PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA DO TRABALHO
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 4ª REGIÃO
Identificação
PROCESSO nº 0021648-05.2020.5.04.0000 (MSCiv)
IMPETRANTE:
AUTORIDADE COATORA: MAGISTRADO(A) DA 1ª VARA DO TRABALHO DE NOVO HAMBURGO
RELATOR: MARCELO JOSE FERLIN D’AMBROSO
EMENTA
MANDADO DE SEGURANÇA. REINTEGRAÇÃO NO EMPREGO. DESPEDIDA DE TRABALHADOR DOENTE. PRESUNÇÃO DE DESPEDIDA DISCRIMINATÓRIA. APLICAÇÃO DA SÚMULA 443 DO TST. INOBSERVÂNCIA DE DIREITOS HUMANOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS PREVISTOS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988. 1.Trabalhador impetrante portador do vírus HIV, dispensado em tratamento de saúde, quando em condição de fragilidade (doença), configurando-se a dispensa presumivelmente discriminatória. 2. Aplicação da teoria do Enfoque de Direitos humanos como novo paradigma hermenêutico que propõe interpretação e aplicação do Direito do Trabalho orientadas por uma visão humanística, na qual os direitos sociais são vistos em sua gênese, como Direitos Humanos, com vistas à sua efetividade, destacando-se o valor social do trabalho e a pessoa como ser humano nas relações de trabalho. Coerência com a Declaração do Centenário da OIT (2019), recomendando a centralidade do trabalho nas pessoas. 3. A Constituição da República estabelece como mandato imperativo a não discriminação, sendo que nos seus princípios e garantias fundamentais aplicáveis à espécie, destacam-se o valor social do trabalho, a dignidade da pessoa humana, a melhoria das condições sociais do trabalhador (princípio da progressividade) e a função social da propriedade (arts. 1º, III e IV, 7º, caput, e 170, III e VIII). Repúdio à discriminação de trabalhadores e trabalhadoras em razão de doenças, sejam elas de ordem física ou mental e quaisquer sejam as limitações delas derivadas. 6. Aplicação, também, da Convenção 111 da OIT e da Convenção Americana de Direitos Humanos, ambas ratificados pelo Brasil, além do disposto no Decreto 9571/18 (Princípios Diretores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos e Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos). 7. A lei 9029/95 prevê proibição de discriminações sob diversos aspectos, elencadas de forma meramente exemplificativa, enquanto o art. 118 da Lei 8.213/91 garante estabilidade provisória a trabalhadores e trabalhadoras portadores de doenças de origem ocupacional. 8. A função social da propriedade, como princípio constitucional, está diretamente atrelada ao respeito do valor social do trabalho, devendo ser cumprida através da observância de direitos e garantias fundamentais, dentre os quais, o de melhoria das condições sociais do trabalhador (art. 7º, caput, CRFB – vedação de retrocesso social) e do direito humano fundamental à saúde (art. 6º da CRFB), como na espécie. 9. Direitos humanos, princípios, direitos e garantias constitucionais possuem eficácia erga omnes, sendo aplicáveis nas relações jurídicas estabelecidas entre todas as pessoas, especialmente nas relações de trabalho, que contêm assimetrias de poder (poder econômico vs. trabalho assalariado). 10. Segurança concedida.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
ACORDAM os Magistrados integrantes da 1ª Seção de Dissídios Individuais do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região: por unanimidade, CONCEDER A SEGURANÇA para tornar definitiva a decisão que determinou a reintegração do impetrante no mesmo cargo e função ocupados, e mesma remuneração e, ainda, o restabelecimento do plano de saúde, nas mesmas condições que eram alcançados no curso da relação de trabalho, restando prejudicado o julgamento do agravo regimental. Custas dispensadas.
Intime-se.
