Indulto de 2004, uma nova história para as mulheres encarceradas

* Texto base da participação em audiência pública realizada em setembro de 2004, no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Ministério da Justiça

A superação dos complexos problemas trazidos pela pena privativa de liberdade exige o máximo comprometimento da sociedade civil. Sob esta premissa, em 2001, surgiu o Grupo de Estudos e Trabalho, com a reunião de algumas entidades: Associação Juizes para a Democracia, o ITTC, o Colibri e a Comissão de Direitos Humanos e da Mulher Advogada da OAB/SP, com o objetivo de abrir a discussão sobre a realidade da mulher presa, suas condições de encarceramento, seu acentuado perfil de exclusão social, a emergência de atendimento a seus direitos, a violência de gênero e apresentar propostas para que esta situação pudesse ser alterada.

Somaram-se forças e agregaram-se ao Grupo outras entidades, como a Comissão Teothonio Vilela de Direitos Humanos, a Pastoral Carcerária, a Ilanud, o Cladem, Centro Dandara de Promotoras Legais Populares, o Movimento do Ministério Público Democrático, a Asbrad.

Em 2004 o Grupo enviou proposta ao Ministro da Justiça e ao Conselho Penitenciário para que a mulher encarcerada passasse a fazer parte da política criminal exercida por meio de indulto pelo Presidente da República.

O CNPCP realizou audiência pública em setembro de 2004 e além das entidades referidas outras 77 subscreveram a proposta. São entidades ligadas ao Direito Penal, à Magistratura, Defensoria, Ministério Público, que trabalham pelos direitos humanos, com a questão de gênero e com a defesa dos direitos da criança e adolescente.

A importância histórica destas entidades (anexo 1) e o número expressivo demonstram que a sociedade quer que seja resgatada a questão de gênero nas normas concessivas de indulto.

Foi uma experiência marcante para todos os envolvidos. Nunca se tinha visto um movimento tão forte com o objetivo de defesa dos direitos das mulheres presas.

Reivindicamos que o indulto de 2004 abrigasse as especificidades do gênero visando mulheres: a) condenadas por infração a Lei de Tóxicos com pena inferior a cinco anos e primárias, já que o papel exercido por elas é de simples repassadoras. Na cadeia criminal sempre estão nos postos mais baixo, nas funções menos relevantes Característica, aliás, já notada na década de 50 pela ilustre Professora Esther de Figueredo Ferraz, que observou então que mulheres envolvidas com a criminalidade não assumem na peça criminosa os mesmos papéis e nem cometem os delitos pelos mesmos motivos; b) com filhos menores de 18 anos e que nestas situações fosse considerada um período menor de cumprimento para sua concessão, priorizando-se assim a relação da mulher com a criança e o adolescente.

Assim, tendo sido o ano de 2004 definido como “Ano da Mulher” (Lei 10.745 de 9.10.2003 ), tornar-se-ia um marco para a entrada da mulher na agenda de política criminal pelo instrumento constitucional do indulto.

Necessário por primeiro anotar que o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento apontou em seu relatório de desenvolvimento humano de 1977 que “Nenhuma sociedade trata suas mulheres tão bem quanto seus homens”.

Sempre foi um objetivo daqueles que têm a dignidade humana como parâmetro a referência à igualdade, esse legado do Iluminismo. Tanto que o termo “igualdade” aparece nos documentos internacionais, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948.

Porém, constatou-se que a especificidade da mulher e as condições reais apontavam para a necessidade dos Estados Partes indicarem preocupação diferenciada em relação às mulheres. Daí o surgimento de convenções e tratados que têm a mulher como foco. Dentre eles a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher; a Declaração de Pequim; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – a Convenção do Belém do Pará.

Este último documento tem expressa recomendação, no artigo 9º, para que os Estados Partes considerem no cumprimento de seus deveres diversas situações específicas, dentre elas as mulheres afetadas por privação de liberdade.

