Relatório sobre a situação da independência judicial e da liberdade de expressão dos juízes no Brasil

Relatório sobre a situação da independência judicial e da liberdade de expressão dos juízes no Brasil para o Universal Periodical Review, apresentado pela Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade formada por juízes brasileiros há 25 anos, que tem por finalidade a democratização do Poder Judiciário e a implementação dos Direitos Humanos.

A Associação Juízes Para a Democracia (AJD) vem, por meio deste, manifestar-se no processo da Universal Periodical Review (UPR - Revisão Periódica Universal) do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU, apresentando relatório sobre a situação da independência judicial e da liberdade de expressão dos juízes brasileiros.



I - Situação jurídica



1.A Constituição brasileira de 1988 contém projeto de instituição de democracia de alta intensidade fundada na promessa de construção de sociedade livre, justa e solidária, estampado no seu artigo 3º, I. Sob tal projeto, tem-se a instituição de um Poder Judiciário dotado de autonomia e independência, enquanto Poder de Estado.

2. Nesse sentido, dispõe o artigo 2o, da Constituição: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Determina ainda o artigo 95 que os juízes gozam das garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio. Por fim, o artigo 60, § 4o, III estabelece que não pode ser deliberada a proposta de emenda constitucional “tendente a abolir: [...] a separação de poderes”.

3. A Constituição legitima, assim, como cláusula pétrea (artigo 60), a presença de uma atividade jurisdicional autônoma e independente perante o Executivo e Legislativo, dotada da possibilidade de anular os atos praticados pelas demais funções estatais (artigo 2o).

4. Legitima, igualmente como cláusula pétrea, a autonomia e independência de cada magistrado – desde Juiz Substituto, recém-ingresso na carreira da magistratura, a um ministro da cúpula do Poder, o Supremo Tribunal Federal – perante o Executivo, o Legislativo e o próprio tribunal a que se submete administrativamente e no aspecto correcional. Tem-se, portanto, a independência funcional, garantindo-se que cada juiz possa decidir conforme sua convicção jurídica, livre de pressões dos demais poderes e de seu tribunal: por isso, os juízes somente podem ser demitidos por decisão judicial definitiva, não podem ser transferidos em razão de suas decisões e não podem sofrer redução de vencimentos (artigo 95).

5. Nesse ponto, a independência do Judiciário, consagrada constitucionalmente, caminha em paralelo a outro valor democrático: o pluralismo. Na atividade jurisdicional, o livre debate de ideias dá-se pela diversidade de entendimentos manifestados em decisões proferidas.

6. Em termos constitucionais brasileiros, portanto, garantir a independência funcional significa garantir o pluralismo de ideias no Judiciário. Significa, consequentemente, garantir a liberdade de expressão aos magistrados em geral, possibilitando que se pronunciem, em igualdade de condições aos demais brasileiros, sobre os diversos temas discutidos na sociedade, tanto no âmbito do exercício das funções quanto no âmbito cidadão.

7. Cumpre-se, assim, outro dispositivo da Constituição, o artigo 5o, IX, que consagra a livre a expressão, independente de licença ou censura.

8. Todas essas garantias encontram-se em conformidade aos Princípios Básicos Relativos à Independência da Magistratura, endossados pela Assembleia Geral das Nações Unidas, nas resoluções 40/32 e 40/146, de 1985[1]: “a independência da magistratura será garantida pelo Estado [...]” (item 1); “não haverá quaisquer interferências indevidas ou injustificadas no processo judicial [...]”(item 4); “[...] os magistrados gozam, como os outros cidadãos, das liberdades de expressão, convicção, associação e reunião” (item 8) e “a inamovibilidade dos juízes, nomeados ou eleitos, será garantida até que atinjam a idade de reforma obrigatória ou que expire o seu mandado, se existir tal possibilidade” (item 11).



II - Características do Poder Judiciário



9. O Poder Judiciário brasileiro é composto por mais de 16 mil juízes, tendo em tramitação mais de 100 milhões de processos. Conforme censo realizado entre os juízes, 14% dos magistrados declararam-se pardos; 1,4% identificaram-se pretos; 0,1%, indígenas e 84,5% declararam-se brancos[2].

10. O Brasil é uma federação (artigo 1o, Constituição), o que se reflete no Poder Judiciário. Há, assim, juízes e tribunais dos Estados-membros da federação bem como juízes e tribunais federais. As justiças estaduais e federais são submetidas, nacionalmente, ao controle pelo mesmo órgão externo ao Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça.

11. De aproximadamente 16 mil juízes do Judiciário brasileiro, mais de 11 mil estão nas justiças estaduais (isto é, dos Estados-membros da Federação). Estas são compostas de tribunais estaduais autônomos (chamados “tribunais de justiça”), que vinculam administrativamente e correcionalmente os juízes estaduais (diante da independência funcional consagrada constitucionalmente, tal vinculação não pode influir no teor das decisões). O controle administrativo é realizado pelas presidências dos tribunais e o controle correcional, pelas corregedorias internas.