Porto Alegre, 05 de outubro de 2020 (segunda-feira). Cabeçalho do acórdão
Acórdão
RELATÓRIO
Trata-se de mandado de segurança impetrado por contra decisão proferida pelo MM. Juiz da 1ª Vara do Trabalho de Novo Hamburgo, Dr. Paulo Andre de Franca Cordovil, que, nos autos da ação 0020399-86.2020.5.04.0301, indeferiu o pedido de tutela de urgência para sua reintegração no emprego, com a asseguração da manutenção das condições e direitos da relação de trabalho operada até então, e com pagamento dos salários do período de afastamento até a efetiva reintegração, em razão da despedida discriminatória realizada pelo litisconsorte em 06.07.2020. Pugna pela concessão da medida liminar vindicada, para que seja cassada a decisão impetrada e determinada a sua imediata reintegração no emprego, com o pagamento dos salários vencidos desde a despedida e a manutenção das condições e direitos doa relação de trabalho até então. Requer, ainda, seja declarado judicialmente o perdão tácito no que diz de qualquer acusação relativa ao desparecimento de valores conforme narrado na petição inicial da ação subjacente e confirmado na manifestação do .
O pedido liminar foi deferido por este Relator (Id. 2912f83).
O litisconsorte interpôs agravo regimental (Id. 71ce6df), o qual resta prejudicado face ao julgamento do mérito do mandado de segurança nesta oportunidade.
O impetrante, regulamente notificado, apresentou contraminuta (Id.4ede08b).
A autoridade apontada como coatora, regularmente oficiada, não prestou informações (Id. 6266cce).
O Ministério Público do Trabalho, no Parecer de lavra do Exmo. Sr. Procurador Regional do Trabalho, Dr. Victor Hugo Laitano, preconiza pela parcial concessão da segurança postulada (Id. acf3c69).
É o relatório.
FUNDAMENTAÇÃO
Alega o impetrante que mantém relação de trabalho com o desde 09.09.2010, exercendo atualmente a função de Supervisor Administrativo. Afirma que é soropositivo, portador do vírus HIV – situação que é de conhecimento do litisconsorte até o dia em que foi surpreendido com sua despedida sem justa causa (06.07.2020), eivada de caráter discriminatório. Refere que o ato coator, ao determinar que se aguarde a cognição exauriente, lhe causará inequívoco prejuízo, pois terá que permanecer sem emprego, até o deslinde do feito e, consequentemente, sem renda e acesso ao plano de saúde, indispensável para os cuidados de sua saúde. Alega que a decisão viola seu direito líquido e certo, nos termos da Lei 12.016/2009. Ressalta que a documentação anexada aos autos da ação subjacente revela que o não respeitou a sua condição, que assumiu perante médico do trabalho como soropositivo, portador do vírus HIV, fato que impede a sua despedida imotivada à luz do que preconiza a Súmula 443 do TST. Revela que desde o ano de 2011 possui diagnóstico positivo para o vírus HIV, contudo, num primeiro momento, por receio, diante do inequívoco estigma relacionado à doença, optou por não informar ao empregador, mantendo esta questão pessoal em sigilo. Diz que desde o diagnóstico mantém tratamento médico com infectologista e outros especialistas utilizando-se do convênio médico do Litisconsorte,. Ressalta que, em 2019, um exame médico ocupacional noticiou que é soropositivo, mas esta informação constou apenas em seu prontuário médico, não sendo lançada no Atestado de Saúde Ocupacional. Informa que, em 2020, repetiu a conduta e comunicou ao médico do trabalho que é portador do vírus HIV. Destaca que, desde o início de 2020 vinha observando carência de empregados no e, ao que sabe, o litisconsorte estaria contratando empregados para suprir a falta de trabalhadores. Refere que não se afastou do trabalho devido à recomendação de isolamento em decorrência da COVID-19, pois mantinha receio de punição em virtude de investigação/inspetoria ocorrida e encerrada no ano de 2019, em face de, no desempenho de suas funções, ter feito um chamado para conserto na porta do cofre da agência, ocasião em que foi constatada uma diferença a menor em moeda estrangeira, ao contar o dinheiro no dia seguinte ao conserto realizado por empresa terceirizada. Diz que a investigação administrativa e interna perdurou até novembro, sem a preservação do contraditório e demais garantias constitucionais de ampla defesa, sendo encerrada sem punições ou cobranças, inclusive porque não cometeu ato faltoso. Destaca que, mesmo sem contestar o encerramento do expediente investigatório em novembro de 2019, sem punições ou cobranças, o alega que este foi o motivo da despedida – o que evidentemente não merece guarida, já que se conclui ter sido a despedida discriminatória diante do fato de ser portador do vírus HIV. Menciona que outro fato a ser destacado e que revela o caráter discriminatório da despedia é que o litisconsorte está carecendo de empregados, o que não foi contestado na ação subjacente. Alega que estão demonstrados a probabilidade do direito e o risco de dano, e não há risco de irreversibilidade da medida, porquanto a manutenção do emprego não acarretará prejuízo ao litisconsorte. Invoca o princípio da continuidade da relação empregatícia.