A questão da exclusão da Mulher Encarcerada é uma preocupação internacional. A Assembléia Geral da ONU, pela Resolução 58/183, recomendou que se prestasse maior atenção às questões de mulheres que se encontram na prisão, inclusive no tocante às questões referentes aos seus filhos.

Em conseqüência desta recomendação foi solicitado documento sobre esta temática para a sra. Florizelle O’Connor, que indica em seus estudos que a) as mulheres constituem um percentual pequeníssimo da população carcerária em todo o mundo; b) alta porcentagem das mulheres presas são mães; c) são elas que se encarregam de cuidar dos filhos; d) não há políticas públicas adequadas no tratamento das presas; e) há um aumento do aprisionamento feminino, que não se circunscreve a delitos violentos, mas a um aumento das taxas de encarceramento de mulheres presas em razão do aparecimento do tráfico de entorpecentes, sendo usadas, de regra, como “mulas” e a maioria por delito de pouca quantidade de entorpecente ( documento disponível no site da ONU).

É impressionante que este seja o retrato fiel da situação das presas brasileiras.

Vejamos os dados no nosso país:

Indicadores de 2003, que constam do site do Ministério da Justiça, apontam 308.000 presos e deste, apenas 12.000 mulheres.

Cerca de um terço destas pessoas estão no Estado de São Paulo, quase 120.000 e destes, 112.000 são homens; 87.851 estão cumprindo pena no sistema penitenciário e 24.381 ( equivalente a 22%) estão no sistema de polícia, em delegacias.

Temos 6.157 mulheres presas em São Paulo. Apenas 2.355 estão no sistema penitenciário e 3.802 na polícia, ou seja, 62% das mulheres estão cumprindo pena em local inapropriado, embora sejam um número diminuto da população carcerária.

Tal fato denota a desigualdade de tratamento entre homens e mulheres. O Estado prioriza o atendimento dos homens. Há clara ação de discriminação estatal, com frontal descumprimento dos tratos internacionais ratificados pelo Brasil.


As mulheres presas vivem em condições desumanas, umas sobre as outras, sem qualquer respeito aos seus direitos. Não recebem educação, não têm condições mínimas de receber os filhos e outros visitantes, não têm como exercer o direito de visita íntima; não têm assistência judiciária; não podem trabalhar, se profissionalizar.

Em algumas prisões recebem o mesmo tratamento destinado aos homens, inclusive usando uniformes iguais, como se a primeira coisa a fazer com a presa é a sua desconstrução como mulher. Esta não é uma realidade exclusiva de São Paulo.

Embora as mulheres no Brasil representem percentual pequeno dos aprisionados, não atingindo 5% da população carcerária, 45% delas se encontra fora do sistema penitenciário.

Mas como se caracteriza esta mulher? Vamos verificar este perfil através do Censo Penitenciário de 2002, realizado pela Funap/SP (que pode ser encontrado no site da SAP/SP). O perfil é o mesmo desenhado no relatório da Sra. Florizelle O’Connor.

As mulheres presas, em sua maioria , 73%, são sozinhas ( solteiras, viúvas ou separadas). Ao contrário dos homens, 56% deles são casados ou amasiados. Antes de serem presas, cerca de 67% das mulheres moravam com os filhos. Categoria que é reduzida para os homens que em sua maioria vivia com a mãe ou cônjuge, reafirmando o que ocorre fora dos muros, onde o ônus da criação dos filhos recai sobre as mulheres.

A guarda dos filhos é mais assumida pelas companheiras dos presos, cerca de 87%, do que pelos companheiros das presas, que fica na ordem diminuta de 19%. Encontramos nestes casos um percentual expressivo de filhos sob a tutela de avós maternos, o que indica que a criação dos filhos das detentas acaba recaindo mais sob sua família do que sob a do companheiro.

Um número significativo de mulheres não recebe visitas, são 36% e 11% recebe visitas menos de uma vez por mês. As mulheres são mais abandonadas quando em situação de prisão. Apenas 18% recebem visitas dos companheiros. Ao contrário dos homens, que são visitados em sua maioria, 65%, pelas mulheres. Porém, são as mulheres que mais recebem visitas dos filhos.

