DECISÃO - Indenizatória de Racismo em desfavor do Santander - RS

Poder Judiciário

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul 16ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de Porto Alegre

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PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL Nº 5040771-09.2019.8.21.0001/RS

AUTOR: MARCOS RONI NOGUEIRA DE OLIVEIRA

RÉU: BANCO SANTANDER (BRASIL) S.A.

SENTENÇA

 

MARCOS RONI NOGUEIRA DE OLIVEIRA ajuizou a

presente Ação Indenizatória em desfavor de BANCO SANTANDER (BRASIL) S.A., alegando, em suma, que no dia 11/01/2019 por volta das 12h30 ao tentar passar na porta giratória do requerido a fim de resolver questões sobre sua conta (desbloqueio de cartão) e sacar dinheiro com urgência, foi barrado de forma vexatória pelos seguranças, sendo exigido que tirasse seu sapato, pois o consideravam suspeito de estar portando arma ou outro equipamento de metal condizente com arma branca. Mencionou que tentou adentrar ao estabelecimento bancário como as demais pessoas estavam ingressando, ou seja, deixando celular e chaves no compartimento apropriado, e depois passando normalmente pela porta giratória, todavia, foi barrado e humilhado pelos seguranças na frente dos outros clientes e funcionários, bem como de sua própria esposa, tendo que deixar seus sapatos no lado de fora e ingressado de meias, em profunda humilhação. Alega que a postura do requerido foi preconceituosa e racista pelo  fato  do  requerente  ser  negro  e  um  humilde trabalhador. Discorreu acerca dos danos morais experimentados. Requereu a procedência com a condenação do demandado ao pagamento de indenização pelos danos morais suportados no valor de R$ 20.000,00. Acostou documentos.

O autor acostou vídeo no Evento 10.

 

Citado, o demandado apresentou contestação (Evento 11), insurgindo-se contra as alegações do autor. Disse que a segurança apenas efetuou o atendimento de praxe, em verificar o indício de material que estaria dando ensejo ao travamento da porta, e prontamente acionou prepostos do banco a fim de solucionar o suposto problema enfrentado pelo autor, para que sua entrada fosse então liberada. Mencionou que um dos funcionários do banco se dirigiu a parte exterior da agência para verificar o serviço procurado pela parte, tempo em que ficou conversando com o autor, sem qualquer indício de exaltação de voz, ou ato de indisciplina, e preconceito conforme o alegado. Aduziu que o vídeo juntado pelo demandante demonstra que às 12h58 horário do ocorrido, por livre e espontânea vontade o autor optou em tirar seus calçados e adentrar na agência, momento em que esperou apenas por 01min, tendo então sua entrada liberada pela preposta do banco, com suas botas. Não houve qualquer ato irregular, pois os prepostos do banco verificaram o serviço procurado pelo requerente, e ainda, mesmo com o travamento da porta, liberaram sua entrada sem qualquer empecilho, tentando resolver a questão da  melhor forma. Insurgiu-se contra a inversão do ônus da prova. Rechaçou os alegados danos morais. Pediu a improcedência. Acostou documentos.

Em audiência preliminar (Evento 16), inexitosa a conciliação.

Houve réplica (Evento 19).

Instadas as partes acerca das provas que pretendessem produzir (Evento 21), requereu o autor a prova oral com a oitiva da sua esposa como informante (Evento 25), indeferido (Evento 28), o demandado nada requereu (Evento 26).

Vieram os autos conclusos para sentença.

É o relatório.

DECIDO.

Considerando o disposto no art. 355, I do Código de Processo Civil, entendo que o feito, por se tratar exclusivamente de matéria de direito, encontra-se apto para julgamento.

Pretende o autor, em suma, a condenação demandado ao pagamento de indenização pelos danos morais suportados, em razão dos fatos descritos na inicial que noticiam a prática de preconceito racial.

