Rejeição da Denúncia - Princípio da Insignificância

Processo nº 0007153-22.2013.8.19.0003

DECISÃO

Cuida-se de ação penal ajuizada pelo Ministério Público em face de ANISIO VARELA JUNIOR, dando-o como incurso nas penas do art. 155, §4º, c/c 14, II, todos do Código Penal, por ter tentado subtrair, no interior do estabelecimento comercial Casa do Vergalhão Pronto, a quantia de R$ 17,95 (dezessete reais e noventa e cinco centavos), tudo nos termos da denúncia de fls. 02/02-A, cuja narrativa passa a integrar, para todos os fins, o relatório desta decisão.

A exordial merece ser rejeitada.

Com efeito, verifico que o conatus do crime de furto tendo por objeto material tão diminuta quantia não ameaça ou lesiona qualquer bem jurídico – in casu, o patrimônio da sociedade comercial em questão. Ainda que qualificada a figura por rompimento de obstáculo – sendo mesmo questionável a comprovação da materialidade de tal circunstância pela ausência de exame de corpo de delito, plenamente passível de realização na hipótese (art. 158 do CPP) –, é certo que a afetação ao bem jurídico deve servir de norte aos operadores do direito para a aferição da existência, ou não, de figura típica, conforme jurisprudência de nossos tribunais, in verbis:



0054040-15.2009.8.19.0000 (2009.059.08503) - HABEAS CORPUS

DES. GERALDO PRADO - Julgamento: 17/12/2009 - QUINTA CÂMARA CRIMINAL

“EMENTA: HABEAS CORPUS. FURTO QUALIFICADO MEDIANTE ROMPIMENTO DE OBSTÁCULO, NA MODALIDADE TENTADA. PRINCÍPIOS DA INTERVENÇÃO PENAL MÍNIMA E DA LESIVIDADE. INSIGNIFICÂNCIA/PEQUENO VALOR DA COISA QUASE SUBTRAÍDA (R$ 9,00). AUSÊNCIA DE TIPICIDADE MATERIAL, SEM A QUAL NÃO SE VERIFICA A TIPICIDADE CONGLOBANTE E, PORTANTO, A TIPICIDADE PENAL. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. Paciente processado como incurso nas sanções do artigo 155, §4º, inciso I, c/c artigo 14, inciso II, ambos do Código Penal porque teria tentado subtrair uma revista de banca de jornal, quebrando a vitrine da mencionada banca. Mercadoria avaliada em R$ 9,00 (nove reais). Hipótese que autoriza a incidência da aplicação do princípio da insignificância. Do ponto de vista da técnica peculiar ao direito penal, para haver tipicidade penal não basta a mera subsunção do fato à norma. Para punir exige-se que a conduta praticada pelo agente seja, necessariamente, contrária à norma penal e afete, também, o bem jurídico por ela tutelado. Irrelevância da lesão ao bem jurídico protegido que afasta a possibilidade de imposição de pena, ao excluir a tipicidade nos casos de menor importância. Atipicidade material da conduta imputada ao paciente. Precedentes do e. Supremo Tribunal Federal. ORDEM CONCEDIDA”.

Assim, é necessária, para a análise do presente caso penal, a observância dos princípios lançados no aresto acima colacionado – lesividade, intervenção mínima/ultima ratio -, todos consagrados em doutrina e presentes em praticamente toda obra que se pretenda séria, razão pela qual se dispensam maiores divagações quanto ao ponto.

Em relação às alegações lançadas pelo ilustre Parquet na cota que acompanha a denúncia, pelas quais não seria possível “afirmar acerca do que seria efetivamente subtraído caso o agente não fosse impedido pela ação policial, restando, diante da dinâmica do fato, a quantia apreendida, o que não diminui seu lesivo animus furandi”, cumpre tecer algumas considerações. A uma, é de se observar, de início, que na verdade a dinâmica dos fatos, conforme haurida do auto de prisão em flagrante, revela ter sido o réu detido de posse da indigitada quantia já fora do estabelecimento comercial, e não em seu interior, quando em tese poderia continuar subtraindo outros bens. A duas, ainda que assim não fosse, a punição somente pela intenção do agente revela um excessivo e exclusivo apego ao componente típico do desvalor da ação, o que levaria mesmo, no extremo, à validade da incriminação de crimes impossíveis, como nos ensina o mestre Juarez Tavares:

“Uma orientação puramente baseada no desvalor do ato é seguida nas últimas décadas por ZIELINSKI, para quem somente a ação e não o resultado constitui objeto da proibição, sob dois argumentos: primeiramente de que só será possível proibir ações e não resultados, seja quando o autor dirige sua atividade diretamente à realização do injusto – por exemplo, no homicídio, a direção no sentido da morte de uma pessoa – seja quando põe em perigo o bem jurídico, através de atividade descuidada; em segundo lugar, porque o resultado pode resultar sempre do acaso, não sendo certa sua verificação.”[1]

Em nosso ordenamento, no qual se prevê a menor reprovabilidade da figura do crime tentado (art. 14, § único do Código Penal) e a ausência de reprovação na tentativa inidônea (art. 17 do mesmo diploma), parece evidente que não podemos nos vincular somente ao desvalor da ação para a identificação da figura típica, devendo ser perscrutado, também, o desvalor do resultado. E, na hipótese, como tal resultado afigurou-se desprezível, a consideração de que estamos diante de conduta atípica impõe-se.

