ser afastado, a fim de preservar bem entendido maior. Admitiu a lei, há meio século, que o perigo de vida para a mulher autorizava a interrupção da gravidez, independentemente das condições do feto. Ora, se esse posicionamento, de inegável alcance, sempre foi aceito na sociedade em geral, porque razão não se admitir o aborto no caso em que, por anomalia séria, devidamente evidenciada e constatada por profissionais habilitados, mediante a utilização das técnicas mais modernas da medicina, haja certeza da impossibilidade de vida fora do útero materno. Além disso, insistir no prosseguimento de uma gravidez sem possibilidades de êxito, como no caso da acrania, quando há vontade contrária da mulher, representa capricho irresponsável, que, a par do sofrimento natural, poderá ensejar risco potencial à saúde e grave comprometimento psicológico. Não se pretende defender a interrupção da gravidez decorrente da só vontade da mãe, independentemente das condições do feto. O que se procura evidenciar é que a lei penal, em seu artigo 128, inciso I, interpretado de forma mais abrangente e atual, respeitado sempre o objetivo primeiro do legislador, permite o aborto necessário no caso em que não haja condições de vida extra-uterina do feto, em razão de anomalias sérias, devidamente diagnosticadas. Não se pretende, insisto, que quaisquer anomalias ou deformidades dêem ensejo à interrupção da gravidez, liberalidade perigosa. Em suma: se o legislador ordinário admitiu o aborto necessário, independentemente das condições de saúde do feto, tenho que, o espírito de seu posicionamento, admitiu igualmente a interrupção da gravidez no caso de impossibilidade de vida do feto após o nascimento, cujo diagnóstico prévio hoje é possível. Por outro lado, se permitiu, há mais de cinqüenta anos, com reconhecida e necessária coragem, o aborto sentimental, independentemente dos riscos à mãe e das condições do feto, admitiu como possível, havendo risco à saúde física ou psíquica da mulher (e não só à vida), bens individuais que necessitam igual tutela, o aborto de feto sem possibilidade de vida autônoma".

Como se vê, há quem sustente, inclusive, que o abortamento por indicação eugênica estaria coberto pelo manto das excludentes supralegais de antijuridicidade.

ALBERTO SILVA FRANCO critica aqueles que entendem ser a hipótese em exame caracterizadora de excludente de culpabilidade, afirmando o seguinte: tal "posição jurídica não deve ter acolhida porque a exculpação tem um caráter pessoal e somente poderia redundar em proveito da grávida, que é quem se encontra na situação excepcional mas não a do médico" (Aborto por indicação eugênica, in Revista de Julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo, v. 132, p. 9).

Tenho para mim, contudo, que não tem razão o ilustre penalista.

É que, se há reconhecimento da inexigibilidade de outra conduta em favor da gestante, se não é exigível que a gestante leve a termo a gravidez, torna-se absolutamente impossível, ilógica e absurda uma exigência no sentido de que o abortamento seja praticado por ela própria, sem a intervenção médica.

É evidente, portanto, que, em casos que tais, em face do reconhecimento da ausência de culpabilidade, em face da inexigibilidade do prosseguimento da gravidez, exsurge para o médico o dever jurídico e ético de provocar o abortamento, evitando, assim, que a gestante tenha que praticá-lo sozinha, enfrentando os evidentes e inegáveis riscos decorrentes de tal conduta.

Há inexigibilidade de conduta diversa no que diz respeito ao comportamento da gestante e, obviamente, também no que concerne à intervenção do médico e de todos os profissionais que participarem do abortamento.

Não há falar em censurabilidade da conduta da gestante, que não pode ser obrigada a suportar a gravidez nas condições em referência.

E também não há falar em reprovabilidade da conduta dos médicos e demais profissionais que praticarem o abortamento em tais circunstâncias, pois não se pode exigir que eles omitam auxílio e socorro à gestante.

Aliás, de acordo com o disposto no artigo 5º da Constituição Federal, NINGUÉM SERÁ SUBMETIDO A TRATAMENTO DESUMANO.

E, obviamente, exigir que a interessada leve a termo a sua gravidez, nas condições acima mencionadas, constitui, certamente, uma forma inquestionável de submetê-la a um inaceitável "tratamento desumano", em flagrante violação aos direitos humanos e a dogma constitucional.

Definitivamente, a interrupção da gravidez da interessada é de rigor e está a exigir urgência.

E é preciso que se afirme que o caso em exame não se subsume à hipótese do artigo 128, I, do Código Penal.

É que a prática do abortamento, in casu, bem como nos demais casos de malformação fetal, não é o único meio de salvar a vida da gestante.

Posto que a interessada esteja vivenciando uma GRAVIDEZ DE ALTO RISCO, a verdade é que a tecnologia médica hodierna é bastante para garantir segurança à gestante em casos que tais até o termo final da gestação.