A decisão atacada encontra-se assim fundamentada (Id. 9793f3d):
Vistos, etc.
Diante da controvérsia existente nos autos, indefere-se a tutela provisória requerida na petição inicial, pois desafia a cognição exauriente do feito.
Em razão das medidas estabelecidas pelo TRT-RS (Portaria Conjunta nº 1.770, de 28 de abril de 2020) visando prevenir o contágio do novo coronavírus nas dependências da Justiça do Trabalho, deixa-se de designar audiência inicial para o presente feito.
A reclamada deverá juntar, no PJE, contestação, documentos e eventual proposta conciliatória, no prazo de 15 dias, a contar do recebimento da notificação, sob pena de decretação de revelia e de confissão quanto à matéria de fato.
Após, o autor será intimado para manifestar-se, no prazo de 15 dias, sobre os documentos juntados com a defesa, oportunidade em que deverá apresentar as diferenças que entende devidas.
Nos respectivos prazos, as partes poderão apresentar proposta de acordo e deverão especificar as provas que pretendem produzir, sua pertinência e finalidade, inclusive em relação à eventual prova oral.
Cite-se a ré, por meio do Advogado habilitado nos autos. NOVO HAMBURGO/RS, 27 de julho de 2020.
PAULO ANDRE DE FRANCA CORDOVIL
Juiz do Trabalho Titular
Por sua vez, a decisão deste Relator, ao deferir a liminar nestes autos de writ, está assim fundamentada (Id. 2912f83): “(…).
A Sum. 443 do TST, tem a seguinte redação:
DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. PRESUNÇÃO. EMPREGADO PORTADOR DE DOENÇA GRAVE. ESTIGMA OU PRECONCEITO. DIREITO À REINTEGRAÇÃO – Res.
185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012 . Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego.
Destaco que a dispensa imotivada por parte das empresas vem sofrendo cada vez mais limitações, no contexto da pandemia mundial de COVID-19, em busca da preservação do trabalho das pessoas e de sua fonte de sobrevivência. O que, aliás, se coaduna ao princípio da função social da propriedade, previsto na Constituição da República.
Por outro lado, inexiste nos autos da ação subjacente, prova cabal que afaste a presunção relativa de dispensa discriminatória. A Súmula 443 do TST está em consonância com o raciocínio de que, demonstrada tamanha fragilidade na saúde do empregado, em razão de doença que, sabidamente, ainda é objeto de severo estigma social e preconceito, a dispensa que ocorre contemporaneamente a tal condição, é, presumivelmente discriminatória. A presunção, como já ressaltado, admite prova em contrário, contudo, não há elementos nos autos a autorizar conclusão reversa.
A interpretação sistemática da Constituição da República e dos seus princípios e direitos fundamentais, notadamente, os valores sociais do trabalho, a dignidade da pessoa humana, a melhoria das condições sociais do trabalhador e a função social da propriedade (arts. 1º, III e IV, 7º, caput e 170, III e VIII), aponta para a direção diametralmente oposta à discriminação de pessoas com limitações de qualquer ordem, inclusive em razão de doenças, sejam elas físicas ou mentais. E no mesmo compasso, a Convenção 111 da OIT, a qual assim disciplina:
CONVENÇÃO 111
Convenção concernente à discriminação em matéria de emprego e profissão. (…)
CONSIDERANDO que a declaração de Filadélfia afirma que todos os seres humanos, seja qual for a raça, credo ou sexo têm direito ao progresso material e desenvolvimento espiritual em liberdade e dignidade, em segurança econômica e com oportunidades iguais;
CONSIDERANDO, por outro lado, que a discriminação constitui uma violação dos direitos enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, adota neste vigésimo quinto dia de junho de mil novecentos e cinqüenta e oito, a convenção abaixo transcrita que será denominada Convenção sobre a discriminação (emprego e profissão), 1958.