O demandado refuta a pretensão afirmando que não houve qualquer irregularidade no agir dos seus prepostos,  pois  o  autor por livre e espontânea vontade optou em tirar seus calçados e adentrar na agência.

Restou incontroverso nos autos que o autor foi barrado na porta giratória ao tentar entrar na agência bancária, tendo que ingressar e ser atendido na plataforma do banco apenas de meias, conforme demonstra o vídeo juntado no Evento 10.

Com efeito, a simples abordagem em porta giratória, por si só, não é situação suficiente para caracterizar dano moral, porquanto é um dos elementos integrantes do aparato de segurança dos bancos, que têm obrigação de prestar vigilância e garantir a segurança interna de seus empregados e usuários, conforme determina o artigo 2º da Lei nº 7.102/1983:

'Art. 2º – O sistema de segurança referido no artigo anterior inclui pessoas adequadamente preparadas, assim chamadas vigilantes; alarme capaz de permitir, com segurança, comunicação entre o estabelecimento financeiro e outro da mesma instituição, empresa de vigilância ou órgão policial mais próximo; e, pelo menos, mais um dos seguintes dispositivos:

  • - equipamentos elétricos, eletrônicos e de filmagens que possibilitem a identificação dos assaltantes;
  • - artefatos que retardem a ação dos criminosos, permitindo sua perseguição, identificação ou captura; e
  • - cabina blindada com permanência ininterrupta de vigilante durante o expediente para o público e enquanto houver movimentação de numerário no interior do estabelecimento'.

Inobstante, a atuação dos profissionais responsáveis pela segurança deve ser pautada dentro do que se tem por razoável, no exercício regular do direito, sendo a atuação excessiva passível de acarretar em responsabilidade civil por parte do prestador de serviço.

Da análise das provas constantes nos autos constata-se que o autor, após deixar seus objetos no guarda-volumes, teve impedido seu ingresso na agência bancária. A gravação juntada no Evento 10 - VIDEO1 demonstra que o demandante tentou ingressar no banco e houve o travamento da porta, sendo que somente após conversar com um funcionário do banco e tirar seus calçados, o autor teve sua entrada liberada, permanecendo descalço por mais 2 minutos dentro da agência, até que a preposta do banco autorizou o retorno para buscar os sapatos.

No caso dos autos restou comprovada a desídia e demora dos funcionários do banco para resolverem a situação vexatória que se sucedia, demonstrando que houve nítido excesso e precipitação ao colocarem o autor para entrar e ser atendido na plataforma do banco apenas de meias, isto tudo perante os demais clientes e funcionários da instituição bancária.

Tal fato traduz evidente falha na prestação do serviço pelo réu, considerando que os seus funcionários mostraram-se despreparados para lidar com situação que se apresentou, causando importante e severo constrangimento ao autor.

Mas o vídeo (Evento 10 VIDEO1), não se limita a revelar apenas uma falha nos serviços. As imagens expõem o racismo estrutural que macula a sociedade brasileira. Uma realidade histórica que é inevitável desconsiderar na análise de um processo, como o presente, até porque a questão racial está pautada no pedido. Os fatos aqui analisados ocorreram no seio de uma sociedade que está estruturalmente organizada com base em uma lógica naturalizada de segregação. O jurista e filósofo Sílvio Almeida1 denuncia o racismo estrutural como um fenômeno que se revela na ideologia, na política, na economia e no direito.

A negação do racismo é um exercício ideológico que concebe a supremacia branca como um processo natural. É um status hegemônico explicado nos debates sociológicos sobre a braquitude.  Lia Vainer Schucman, citada por Sílvio Almeida2, conceitua branquitude como:

"... uma posição em que sujeitos que ocupam esta posição foram sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade"

 

 

