Nota de repúdio à conduta antidemocrática de apologia à tortura

A Associação Juízes para a Democracia – AJD, entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem por finalidade a luta pelo respeito incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito, vem apresentar sua manifestação de repúdio ao pronunciamento do Deputado Federal Jair Messias Bolsonaro (PSC-RJ) que, conforme amplamente divulgado pela mídia, no último domingo, 17 de abril de 2016, na sessão de votação sobre a admissão do processo de impedimento em face da Presidenta Dilma Vana Rousseff, justificou seu voto "Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo”.



Lamentavelmente é necessário lembrar que, durante a ditadura militar, o coronel Ustra chefiou o Doi-Codi, órgão de repressão do 2º Exército, em São Paulo, sendo responsável por 51 mortos, outros tantos desaparecidos e mais de 500 casos de tortura física e mental, conforme apontado pelo projeto Brasil Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo. Dentre esses, foi torturada a Presidenta Dilma Rousseff, então com 22 anos. Ao homenagear o algoz da Presidenta, o senhor Deputado traz à tona toda a dor das vítimas de tortura e de suas famílias.



São conhecidos e frequentes os ataques preconceituosos, misóginos e homofóbicos do senhor Deputado, inclusive já repudiados em nota anterior. Dessa vez, no entanto, ao fazer apologia ao mais famoso torturador dos anos de chumbo, foram extrapolados todos os limites da imunidade parlamentar, segundo a qual é livre a expressão do parlamentar no exercício de sua função. Essa imunidade é uma garantia constitucional fundamental à independência do Poder Legislativo. No entanto, não é, e não pode ser, absoluta, pois também a discussão política deve observar os princípios e fundamentos da Constituição da República, dentre eles a própria democracia, a dignidade da pessoa humana, a prevalência dos direitos humanos.



No caso, a apologia à tortura não ofendeu apenas a pessoa da Presidenta Dilma, muito embora o tenha sido em profundidade. A tortura não significa apenas obter informação; para ser "efetiva” ela deve ser um programa de destruição da personalidade da vítima, e deve ser sistemática e generalizada de maneira a espalhar o medo na população. Assim, a deplorável homenagem proferida pelo senhor Deputado atingiu não só a todas brasileiras e brasileiros, mas também à própria humanidade, num ato absolutamente degradante e antidemocrático.



Ironicamente, é fato que, somente no Brasil democrático há espaço para, em tese, um parlamentar dizer sem receios um absurdo de tal monta. O Estado Democrático de Direito e as garantias constitucionais dele advindas, consagrados pela Constituição Federal de 1988, ganharam força exatamente em razão da superação do modelo ditatorial até então vivido em nosso país. Tolerar a homenagem ao maior torturador da ditadura militar, inclusive assim reconhecido por decisão judicial (Processo nº 0347718-08.2009.8.26.0000), confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, significa, portanto, permitir o retrocesso da sociedade brasileira em relação a todos os princípios democráticos.



Não é demais destacar que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do célebre HC 82.424, quando manteve a condenação do editor Siegfried Ellwanger por crime de racismo, pois este havia publicado livros elogiando o nazismo e exaltando a discriminação contra os Judeus, enfatizou que a liberdade de expressão não é absoluta, mas possui limites jurídicos e morais, pois essa expressão não pode alcançar "em sua abrangência, manifestação de conteúdo imoral, que implicam em ilicitude penal”.



Nesse sentido, em nenhuma circunstância e sob nenhum pretexto, o discurso de um parlamentar – que não fala por si e nem apenas por seus eleitores, mas por toda a sociedade – pode contrastar com os fundamentos e objetivos da República, valores imprescindíveis a um Estado Democrático de Direito, tais como a dignidade da pessoa humana (artigo 2°, III, CF) e a prevalência dos direitos humanos (artigo 4°, II, CF). Ademais, a não submissão à tortura é direito fundamental previsto no artigo 5º, III, CF.



Mais uma vez, é evidente que a imunidade material dos congressistas por suas opiniões e palavras (artigo 55, II, § 1°, CF) não pode ser utilizada como salvaguarda a práticas atentatórias a valores caros ao Estado Democrático de Direito, sendo que o exercício de tal garantia encontra limitação na própria Constituição Federal, ao estabelecer ser incompatível com o decoro parlamentar "o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional”, (artigo 55, § 1°, CF), bem como no artigo 231, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, e artigos 4°, I e 5°, III, do Código de Ética e Decoro Parlamentar daquela Casa.



A Associação Juízes para a Democracia manifesta sua repulsa à declaração antidemocrática de apologia à tortura e de ataque pessoal à Presidenta Dilma Rousseff, reforçando seu posicionamento de integral solidariedade e respeito às vítimas de tortura e suas famílias, que se viram aviltadas em sua dignidade pela manifestação parlamentar.



São Paulo, 20 de abril de 2016.



A Associação Juízes para a Democracia