ARTIGO 1º
1.Para fins da presente convenção, o termo “discriminação” compreende: a) Toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão; b) Qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria de emprego ou profissão, que poderá ser especificada pelo Membro Interessado depois de consultadas as organizações representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas existam, e outros organismos adequados. (…)
3.Para os fins da presente convenção as palavras “emprego” e “profissão” incluem o acesso à formação profissional, ao emprego e às diferentes profissões, bem como as condições de emprego.
ARTIGO 2º
Qualquer Membro para o qual a presente convenção se encontre em vigor compromete- se a formular e aplicar uma política nacional que tenha por fim promover, por métodos adequados às circunstâncias e aos usos nacionais, a igualdade de oportunidade e de tratamento em matéria de emprego e profissão, com objetivo de eliminar toda discriminação nessa matéria.
ARTIGO 3º
Qualquer Membro para o qual a presente convenção se encontre em vigor deve, por métodos adequados às circunstâncias e os usos nacionais: a) Esforçar-se por obter a colaboração das organização de empregadores e Trabalhadores e de outros organismos apropriados, com o fim de favorecer a aceitação e aplicação desta política; b) Promulgar leis e encorajar os programas de educação próprios a assegurar esta aceitação e esta aplicação; c) Revogar todas as disposições legislativas e modificar todas as disposições ou práticas, administrativas que sejam incompatíveis com a referida política. d) Seguir a referida política no que diz respeito a empregos dependentes do controle direto de uma autoridade nacional; e) Assegurar a aplicação da referida política nas atividades dos serviços de orientação profissional, formação profissional e colocação dependentes do controle de uma autoridade nacional; f) Indicar, nos seus relatórios anuais sobre a aplicação da convenção, as medidas tomadas em conformidades com esta política e os resultados obtidos. (…)
A mencionada Convenção foi objeto de ratificação pelo Brasil, por meio do Decreto nº 62.150, de 19-01-1968, integrando o cabedal de normas sobre Direitos Humanos, e ainda que se discuta sua equivalência à norma constitucional, possui, no mínimo, de norma status supralegal, nos moldes do art.. 5º, §§ 1º a 3º, da Constituição da República.
Além disso, é evidente que a discriminação fundada em ato ilícito ou mesmo abuso de direito, rompe com os princípios básicos expressos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil em setembro de 1992.
Atento a tais comandos, saliento que a Lei 9.029/95 vem ao encontro das diretrizes constitucionais e internacionais acima citadas, ao estipular proibição de discriminações as quais elenca de forma exemplificativa:
Art. 1º É proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros, ressalvadas, nesse caso, as hipóteses de proteção à criança e ao adolescente previstas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
Art. 2º Constituem crime as seguintes práticas discriminatórias:
I- a exigência de teste, exame, perícia, laudo, atestado, declaração ou qualquer outro procedimento relativo à esterilização ou a estado de gravidez;
II- a adoção de quaisquer medidas, de iniciativa do empregador, que configurem; a) indução ou instigamento à esterilização genética; b) promoção do controle de natalidade, assim não considerado o oferecimento de serviços e de aconselhamento ou planejamento familiar, realizados através de instituições públicas ou privadas, submetidas às normas do Sistema Único de Saúde (SUS).
Pena: detenção de um a dois anos e multa.
