EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, MINISTRO JOAQUIM BARBOSA.
Assunto: Promoção de juízes por merecimento
(Resolução CNJ 106)
A ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA - AJD, entidade não governamental, sem fins lucrativos ou corporativistas, que congrega juízes e juízas trabalhistas, federais e estaduais de todo o território nacional e de todas as instâncias, e que tem por objetivos primaciais a luta pelo respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito e pela defesa da independência judicial, vem à presença de Vossa Excelência, respeitosamente, representada pelo presidente de seu Conselho Executivo, requerer que, no processo de revisão da Resolução CNJ n. 106, seja adotado, nas promoções dos magistrados, em conjunto com o critério da antiguidade, conceito negativo de merecimento, de modo a concretizar as garantias constitucionais da imparcialidade e da independência judiciais.
A proposta de alteração da Resolução CNJ n. 106 objetiva aperfeiçoar as regras a serem observadas pelos tribunais nas promoções de magistrados pelo critério de merecimento e foi precedida do exame de vários casos em que a aplicação desse critério trouxe resultados iníquos que denotam que não se trata, apenas, de lacunas ou falhas no texto normativo que possam simplesmente ser aperfeiçoadas. Esse estado de coisas inspira a insurgência da AJD contra o atual sistema de promoções, externada desde a “Carta do Recife” firmada ao final do I Encontro Nacional de Juízes para a Democracia (Recife, 2005): “Pugnamos que o CNJ (...) se imponha como mecanismo para garantir a independência judicial, prestigiando o princípio do juiz natural em todas as dimensões [e] exigindo critérios objetivos para a promoção (...).”[1]
Com efeito, para construir e tornar efetivos instrumentos que possibilitem o aperfeiçoamento do Poder Judiciário e da magistratura como um todo, não se pode olvidar que a promoção por merecimento, em inúmeras situações que vêm se repetindo ao longo do tempo, vulnera a garantia-prerrogativa-dever-direito de independência judicial.
Em todo o Brasil, sobejam histórias em que o critério de "merecimento" foi usado para favorecer candidatos com influência política em detrimento de outros mais operosos, sendo necessário lembrar que tal prática vulnera não somente a garantia da independência judicial, mas, também, o pressuposto da imparcialidade, porquanto “Um juiz não é parcial porque tenha uma filiação política, mas porque depende, para sua nomeação, permanência, promoção e demissão de um partido político ou de um grupo de poder.”[2]
Frise-se que o merecimento é uma greta, uma fresta que submete o magistrado ao subjetivismo da cúpula burocrática do tribunal a que pertence: reconhecer o “merecimento” de alguém em detrimento de outrem jamais será um ato impessoal e objetivo. Ao contrário, trata-se de prática que submete o juiz a inadmissíveis “pressões dos órgãos colegiados da própria judicatura”, a exemplo da previsão normativa de obediência a precedentes como integrante do critério de merecimento, já repudiada pela AJD em várias ocasiões. Em julho de 2008, a AJD requereu que o CNJ adotasse as devidas providências contra a inclusão do número de sentenças confirmadas como critério para promoção por merecimento no âmbito do TJRJ. Mais recentemente, a AJD se manifestou contra a Resolução do CNJ que incluiu a “disciplina judiciária” e o “respeito às metas” como critério de promoção por merecimento. Os textos normativos impugnados elevam obediência a mérito e subjugam a independência judicial, uma vez que tais critérios de aferição de merecimento se constituem, na realidade, em mecanismo de controle das “decisões dos magistrados que, com a independência aniquilada, ficam vinculados às decisões da corte. Ora, aquele que decide de forma diferente da maioria não pode ser considerado um juiz menos ‘merecedor’, pois muitas vezes o que é ‘diferente’ hoje pode ser majoritário amanhã.”[3]
O aparente fracasso na aplicação de critérios objetivos de merecimento não consegue esconder sua funcionalidade: o merecimento como critério de promoção é um sucesso por atingir seu objetivo de produção de magistrados economicamente úteis e politicamente dóceis. É mecanismo que não se destina abertamente a eliminar o pensamento diferente, mas resulta na distinção entre magistrados dóceis e magistrados rebeldes, organizando a transgressão à autoridade dos precedentes em uma tática geral dos assujeitamentos. Trata-se, assim, de uma maneira de gerir (des)obediências; não propriamente impossibilitando a prolação de decisões contramajoritárias, mas, diferenciando entre magistrados obedientes e magistrados indóceis, termina por assegurar a economia geral da (in)dependência judicial.[4]
Observa-se, assim, que a própria existência do critério de merecimento atenta contra a independência do Poder Judiciário e a democratização da Magistratura, além de possibilitar a degradação das condições de exercício profissional, promovendo a subserviência e a competição entre os juízes, ao invés de propiciar a altivez e o desenvolvimento de vínculos de cooperação e solidariedade. Sendo assim, a AJD pugna pela extinção do critério de merecimento e a adoção do critério de antiguidade, que é o único critério adequado a concretizar as promessas constitucionais de garantia de independência e imparcialidade dos magistrados.