A ideologia que mantem e naturaliza o racismo, se faz presente tanto na produção científica como na cultural. Encontra uma certa racionalidade nas ciências, considerando que emana conteúdos com autoridade acadêmica de difícil contestação. A "superioridade racial" preconizada pelo nazismo, teve contribuição científica. No Brasil, o sociólogo Oliveira Viana foi uma referência acadêmica que produziu conteúdos raciais de sustentação do racismo estrutural. Em sua obra "Raça e Assimilação" explicita a sua contribuição científica ao racismo brasileiro, quando discorreu, por exemplo, sobre a "aptidão civilizatória de negros e mestiços".  O  território  cientifico  reserva  um espaço de sustentação racional ao racismo e imprime uma complexidade à questão ao expor que o problema não está calcado na ignorância. Não é decorrente da ausência de sistema um educacional, mas pode ter influência da própria educação ministrada.

O racismo como processo político integra a estrutura do racismo brasileiro. O Estado divide os ambientes de poder atendendo uma classificação racial concebida a partir da hegemonia branca na ocupação dos espaços decisórios. Essa estrutura histórica, reproduz o modelo colonial. Aliás, não existiria o racismo estrutural sem a participação do Estado e suas instituições, assim como não existe a possibilidade de enfrentamento do fenômeno sem o Estado. Daí a fundamental implementação de cotas raciais como política afirmativa com o objetivo de estabelecer uma democracia racial nos espaços de poder do Estado.

As leis de cotas raciais nas universidades federais e no serviço público, além das resistências sociais, percebidas nos debates ocorrido no parlamento, também enfrentaram questionamentos nos tribunais brasileiros.  Tribunais  que  são  compostos  por  uma  maioria branca, seguindo a lógica que expõe o racismo estrutural no Brasil, também como fenômeno presente na esfera do direito.

Nas questões de ordem econômica o racismo se expressa pela desigualdade social. Nas relações trabalhistas a cor da pele assume um critério muito visível na destinação das atividades laborais. A presença da raça negra prepondera no trabalho precarizado. Nos ambientes empresariais é rara a atuação de mulheres ou homens negros nos espaços decisórios, mas ocupam a maioria dos cargos nos serviços de limpeza e manutenção.

A abordagem aqui feita em relação ao racismo estrutural, embora aparente, não é uma digressão, mas sim determinante das razões de decidir pelo acolhimento da tese posta na inicial de que o autor foi vítima de racismo. Não somente do racismo individual, deliberado e explícito, mas também de um racismo negado, não reconhecido, embora de singular visibilidade.

O autor foi vítima de um racismo sem repressão especifica no âmbito do direito, já que não há tipificação que ampare sanções legais destinadas as condutas decorrentes da naturalização do preconceito racial. É muito evidente a dificuldade de se estabelecer um discurso moral como sustentáculo de medidas repressivas às condutas racistas cotidianizadas, porém eticamente são insustentáveis. Isso porque são diversas as moralidade, mas a ética é única, como induz o filósofo Humberto Maturana3 ao dizer que ".. ética há uma só, em que consiste que alguém faça caso daquilo que faz sobre o que passa com  o outro. ".

Assim, Maturana sustenta que a ética passa pela noção do outro, no sentido de termos conhecimento do que passa com o outro e a consciência sobre as consequências dos nossos atos sobre o outro, e agirmos ou deixarmos de agir de acordo com esta consciência.

O componente ético está integrado nas ações e omissões da requerida em relação a uma questão que se apresenta cotidianamente nas suas agências, portanto de pleno conhecimento e, por gerar sofrimento às vítimas, assume também um caráter de violação ética.

Esta insustentabilidade ética, não decorre do fato isoladamente considerado ao qual foi submetido o autor, mas de uma conduta consequente de um processo histórico que potencializa a dor no individuo negro ao se deparar com uma situação que reproduz a presença do escravo no interior da casa grande: sempre de pés descalços .

Restou, desta forma, configurando ato ilícito, sendo certo que tal proceder extrapolou os limites do exercício regular de direito, causando ao autor humilhação e ofensa à sua dignidade, ultrapassado aquilo que se tem por mero dissabor do cotidiano, gerando o direito a indenização pelos danos morais sofridos.