12. Em termos populacionais, os dois maiores Estados-membros brasileiros consistem em São Paulo e Rio de Janeiro. No Poder Judiciário de São Paulo tramitam mais de 20 milhões de processo para cerca de 2500 juízes; no Poder Judiciário do Rio de Janeiro há mais de 10 milhões de processo para cerca de 800 juízes.



III - Exemplos de violação à independência e à liberdade de expressão de juízes



13. Sem embargo da independência funcional e da liberdade de expressão atribuída aos magistrados, há frequentes caso de violações a tais garantias, perpetradas pelos tribunais que os vinculam administrativamente e em termos correcionais. Neste relatório, serão citados, a titulo de exemplificação, quatro casos recentemente ocorridos nos dois maiores integrantes do sistema de justiça do Brasil: o Poder Judiciário de São Paulo e do Rio de Janeiro.

14. Primeiro caso (processo n. 2012/00034923): em março de 2012, magistrados de 2ainstância pediram a instauração de processo administrativo disciplinar em face dos juízes do Tribunal de Justiça de São Paulo Kenarik Boujikian, José Henrique Torres, Dora Aparecida Martins e Roberto Corcioli Filho porque estes assinaram manifesto para que uma operação repressiva do governo estadual (reintegração de posse) contra uma comunidade carente (conhecida como “Pinheirinho”) fosse denunciada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo não instaurou o processo, mas assim decidiu acolhendo parecer contendo advertências aos mencionados juízes: consta no parecer que “teria sido melhor que os Magistrados representados não tivessem assinado o indigitado manifesto”; que Constituição brasileira “[...] não está a dizer que esta liberdade de expressão, que se extrai da constitucionalmente assegurada livre manifestação de pensamento, possa desprezar, no caso específico daqueles que compõem o Poder Judiciário, nos termos do art. 92, VII, da Carta, alguma espécie de baliza […]”; o parecer ainda reclama que os referidos juízes fizeram “questão de se identificar como Juízes de Direito do Estado de São Paulo” e que “acabaram colocando-se, gratuitamente, sob suspeição, acaso, no futuro, pelos estreitos caminhos da ironia, venham a ser competentes para conhecer algum processo judicial cuja raiz esteja presa ao ‘caso Pinheirinho’”.

15. Percebe-se que, em razão de exercerem a liberdade de expressão, consagrada constitucionalmente e pela ONU, os juízes paulistas terminaram sendo advertidos pelo órgão correcional do tribunal a que se encontram vinculados, em que pese a aparente absolvição. Isso equivale a sanção administrativa de admoestação, apta a intimidá-los e a intimidar outros juízes conhecedores do caso.

16. Segundo caso (processo n. 72.379/2013): em maio de 2013, o juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo Roberto Luiz Corcioli Filho sofreu pedido de processo administrativo assinado por membros do Ministério Público porque estaria decretando a soltura de custodiados. Por esta razão, por decisão da presidência do referido tribunal, o juiz foi afastado da jurisdição criminal da Comarca de São Paulo, não podendo retornar nem mesmo quando o pedido foi arquivado.

17. Nota-se que o juiz teve sua inamovibilidade violada pelo exercício da independência funcional. O Conselho Nacional de Justiça determinou o retorno do magistrado à jurisdição criminal[3], mas esta decisão foi suspensa pela suprema corte brasileira. Cansado, o magistrado pediu sua remoção para outra Comarca.

18. Terceiro caso (processo n. 2015-166722): em setembro de 2015, o Juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro André Vaz Porto Silva sofreu reclamação disciplinar por membros do Ministério Público, que se insurgiam contra decisões do magistrado de absolver sumariamente réus acusados da prática de chamados crimes de bagatela, a pretexto de que o fazia em momentos processuais inadequados; significa dizer que as violações funcionais apontadas contra o magistrado estariam no teor das suas decisões, produto do exercício da independência funcional, impugnáveis pelos recursos previstos na lei brasileira. Contudo, a Corregedoria do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro deu prosseguimento à reclamação disciplinar, determinando a oitiva dos membros do Ministério Público que assinaram a reclamação, de agentes da polícia e de representante de associação de comerciantes do Município em que atua.

19. Portanto, o referido juiz sofre os constrangimentos inerentes à exposição pública de um processo administrativo por exercer o dever de decidir conforme sua convicção jurídica.

20. Quarto caso (processo n. 2015/00122726): em agosto de 2015, a Juíza Kenarik Boujikian, do Tribunal de Justiça de São Paulo, sofreu pedido de processo administrativo assinado por magistrado de 2ainstância porque determinou, monocraticamente, a soltura de onze réus; a juíza também exerce jurisdição em 2a instância, onde magistrados decidem monocraticamente (em casos urgentes) ou em colegiado (isto é, em conjunto com outros julgadores). Em sua defesa, a magistrada demonstrou que determinou monocraticamente a soltura porque os réus já haviam cumprido suas penas, tratando-se, pois, de matéria urgente; contudo, em que pese tal circunstância, referido tribunal instaurou processo administrativo contra a magistrada, atualmente em tramitação.

21. Percebe-se que a juíza é constrangida pelo processo administrativo porque, exercendo a independência funcional, entendeu que a prisão indevida de pessoas exigia atuação imediata, que não poderia esperar a mais demorada decisão do órgão colegiado.



IV - Conclusões e recomendação sugerida



22. Os exemplos citados revelam a instauração de processos administrativos contra magistrados em razão do exercício da independência (isto é, do teor de suas decisões ou das suas práticas cidadãs); outros casos revelam simples requerimentos de instauração de processos formulados perante corregedorias internas dos tribunais, que, contudo, não foram arquivadas de plano, como se deveria, por também fundadas no teor de decisões ou de pronunciamentos. Em algumas dessas hipóteses, há decisões que, apesar de isentarem os juízes de responsabilidade administrativa, não deixam de conter repreensões contra os magistrados, configurando verdadeira penalidade de advertência e intimidação contra os membros da magistratura.

23. As perseguições, portanto, não ocorrem apenas por condenações administrativas. O simples dever de responder a procedimentos disciplinares é apto, por si só, a causar constrangimentos no próprio juiz acusado e em outros magistrados intimidados com a apuração.

24. O Supremo Tribunal Federal brasileiro já reconheceu que o processo penal contém uma série de atos que configuram verdadeiras cerimônias degradantes[4]. Os procedimentos investigatórios disciplinares também dispõem de tais cerimônias, porque podem resultar na aplicação de uma sanção, tal como sucede no processo penal.

25. Os casos citados como exemplos revelam também a presença de um elemento comum: as violações à independência funcional e à liberdade de expressão atingem magistrados que, no âmbito do seu dever de decidir e no exercício da cidadania, atuam em favor das liberdades públicas e do controle ao poder de punir do Estado.

26. Trata-se, portanto, de perseguições ideológicas. O que se tem é a aplicação de constrangimentos contra magistrados que, fazendo uso de uma opção ideológica na utilização dos direitos em discussão (em decisões ou no mero exercício da liberdade de expressão), sustentam a imposição de limites rigorosos ao Estado.

27. Lembra-se que o Brasil ostenta a quarta maior população carcerária do mundo, sendo que 38% dos presos não sofreram condenação definitiva. Grande parcela dos encarcerados é negra: a taxa de encarceramento dos negros alcança 292 por 100 mil habitantes; a taxa de encarceramento de brancos é de 191 por 100 mil habitantes[5].

28. Portanto, a perseguição dá-se contra juízes que, em suas decisões ou na liberdade de expressão, atuam contra uma política de Estado que atinge a população negra, isto é, a população que, como reconhecido em relatório sobre minorias, publicado pelas Organizações das Nações Unidas, ocupa 70,8% da população brasileira que vive sob a extrema pobreza[6].

29. Diante de todo o exposto, a fim de garantir a independência funcional e a liberdade de expressão de juízes, inerente à independência do Poder Judiciário, evitando-se perseguições que, ao final, prejudicam a população mais pobre do país, a Associação Juízes para a Democracia sugere a publicação da seguinte recomendação ao Brasil:

Respeitar a independência funcional e a liberdade de expressão dos juízes e das juízas, prerrogativas irrenunciáveis da jurisdição, tal como disposto na Constituição brasileira, abstendo-se imediatamente da instauração procedimentos de investigação, de admoestações informais ou qualquer espécie de constrangimento, em razão do livre exercício da jurisdição.








[1] Disponível em: https://www.unodc.org/documents/justice-and-prison-reform/projects/UN_Standards_and_Norms_CPCJ_-_Portuguese1.pdf

[2] Disponível em: http://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/censo-do-poder-judiciario

[3]Pedido de providências n. 0001527-26.2014.2.00.0000 – Conselheira Gisela Gondin Ramos.

[4] Supremo Tribunal Federal, 2ª Turma. Habeas Corpus 88.914-0 São Paulo, rel. Ministro Cezar Peluso, j. 14/08/2007.

[5]Fonte: Mapa do Encarceramento da Secretaria-Geral da Presidência da República e da Secretaria Nacional de Juventude., 2015. Disponível em: .

[6]Fonte: https://nacoesunidas.org/brasil-violencia-pobreza-e-criminalizacao-ainda-tem-cor-diz-relatora-da-onu-sobre-minorias/