Parágrafo único. São sujeitos ativos dos crimes a que se refere este artigo:
I – a pessoa física empregadora;
II- o representante legal do empregador, como definido na legislação trabalhista;
III- o dirigente, direto ou por delegação, de órgãos públicos e entidades das administrações públicas direta, indireta e fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Art. 3º Sem prejuízo do prescrito no artigo anterior, as infrações do disposto nesta lei são passíveis das seguintes cominações:
Art. 3º Sem prejuízo do prescrito no art. 2º desta Lei e nos dispositivos legais que tipificam os crimes resultantes de preconceito de etnia, raça, cor ou deficiência, as infrações ao disposto nesta Lei são passíveis das seguintes cominações: (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
I- multa administrativa de dez vezes o valor do maior salário pago pelo empregador, elevado em cinqüenta por cento em caso de reincidência;
II– proibição de obter empréstimo ou financiamento junto a instituições financeiras oficiais. (…)
Portanto, o ordenamento jurídico nacional, calcado na Constituição Cidadã de 1988 e em normas internacionais que proíbem o discrímen revestido de ilícito, perpetrado com abuso de direito, por vezes travestido como legítimo, reprimem, por consequência, dispensas com tal teor, como no caso daquelas discriminatórias que se efetuam em razão de doença grave que suscite estigma ou preconceito, nos termos da Sum. 443 do TST.
Refiro ainda, calcado no princípio do diálogo das fontes, que a boa-fé objetiva deve ser observada nas relações de ordem trabalhista, em atenção ao comando descrito no CC de 2002 fundado em princípios constitucionais, dentre os quais, o da função social da propriedade, o qual estabelece, no art. 422, a necessidade de que as partes observem a boa-fé objetiva tanto na conclusão como na execução dos contratos. A liberdade de contratar deve estar atrelada à função social dos contratos (art. 421 do CC 2002), sendo inquestionável que tal comando tem destinação certeira com vistas ao observância dos direitos fundamentais, dentre os quais, o de melhoria das condições sociais do trabalhador (art. 7º, caput, CRFB) e o direito social à saúde (art. 6º da CRFB).
Destaco que, contemporaneamente, não se sustenta uma leitura dos direitos fundamentais que tenha por base apenas a diferenciação entre a pessoa (titular do direito) e o Estado (de prestação social), implicando a simples verticalização dos direitos fundamentais. Tal dimensão convive e por vezes perpassa e se confunde, com a ideia de que os direitos fundamentais também devem ser observados pelo particular em suas relações sociais (eficácia horizontal dos direitos fundamentais). Tanto é assim que os códigos e legislações mais modernas trazem tal concepção a exemplo do CC de 2002 e do Código de Defesa do Consumidor. No contexto, oportunas as lições do professor João Trindade Cavalcante Filho:
Antigamente se pensava que os direitos fundamentais incidiam apenas na relação entre o cidadão e o Estado. Trata-se da chamada “eficácia vertical”, ou seja, a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre um poder “superior” (o Estado) e um “inferior” (o cidadão).
Em meados do século XX, porém, surgiu na Alemanha a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que defendia a incidência destes também nas relações privadas (particularparticular). É chamada eficácia horizontal ou efeito externo dos direitos fundamentais (horizontalwirkung), também conhecida como eficácia dos direitos fundamentais contra terceiros (drittwirkung).
Em suma: pode-se que dizer que os direitos fundamentais se aplicam não só nas relações entre o Estado e o cidadão (eficácia vertical), mas também nas relações entre os particulares-cidadãos (eficácia horizontal). Fonte:http://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portaltvjustica/portaltvjusticanoticia/anexo/joao_trindadade teoria_geral_dos_direitos_fundamentais.pdf)
Acresço, ademais, que o TST, ao confirmar a incidência dos termos da Sum. 443, leva em conta as circunstâncias fáticas apuradas pelo Tribunal Regional respectivo, que indiquem discriminação presumida no despedimento do trabalhador, situação configurada no presente no caso. Neste norte, cumpre transcrever ementa da decisão proferida pela 3ª Turma do TST, noAIRR nº 1291-82.2014.5.07.0015, em 28-06-2017, publicada no DEJT de 03-07-2017, voto de lavra do Ministro Maurício Godinho Delgado:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015/2014. DESPEDIDA DISCRIMINATÓRIA. EMPREGADO PORTADOR DE DOENÇA GRAVE. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. Presume-se discriminatória a ruptura arbitrária do contrato de trabalho, quando não comprovado um motivo justificável, em face de circunstancial debilidade física do empregado. Esse entendimento pode ser abstraído do contexto geral de normas do nosso ordenamento jurídico, que entende o trabalhador como indivíduo inserto numa sociedade que vela pelos valores sociais do trabalho, pela dignidade da pessoa humana e pela função social da propriedade (arts. 1º, III e IV, e 170, III e VIII, da CF). Não se olvide, outrossim, que faz parte do compromisso do Brasil, também na ordem internacional (Convenção 111, da OIT), o rechaçamento a toda forma de discriminação no âmbito laboral. Na esteira desse raciocínio, foi editada a Súmula 443/ TST, que delimita a pacificação da jurisprudência trabalhista neste aspecto, com o seguinte teor: ‘Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego’. No caso concreto, o TRT consignou que o Reclamante era portador de doença renal grave, que culminou em gozo de auxílio- doença previdenciário, no período de 07.11.2013 a 17.12.2013, tendo a dispensa ocorrido oito dias após retornar do benefício previdenciário, no dia 25.12.2015, feriado de Natal, sem que a Reclamada apresentasse qualquer motivo a justificar o término do vínculo – o que, nos termos da Súmula 443 desta Corte, faz presumir o seu caráter discriminatório. O TRT, para chegar a tais conclusões, baseou-se nos fatos e circunstâncias constantes dos autos. (grifei)
A respeito do tema, também, matéria recente publicada pela revista Galileu:
COMO O PRECONCEITO CONTRIBUI PARA O AUMENTO DA EPIDEMIA DE AIDS
Perconceito e epidemia
A questão do preconceito não pode ser separada de uma síndrome estigmatizante como a aids. O assunto é tão importante que o Unaids criou um índice que mede como isso contribui para o avanço da epidemia, o Stigma Index – que deve incluir o Brasil no próximo ano.
Leis como a que garante o tratamento gratuito pelo SUS e a que penaliza atos de discriminação ajudam, mas não são suficientes para mudar a mentalidade da sociedade, que ainda enxerga quem vive com o vírus como um “merecedor”. Além disso, o acesso à saúde e à orientação não é igual para todos. (…) (http://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2017/07/como-o-preconceito-contribui-para-oaumento- da-epidemia-de-aids.html)
Uma vez estabelecida a existência elementos a autorizar a presunção relativa de despedida discriminatória, configurado o ato ilícito e/ou o abuso de direito praticado pelo litisconsorte, no ato da rescisão contratual, entendo plausível o pedido do impetrante.
No caso, considerando a condição de saúde do autor, entendo que o direito de despedir do empregador resta mitigado, em razão de um bem maior, na espécie, a tutela da saúde da pessoa trabalhadora.
De outra parte, o princípio da continuidade da relação de trabalho, firma o perigo da demora na reintegração do obreiro, já que privada da relação de trabalho que dá lastro ao seu sustento.
Além disso, a perda do plano de saúde no momento delicado da vida do impetrante, em que precisa continuar o tratamento, caracteriza o dano irreparável.
Por fim, destaca-se que não há maiores prejuízos ao litisconsorte no deferimento da medida, uma vez que os salários pagos serão contraprestados pelo trabalho do impetrante.
No que tange ao pedido para que seja declarado judicialmente o perdão tácito relativo à acusação sobre o desparecimento de valores, não cabe, em sede de mandado de segurança, a análise da matéria, a qual deve ser examinada de forma mais aprofundada na ação subjacente.
Isto considerado, CONCEDO PARCIALMENTE O PEDIDO LIMINAR, para determinar a reintegração do autor no emprego, com o pagamento dos salários vencidos desde a despedida e a manutenção das condições e direitos da relação de trabalho, bem como o restabelecimento do plano de saúde. (…).”.
Pois bem.
Como visto, a decisão que deferiu a liminar ao impetrante já examinou à exaustão a situação fática delineada nos autos e, ipso facto, ratifico os fundamentos nela expostos. A manifestação do litisconsorte não traz elementos novos ou capazes de alterar o julgamento deste mandamus.