Em que pese a Constituição da República de 1988 prever o merecimento como critério de promoção dos magistrados, e enquanto não se promove a necessária reforma para eliminá-lo, a AJD entende possível que o CNJ e os Tribunais da República adotem um conceito negativo de merecimento, qual seja, a inexistência de fatos e situações que tornem o magistrado desmerecedor da ascensão funcional como, por exemplo, a inexistência de sanções disciplinares durante um determinado período de tempo antecedente à abertura do concurso de promoção. Dessa forma, garante-se, desde já, e sem a necessidade de reforma constitucional, que a antiguidade seja o único critério para a promoção dos magistrados, eis que se trata do único critério que pode garantir a impessoalidade na ascensão funcional, a imparcialidade e a independência judiciais.
Observa-se que já existem Tribunais cuja prática administrativa adota o conceito negativo de merecimento. No Tribunal Regional Federal da 1ª Região, apesar de sua Resolução PRESI/COGER n. 18/11, prever, como merecimento, inúmeras variáveis, inclusive “o respeito às súmulas do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores” como elemento aferidor do “desempenho” do magistrado, a prática administrativa observada nos últimos concursos de remoção foi, efetivamente, a adoção do conceito negativo de merecimento. No Tribunal Regional Federal da 1ª Região, tem-se adotado o seguinte procedimento nos concursos de promoção dos juízes federais substitutos: os candidatos a promoção se inscrevem em um mesmo momento para as vagas por merecimento e para as vagas por antiguidade, cuja disputa é aberta por um mesmo edital; a diferença é que os candidatos às vagas por merecimento apresentam mais documentos que os demais; mas, no final, o único critério realmente utilizado nas promoções é o da antiguidade, pois somente em casos gravíssimos de inadequação da conduta do magistrado é que o Tribunal veda sua promoção. Nos últimos anos, pôde-se observar que todas as promoções de juízes federais substitutos ocorreram de acordo com a ordem de antiguidade no exercício da jurisdição.
Por todas as razões acima expostas, a Associação Juízes para a Democracia requer a Vossa Excelência que o CNJ aperfeiçoe a Resolução CNJ n. 106, passando a adotar, aliado ao critério da antiguidade, o conceito negativo de merecimento, de modo a concretizar as garantias constitucionais da imparcialidade e da independência judiciais.
Aproveitando para lhe externar nossos protestos de consideração e respeito, aguardamos deferimento.
São Paulo, 30 de junho de 2014.
André Augusto Salvador Bezerra
Presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia
Célia Regina Ody Bernardes
Secretária do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia
[1] CICCACIO, Ana Maria (org.). AJD: 20 anos para a democracia. São Paulo: Dobra Editorial, 2011. p. 37.
[2] ZAFFARONI, Eugênio Raul. Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 99.
[3] CICCACIO, op. cit., p. 72.
[4] FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir: naissance de la prison. Paris: Gallimard, 2003. (Collection Tel, 225). Passim.