Há um indicador emblemático: 73% dos homens afirmaram que gastavam consigo sua remuneração. Já 58% das mulheres incluem a família entre os que mais recebem seus ganhos.

O número de mulheres que já fez curso profissionalizante é proporcionalmente superior ao de homens, indicativo de que buscam o melhor preparo possível para a volta à sociedade livre.

Este quadro esta a indicar um perfil absolutamente diferenciado entre homens e mulheres, apontando para a necessidade de atender a resolução da ONU para que se preste maior atenção às mulheres encarceradas e aos seus filhos.

O encarceramento produz conseqüências de diversas ordens. Não repercute, à toda evidência, apenas na pessoa detida, mas atinge o núcleo familiar, comunitário e social.

Repercute de forma específica nos filhos, crianças e adolescentes, relembrando que para estas situações e com a finalidade de ser beneficiária do indulto, o correto é usar o conceito empregado na “Convenção Sobre os Direitos da Criança” que define criança como todo ser humano menor de 18 anos, mesmo parâmetro utilizado em nosso Estatuto da Criança e Adolescente , que protege os interesses de pessoas em tal faixa etária.

Oportuno relembrar que a lei de execução penal, ao prever a situação especial de prisão albergue domiciliar, incluiu a mãe de filho menor. Temos o conceito de Direito Penal que estabelece a imputabilidade aos 18 anos.

Temos outros efeitos perversos do encarceramento. Em trabalho realizado no Rio de Janeiro pela Superintendência de Saúde da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária- SEAP, concluiu-se: “A cada ano de permanência na prisão aumenta em 13% a chance de uso de cocaína”. Ainda, a situação de encarceramento é fator de várias doenças, como tuberculose, dermatites, etc...

Cabe registrar que as ações de inclusão não têm caráter paternalista ou discriminatório. Ao contrário, são meios eficazes de busca da igualdade, atendendo as diferenças reais. A Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, que é lei no Brasil desde fevereiro de 1984, posto que ratificada, diz em seu artigo 4º- 1: A adoção pelos Estados-Partes de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção, mas de nenhuma forma implicará, como conseqüência, a manutenção de normas desiguais ou separadas: essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade e oportunidade e tratamento houverem sido alcançados”.

Ainda, o “Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas submetidas a qualquer forma de Detenção ou Prisão”, adotada pela Assembléia Geral da ONU, em dezembro de 1988 estabelece :

“As medidas que se apliquem dentro da lei e que tendam a proteger exclusivamente os direitos e a condição especial da mulher não se considerarão discriminatórias”.

A nossa Lei de Execução Penal apontou diferenciais em algumas passagens. Podemos verificar na leitura dos artigos 82, 89 e 117 da lei, que tratam de estabelecimentos penais apropriados para mulheres, que devem atender à sua condição pessoal, com previsão de espaços próprios para gestantes, parturientes e creche e também ao se referir ao regime aberto na modalidade de prisão albergue domiciliar, pois há expressa previsão para as mulheres com filho menor.

No tocante ao indulto constatamos que nos últimos anos nenhum decreto presidencial realizou processo de inclusão da presa.

Há uma grande dificuldade na obtenção dos dados referente ao tema da audiência pública. Os obtidos pelo Grupo de Estudos e Trabalho “Mulheres Encarceradas” permitem afirmar que é uma falácia dizer que o indulto abre as portas das cadeias, como comumente se prega. Vejamos os dados obtidos:

A) Rio Grande do Sul, em 2003, 132 homens foram beneficiados com indulto e nenhuma mulher recebeu este benefício. Em 2004, nenhuma mulher foi beneficiada (dados recebidos verbalmente, por meio da Superintendência do Serviço Penitenciário).