Conforme decisão liminar, nos termos da Súmula 443 do TST, presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV. A dispensa de trabalhador doente é diametralmente contrária ao princípio da função social da propriedade, estabelecido na Constituição Federal como informador da ordem econômica brasileira (art. 170, II e III) que tem por finalidade assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. A função social da propriedade deve ser entendida, portanto, de forma a coadunar- se aos mais elevados objetivos constitucionalmente previstos, notadamente os concernentes à construção de uma sociedade livre, justa e solidária e promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Reitero que aplica-se, na espécie, o entendimento constante da Súm. 443 do TST:
DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. PRESUNÇÃO. EMPREGADO PORTADOR DE DOENÇA GRAVE. ESTIGMA OU PRECONCEITO. DIREITO À REINTEGRAÇÃO.
Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego.
Desta sorte, ao empregado não cabe provar a existência de discriminação, cabe à empresa comprovar que a despedida não foi discriminatória.
Neste sentido, a jurisprudência majoritária vem invertendo o ônus da prova em casos que envolvam a dispensa de empregados portadores de moléstias graves tal como HIV positivo, cabendo aos empregadores a prova do fato modificativo, extintivo ou impeditivo da manutenção do empregado no trabalho. Isso se dá em virtude, notadamente, dos princípios da proteção ao trabalho e da aptidão para a prova, haja vista ser de extrema dificuldade ao trabalhador conseguir provar que a dispensa se deu por motivo discriminatório, constituindo este, também, um desdobramento do direito humano fundamental de acesso à justiça, com a facilitação dos meios de exercício do direito para melhor eficácia de sua tutela.
Destarte, considerando que a despedida do impetrante teve cunho discriminatório, milita em seu favor o princípio da continuidade da relação de emprego (seguridade e estabilidade no trabalho), no que vislumbro, na decisão impetrada, violação a direito líquido e certo do trabalhador concernente à obtenção da tutela reintegratória como lhe foi deferida neste mandamus.
Por fim, a ré se trata de empresa de grande porte financeiro na manutenção da decisão liminar, na medida e não se constata prejuízo em que alcançará salário mediante a respectiva prestação de trabalho. A recíproca, ao revés, causa grave prejuízo ao impetrante, privado de meios de subsistência e tratamento de saúde quando doente.
A função social da propriedade, como princípio da ordem econômica e social, deve ser cumprida mediante o respeito ao valor social do trabalho, especialmente observando-se os Direitos Humanos das pessoas trabalhadoras para entrega de uma vida digna a quem trabalha. Aplicação do Decreto 9571/18 (Princípios Diretores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos e Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos, que determina a entrega de trabalho decente e reitera a vedação à discriminação por parte das empresas:
Art. 7º Compete às empresas garantir condições decentes de trabalho, por meio de ambiente produtivo, com remuneração adequada, em condições de liberdade, equidade e segurança, (…)
Art. 8º Caberá às empresas combater a discriminação nas relações de trabalho e promover a valorização e o respeito da diversidade em suas áreas e hierarquias, com ênfase em:
I – resguardar a igualdade de salários e de benefícios para cargos e funções com atribuições semelhantes, independentemente de critério de gênero, orientação sexual, étnico-racial, de origem, geracional, religiosa, de aparência física e de deficiência;
Por todos estes aspectos, confirmo integralmente a decisão que determinou a reintegração do impetrante no emprego, com o pagamento dos salários vencidos desde a despedida e a manutenção das condições e demais direitos da relação de trabalho consolidada com a litisconsorte, bem como o restabelecimento do plano de saúde.
Destaco, ainda, que nesse sentido também é o parecer do Ministério Público do Trabalho, de lavra do Exmo. Sr. Procurador Regional do Trabalho, Dr. Victor Hugo Laitano, que preconiza pela parcial concessão da segurança postulada (Id. acf3c69): “(…).