Não se trata, portanto, de abortamento indicado como única forma de salvar a vida da interessada.

Contudo, devo insistir que não se pode exigir que a interessada suporte o flagelo de uma gravidez com o diagnóstico ominoso, nefasto, funesto e mórbido da ANENCEFALIA, sem que exista nenhuma possibilidade de sobrevida fetal.

O abortamento, in casu, ainda que não seja a única forma de salvar a vida da interessada, é incensurável, não é reprovável, nem jurídica nem socialmente.

Definitivamente, a interrupção da gravidez da interessada é de rigor e está a exigir urgência.

4.- DA APLICAÇÃO DOS TRATADOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS.

De acordo com o parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal, os Tratados internacionais de Direitos Humanos, ratificados pelo Brasil, constituem dogmas constitucionais metidos a rol entre as garantias fundamentais, com natureza de cláusula pétrea, nos termos do artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV, da Constituição Federal.
Com efeito, como assevera Flávia Piovesan, que inclusive invoca ensinamentos de Antônio Augusto Cançado Trindade e de José Joaquim Gomes Canotilho, “Os Direitos garantidos nos tratados de Direitos Humanos de que o Brasil é parte, integram, portanto, o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados. Esta conclusão advêm ainda da interpretação sistemática e teleológica do texto, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, com parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional” (Direitos humanos e o direito constitucional internacional, pg. 83, Ed. Max Limonad, SP, 1996).

Ora, o Brasil ratificou a convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher – “Convenção de Belém do Pará” (1994), em 27 de novembro de 1995, a convenção Interamericana para prevenir e punir torturas (1985) em 20 de julho de 1989, a convenção Americana de Direitos Humanos – “Pacto de San José da Costa Rica” (1969), em 25 de setembro de 1992, a convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (1984), em, 28 de setembro de 1989, a convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (1979), em 1º de fevereiro de 1984, e Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), em 24 de janeiro de 1992.

E tais tratados e convenções internacionais, que têm natureza constitucional no nosso ordenamento jurídico, garantem às mulheres o direito a igualdade e a não discriminação, o direito a auto-determinação, o direito à segurança pessoal, o direito de não ser objeto de ingerências arbitrárias em sua vida pessoal e familiar, o direito de respeito à sua liberdade de pensamento e consciência, o direito de respeito à vida, o direito de que se respeite a sua integridade física, psíquica e moral, o direito ao respeito à sua dignidade, o direito ao acesso a procedimentos jurídicos justos e eficazes quando submetida a violência, o direito de não ser submetida a nenhum tratamento desumano ou cruel, no âmbito físico ou mental, e o direito ao tratamento de sua saúde física e mental.

Mas não é só.

Consta expressamente do parágrafo 8.25 do Programa de Ação do Cairo (Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, Cairo, 1994), do parágrafo 106 k da Plataforma Mundial de Ação de Pequim (4ª Conferência Mundial sobre a Mulher, Pequim, 1995), do parágrafo 63, do Capítulo IV.C, do Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e desenvolvimento (Assembléia geral Extraordinária da ONU, Cairo + 5, Nova York, 1999) e do parágrafo 107 i do Documento de Resultados de Pequim + 5 (Assembléia Geral Extraordinária da ONU, Pequim + 5 – Mulher 2000: Igualdade de Gênero, Desenvolvimento e Paz para o século 21, Nova York, 2000) que às mulheres que optam pelo abortamento não criminoso (1) devem ser garantidas todas as condições para a sua prática de forma segura, e (2) deve ser proporcionado a essas mulheres um tratamento humano e a devida orientação.

Aliás, segundo o parágrafo 63, III, do Capítulo IV do último documento acima invocado, nos casos de opção pelo abortamento não criminoso, “os sistemas de saúde devem capacitar e equipar as pessoas que prestam serviços de saúde e tomar outras medidas para assegurar que o aborto se realize em condições adequadas e seja acessível. Medidas adicionais devem ser tomadas para salvaguardar a saúde da mulher” (p. 70).

Como se vê, é induvidoso o reconhecimento internacional do direito da mulher à prática do abortamento não criminoso com todas as garantias cabíveis para a sua saúde física e mental, o que desvela de modo insofismável o cabimento da autorização do abortamento in casu e para que o ato seja realizado com segurança.

5.- DO CABIMENTO DO PROCEDIMENTO. DA APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO PROCESSO CIVIL. DA JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA.

“Tendo em vista o dever do Estado de assegurar o bem comum, promovendo a saúde e atendendo aos fins sociais da lei, admissível a interrupção da gravidez, comprovando-se que o feto é portador de má-formação congênita, caracterizada por anencefalia – ou ausência de cérebro – afecção irreversível que impossibilita totalmente a sobrevivência extra-uterina, hipótese em que, ao direito da gestante, não cabe opor interpretação restritiva da legislação penal” (RT 732/391).

Como ensina JOSÉ FREDERICO MARQUES, "as regras ou normas do processo civil aplicam-se subsidiariamente ao processo penal" (Tratado de direito processual penal, v. 1, p. 66, SARAIVA, 1.980).

O artigo 3º do Código de Processo Penal admite suplementos dos princípios gerais de direito.

E "é claro que dentre esses princípios, devem ocupar o primeiro lugar os de Direito Processual, que, por ser unitário, está formado por normas e regras contidas em ambos os seus ramos; e, como o processo civil é a parte tecnicamente mais aperfeiçoada do Direito Processual, dele é que são extraídos, em sua maioria, esses princípios" (JOSÉ FREDERICO MARQUES, op. cit, p. 67).

Assim, em face da omissão do Código de Processo Penal, devem ser aplicados, neste caso, os princípios e dispositivos relativos à "jurisdição voluntária" do Código de Processo Civil, especialmente aqueles que exsurgem dos seus artigos 1.104 e seguintes, adaptados, obviamente, aos princípios que norteiam o processo penal.

Considerada, modernamente, por vários autores processualistas como verdadeira espécie de jurisdição, em razão da influência da definição de CARNELUTI a respeito da "lide virtual", a JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA tem a função precípua de fiscalizar a indisponibilidade de direitos, o interesse público e a manutenção dos bens especialmente protegidos pela ordem jurídica (VICENTE GRECCO FILHO, Direito processual civil brasileiro, v. 1, p. 40).

Aliás, como afirma FREDERICO MARQUES, a jurisdição voluntária há de ser provocada sempre que houver um "dissenso de opiniões" (Ensaio sobre jurisdição voluntária, p. 221).

Assim, a intervenção do Estado há de ser provocada, até mesmo na órbita penal, através da JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA, de modo preventivo, para prevenir possíveis litígios entre os "interessados" e evitar a geração de futuros conflitos de interesse (ALCIDES DE MENDONÇA LIMA, Dicionário do Código de Processo Civil, p. 353).

E não se olvide de que, no regime democrático, que vive sob a égide da legalidade, é missão do Estado manter o prestígio e a autoridade da lei.

É por isso que ao juiz cabe o dever de "dizer o direito" e, através da jurisdição voluntária, mesmo no âmbito penal, em face de um "dissenso de opiniões", intervir, preventivamente, regulando e autorizando a prática de condutas lícitas ou não culpáveis, em casos excepcionais, dês que provocado, com a finalidade de fiscalizar a indisponibilidade de direitos, o interesse público e a manutenção dos bens especialmente protegidos pela ordem jurídica e pela legislação penal.

Por derradeiro, lembro que NELSON HUNGRIA, comentando a possibilidade legal da realização do abortamento "sentimental", ensina ser admissível e até mesmo conveniente a consulta prévia ao judiciário e assevera que o juiz, ao ser consultado, não deve negar a aprovação do ato, ou seja, deve autorizá-lo (op. cit. v. V, pag. 313, n. 73, in fine).

Aliás, o Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em face de uma situação análoga, reconhecendo a relevância de evidentes interesses jurídicos em jogo, em face dos reflexos não só na vida privada como na vida da sociedade, admitiu o cabimento de AUTORIZAÇÃO JUDICIAL em procedimento de JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIO no processo penal e decidiu que "os órgãos jurisdicionais não se podem eximir de, movimentados, dar a solução à controvérsia sob o fundamento de que apenas à ética médica competiria resolver a questão, quando estão envolvidos na espécie não apenas problemas individuais, mas, inclusive, toda uma estrutura social e princípios sócio-jurídicos da mais alta relevância" (RT 551/205).

Como se vê, é perfeitamente admissível e juridicamente cabível o procedimento judicial para a autorização da prática do abortamento nas hipóteses de caracterização de quaisquer excludentes de antijuridicidade ou culpabilidade.

ISTO POSTO, forte no artigo 5º, inciso III, da Constituição Federal, no artigo 3º do Código de Processo Penal, nos princípios gerais de direito, nos princípios da jurisdição voluntária e nos artigos 1.104 e seguintes do Código de Processo Civil, os quais aplico subsidiariamente, AUTORIZO a INTERRUPÇÃO da gravidez da interessada MARIA MARIA MARIA, mediante intervenção médica.

P.R.I.C.A.

Campinas, 27 de março de 2002.

JOSÉ HENRIQUE RODRIGUES TORRES
JUIZ DE DIREITO

Obs: Esta sentença foi proferida nos autos do processo nº 279/2002 da Vara do Júri da Comarca de Campinas do Estado de São Paulo – Brasil, mas o nome da gestante foi substituído para preservar a sua privacidade.