O artigo 186 do Código Civil, preceitua que: aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Igualmente, o artigo 927 do diploma legal precitado, estabelece que: aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo, hipóteses estas incidentes sobre os fatos descritos na exordial.

Com relação ao valor a ser arbitrado a título de indenização por dano moral há que se levar em conta o princípio da proporcionalidade, bem como, as condições do ofendido, o teor da ofensa e a capacidade econômica do ofensor.

Acresça-se a isso a reprovabilidade da conduta ilícita praticada.

Nesse sentido Cavalieri Filho4 discorre sobre este tema com rara acuidade jurídica, afirmando que:

'Creio que na fixação do quantum debeatur da indenização, mormente tratando-se de lucro cessante e dano moral, deve o juiz ter em mente o princípio de que o dano não pode ser fonte de lucro. A indenização, não há dúvida, deve ser suficiente  para  reparar  o  dano,  o  mais completamente possível, e nada mais. Qualquer quantia a maior importará enriquecimento sem causa, ensejador de novo dano. Creio, também, que este é outro ponto onde o princípio da lógica do razoável deve ser a bússola norteadora do julgador. Razoável é aquilo que é sensato, comedido, moderado; que guarda uma certa proporcionalidade. A razoabilidade é o critério que permite cotejar meios e fins, causas e consequências, de modo a aferir a lógica da decisão. Para que a decisão seja razoável é necessário que a conclusão nela estabelecida seja adequada aos motivos que a determinaram; que os meios escolhidos sejam compatíveis com os fins visados; que a sanção seja proporcional ao dano. Importa dizer que o juiz, ao valorar o dano moral, deve arbitrar uma quantia que, de acordo com o seu prudente arbítrio, seja compatível com a reprovabilidade da conduta ilícita, a intensidade e duração do sofrimento experimentado pela vítima, a capacidade econômica do causador do dano, as condições sociais do ofendido, e outras circunstâncias mais que se fizerem presentes'.

Dessa forma, levando em consideração as questões fáticas, a extensão do prejuízo, bem como a quantificação da conduta ilícita e capacidade econômica do ofensor, deve ser fixado no valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), quantia que foi limitada ao postulado  na inicial.

O valor arbitrado deve ser corrigido monetariamente pelo IGP-M a partir desta data, com fulcro na Súmula nº 362 do STJ5, e acrescido de juros moratórios contados a partir da citação.

Isso posto, nos termos do art. 487, I do CPC, JULGO PROCEDENTE o pedido formulado por MARCOS RONI NOGUEIRA DE OLIVEIRA nos autos da Ação  Indenizatória ajuizada em desfavor de BANCO SANTANDER (BRASIL) S.A., para fins de condenar o demandado ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), corrigidos monetariamente pelo IGP-M a contar do arbitramento e acrescido de juros de mora de 1% a contar da citação.

Condeno o demandado ao pagamento das custas e honorários advocatícios os quais fixo em 15% sobre o valor atualizado da condenação, nos termos do art. 85, § 2º do CPC.

Havendo recurso(s) – excepcionados embargos de declaração – intime(m)-se, independentemente de conclusão (ato ordinatório – arts. 152, VI, CPC, e 567, XX da Consolidação Normativa Judicial), a(s) contraparte(s) para contrarrazões, remetendo- se em seguida os autos ao Tribunal de Justiça (art. 1010 § 3º CPC).

Com o trânsito, arquivem-se com baixa.

Publique-se.

Registre-se.

Intimem-se.

 


  • Almeida, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural?, BH,
  • Almeida, Silvio Luiz de. Obra citada, pg.
  • Maturana R., "Fundamentos de la Ética - In Revista Universum, Universiad de Talca, nº 16, 2001, pg 467
  • CAVALIERI FILHO, Sérgio, Programa de Responsabilidade Civil, 7ª , rev. e amp. SP: Atlas,2007, p.90.

A correção monetária do valor da inde