No que se refere à argumentação pela qual o juízo teria incorrido em equívoco ao relaxar a prisão com a comunicação do flagrante (fls. 24), também devem ser prestados alguns esclarecimentos, inclusive como requerido pelo Ministério Público às fls. 30. De início, cumpre ressaltar que, no Estado Democrático de Direito, a Constituição da República impõe, de maneira taxativa e impositiva, que “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária” (art. 5º, LXV). Veja-se que, do advérbio “imediatamente”, conclui-se que não há espaço, aqui, para manifestações prévias do Ministério Público. Em relação à suposta invasão do mérito, não há qualquer irregularidade num tal proceder: com efeito, ao receber, por exemplo, uma comunicação de flagrante por incesto – conduta que em nosso ordenamento é tão atípica quanto a tentativa de furto de valor insignificante –, estaria o Poder Judiciário de mãos atadas, restando-lhe somente a aposição de uma etiqueta constando os protocolares dizeres “ciente, flagrante regular”, enquanto aguarda a formação da opinio delicti ministerial?

Urge a compreensão de que barrar, em seu nascedouro, persecuções penais que se afigurem patentemente desproporcionais configura exercício de aplicação direta do princípio do devido processo legal, entendido este desde a sua origem substantiva norte-americana[2]. Nessa mesma linha, a implementação de um direito penal mínimo – i. e., incidente somente sobre os mais graves conflitos sociais – se traduz no objetivo de um processo garantista. O professor Aury Lopes Jr., sempre preciso, após relacionar os dois conceitos (direito penal mínimo e garantismo processual), assevera que “o processo penal faz com que o Estado tenha uma soberania mitigada, um poder limitado e reduzido aos limites racionais e no marco dos princípios garantidores. E cabe ao juiz essa importante tarefa e, enquanto garantidor da eficácia do sistema de garantias constitucionais e processuais, deve atentar, principalmente, para os critérios de necessidade e proporcionalidade (obviamente que estamos falando de proporcionalidade como proibição de excesso), buscando sempre o menor sofrimento possível do sujeito passivo submetido à violência do processo”[3].

Nesse contexto de incidência das regras e princípios processuais constitucionais, parece oportuno assinalar ser evidente que este magistrado preza, a toda evidência, pela rígida separação de funções no processo penal – o que caracteriza mesmo a essência do sistema acusatório[4]invocado pelo órgão ministerial para questionar o relaxamento da prisão do ora acusado. Contudo, deve-se ter em mente sempre que, embora a opinio delicti do titular da ação penal (art. 129, I da Constituição) deva sempre ser resguardada à análise do Ministério Público, a verdadeira e última palavra quanto à ocorrência ou não de um delito caberá invariavelmente ao Poder Judiciário, órgão competente para a decretação em definitivo de absolvições ou condenações, haja ou não concordância do Parquet[5]. E, como já ressaltado, no caso de condutas atípicas, a intervenção do Judiciário deve ser imediata.

Por essa razão, e levando também em consideração a necessidade de que, com olhos postos numa escorreita metodologia jurídico-penal, a autoridade judiciária se traduza em instância contramajoritária, cujo papel hodiernamente é associado à contenção do estado de polícia latente no Estado de Direito – aquele exigindo crescente atividade de criminalização secundária ao arrepio de centenárias teorias como a da necessidade de ameaça ou lesão a bens jurídicos [6] –, REJEITO a denúncia que veicula ação penal em face de ANISIO VARELA JUNIOR, com base no art. 395, III do CPP. Proceda o cartório às anotações necessárias. Após o trânsito em julgado, dê-se baixa e se arquivem.

Determino ao cartório, também, a correção das providências determinadas no alvará de soltura de fls. 26, visto que, como bem observado pelo atento Parquet, não houve, por óbvio, imposição de medidas cautelares, tendo em conta o fundamento – atipicidade da conduta – tanto da decisão de relaxamento de fls. 24, quanto da presente. Intime-se o acusado, assim, de que sua liberdade é plena, e não vinculada a quaisquer cautelas.



Angra dos Reis, 14 de agosto de 2013

ANDRÉ VAZ PORTO SILVA

JUIZ DE DIREITO




1 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 200, pg. 240.

2 A respeito do substantive due process, preleciona Luis Roberto Barroso que, por meio dele, “o Judiciário passou a desempenhar determinados controles de mérito sobre o exercício de discricionariedade pelo legislador, tornando-se importante instrumento de defesa dos direitos fundamentais – especialmente da liberdade e da propriedade – em face do poder político” [BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2011, pág. 278].

3 LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, págs. 49-50.

4 Cf., a propósito, BADARÓ, Gustavo Henrique Ivahy. Processo Penal. Rio de Janeiro: Campus Elsevier, 2012, págs. 50-51.

5 À exceção, por evidente, da hipótese em que o titular da ação penal postula a absolvição, justo porque o art. 385 do Código de Processo Penal não foi recepcionado exatamente pelo sistema acusatório em comento, este cabalmente consagrado na Carta Magna pelo mencionado art. 129, I.

6 Vejam-se as palavras de ZAFFARONI, para quem é “o direito penal o ramo do saber jurídico que, mediante a interpretação das leis penais, propõe aos juízes um sistema orientador de decisões que contém e reduz o poder punitivo, para impulsionar o progresso do estado constitucional de direito”, sendo necessária ainda a seguinte observação: “quanto à preferência dos estados policiais por uma metodologia irracional e a refutação de qualquer dogmática, é uma questão de grau” [ZAFFARONI, Eugenio Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro e SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, págs. 40 e 169, respectivamente].