Na espécie em exame, à luz do quadro fático, se divisa a ilegalidade ou abuso de poder no ato praticado pela autoridade apontada como coatora a dar azo à concessão da ordem mandamental. O pedido de antecipação dos efeitos da tutela formulado pelo autor foi indeferido, nos autos da ação subjacente, nos seguintes termos: (…).
Com efeito, na hipótese dos autos, verifica-se a verossimilhança das alegações do autor, de modo a autorizar o Juízo impetrado a conceder, mediante liminar, a antecipação dos efeitos do provimento jurisdicional de mérito. Isto porque, é factível concluir que pode haver ilegalidade no ato que indeferiu a reintegração do trabalhador ao serviço em antecipação dos efeitos da tutela de mérito, ante a razoabilidade da tese de existência de despedida fundada em critério discriminatório na hipótese sob lume.
Além disso, importa ressaltar que a discriminação pode ser entendida como qualquer distinção, exclusão ou preferência que altere a igualdade de oportunidades ou de tratamento. Existe discriminação quando o empregador impede a contratação ou a continuidade da relação de trabalho por motivo arbitrário, como no caso em exame.
Assim, restando presente a verossimilhança das alegações do impetrante, também existe o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ante a possibilidade de ficar o trabalhador sem os meios necessários à sua subsistência com o rompimento contratual procedido pela empresa.
De outra parte, a manutenção do contrato de trabalho do impetrante até o final julgamento da matéria debatida na ação subjacente não traz prejuízos à empresa litisconsorte, porquanto estará se valendo da força de trabalho do obreiro até o julgamento do mérito da ação subjacente.
Neste cenário, não merece vingar a decisão atacada, ao não conceder a tutela de urgência pretendida na ação subjacente.
Destarte, entendo caracterizados os requisitos que autorizam seja determinada a imediata reintegração do impetrante ao quadro de empregados do litisconsorte, restabelecendo-se o vínculo de emprego em seus termos primitivos, nas mesmas condições anteriores.
Portanto, face o entendimento acima aduzido, no sentido de que a decisão proferida na ação subjacente importou em violação ao direito líquido e certo do impetrante, preconizo pela concessão da segurança pleiteada, confirmando-se a decisão liminar anteriormente deferida.
Nesses termos, CONCEDO A SEGURANÇA, para tornar definitiva a decisão que determinou a reintegração do impetrante no mesmo cargo, função e remuneração, e, ainda, o restabelecimento do plano de saúde, tudo nas mesmas condições que eram alcançados no curso do contrato de trabalho, restando, por conseguinte, prejudicado o julgamento do agravo regimental.
Concedo o benefício da gratuidade da justiça ao impetrante. Sem custas.
Assinatura
MARCELO JOSE FERLIN D’AMBROSO
Relator
VOTOS
DESEMBARGADORA ANGELA ROSI ALMEIDA CHAPPER:
Na condição de revisora, acompanho o voto condutor.
JUIZ CONVOCADO CARLOS HENRIQUE SELBACH:
Acompanho o voto do Exmo. Desembargador Relator.
DEMAIS MAGISTRADOS:
Acompanham o voto do(a) Relator(a).
PARTICIPARAM DO JULGAMENTO:
DESEMBARGADOR MARCELO JOSÉ FERLIN D AMBROSO (RELATOR)
DESEMBARGADORA ANGELA ROSI ALMEIDA CHAPPER (REVISORA)
DESEMBARGADORA VANIA MATTOS
DESEMBARGADOR GILBERTO SOUZA DOS SANTOS
DESEMBARGADOR ANDRÉ REVERBEL FERNANDES
DESEMBARGADOR FERNANDO LUIZ DE MOURA CASSAL
DESEMBARGADOR FABIANO HOLZ BESERRA
DESEMBARGADOR MARCOS FAGUNDES SALOMÃO DESEMBARGADOR MANUEL CID JARDON
DESEMBARGADOR ROGER BALLEJO VILLARINHO
DESEMBARGADORA SIMONE MARIA NUNES
DESEMBARGADOR ROSIUL DE FREITAS AZAMBUJA
JUIZ CONVOCADO CARLOS HENRIQUE SELBACH