B) Santa Catarina - Referente Decreto 4495/2002

1º indulto
Masculino ..............105
Feminino.................. 4

2º comutação
Masculino................186
Feminino................... 1

Referente Decreto 4904/2003
1º indulto
Masculino .................. 100
Feminino...................... 6

2º Comutação
Masculino..................... 145
Feminino....................... 11

(Dados fornecidos pelo Departamento de Adm. Penitenciária/ Gerência Judiciária/ Corregedoria do Sistema Prisional)

C) Amazonas
2001 - Processos encaminhados para apreciação 05
Deferidos..................... 02
Indeferidos.................. 01
Diligência....................... 02

2002 - Processos encaminhados para apreciação 02
Deferidos..................... 01
Indeferidos................. 01

2003 - Processos encaminhados para apreciação 32
Indeferidos................. 22
Diligência........................ 10

(Dados fornecidos pelo Conselho Penitenciário, sem o recorte de gênero).

D) Maranhão:
Ano de 2000
Sexo masculino......... 20 indultos
Sexo feminino ......... 01 indulto
Total............................21 pedidos de indulto

Ano de 2001
Sexo masculino..........20 indultos
Sexo feminino............01 indulto
Total.....................21 indultos

Ano de 2002
Sexo masculino.........57 indultos
Sexo feminino ..........01 indulto
Total..............................58 pedidos de indulto

Ano de 2003
Sexo masculino........59 indultos
Sexo feminino......... 4 indultos
Total...........................63 pedidos

(Dados fornecidos pela Superintendência de Estabelecimentos Penais- Conselho Penitenciário e que se referem aos pedidos formulados).

E) São Paulo - foram 26 mulheres que obtiveram indulto
entre os anos de 2000 a agosto de 2004 (até agosto), referente aos estabelecimentos abaixo.

Pen. Fem do Butantan (2000) - 2
Pen. Fem do Butantan (2001) - 3
Pen. Fem do Butantan (2002) - 5
Pen. Fem do Butantan (2004) - 1
Pen. Fem da Capital (2000) - 1
Pen. Fem da Capital (2001) - 1
Pen. Fem Tatuapé (2000) - 1
Pen. Fem Tatuapé (2002) - 1
Pen. Fem Tatuapé (2003) - 2
Pen. Fem Tremembé (2000) - 1
Pen. Fem Tremembé (2002) - 5
Pen. Fem Tremembé (2003) - 1
C. Res. S.J. dos Campos (2003) - 1
C. Res. S.J. dos Campos (2004) - 1

(Dados fornecidos pela Secretaria de Administração Penitenciária).

Como se vê, um número irrisório diante de uma população que atinge 320.000 presos, muito mais insignificante se olharmos os números referente às mulheres.

Nos últimos dez anos nenhum Presidente da República considerou de alguma forma a questão do gênero para a concessão do indulto.

Entretanto, tivemos Presidentes como José Sarney, Itamar Franco e João Figueiredo, que embora de forma restrita no tocante ao delito, observaram o recorte de gênero no período de 1982 a 1993.

Neste período, em 1985, o Congresso Nacional decretou e o Presidente da República sancionou anistia para mães de filhos com pena inferior a 5 anos. Trata-se da Lei 7417/85.

Os proponentes e os apoiadores esperavam que o Presidente da República, no Ano da Mulher, se pautasse pelo interesse social e em uma política pública criminal de inclusão da mulher, pois precisamos de ações efetivas que demonstrem o compromisso do País com os tratados e convenções que ratificou e subscreveu. Precisamos de atos concretos que indiquem que estamos comprometidos em tornar fato a idéia da igualdade.

A desigualdade é perversa. Terrível não reconhecê-la. Muito pior é ter consciência e nada fazer.

Concluo da mesma forma que a Sra. O’Connor: precisamos reavaliar os nossos conceitos de delito, castigo e Justiça.

O movimento foi vitorioso, pois passados mais de dez anos, temos por fim um decreto de indulto que de alguma forma contemplou a questão de gênero (Decreto 5295/2004 - anexo 2). Mas é preciso avançar e quem sabe teremos outras histórias em 2005.

Kenarik Boujikian Felippe, juíza de Direito da 16ª Vara Criminal da Capital, co-fundadora e ex-presidente da Associação Juizes para a Democracia e membro do Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas.