A AJD emite nota onde se posiciona contra o PLC 27/2017, que tramita no Congresso, e que versa sobre a previsão de crime de abuso de autoridade. A associação se manifesta em defesa da liberdade de expressão e da independência judicial da magistratura.
O projeto, constante do pacote conhecido como Dez Medidas contra a Corrupção, foi aprovado em junho pelo Senado, e agora volta à Câmara dos Deputados para a análise final.
Para a AJD, o PLC 27/2017 representa um retrocesso às garantias individuais conquistadas com o passar do tempo ao impor censura à liberdade de expressão dos magistrados, proibir a livre associação da categoria e realizar um verdadeiro ataque à independência judicial por meio de responsabilização dos agentes públicos além das modalidades já previstas em lei.
Leia a íntegra da nota:
No contexto de discussão e tramitação do Projeto de Lei da Câmara (PLC) 27 de 2017, que versa sobre a previsão de crime de abuso de autoridade, a Associação Juízes para a Democracia (AJD) vem manifestar-se contrariamente ao projeto e em defesa da liberdade de expressão e da independência judicial da magistratura.
O pilar sobre o qual se assenta a proposta liberal do Estado de Direito e da própria democracia é constituído pela noção de que o poder do Estado é limitado pelo conjunto das leis que o regem, em especial a Constituição e que dela devem constar garantias fundamentais do cidadão contra o Estado.
É sob este corolário que se sustenta a noção de abuso de autoridade como todo ato perpetrado por autoridade estatal que fere os direitos subjetivos previstos na Constituição. Conceito, portanto, de grande valor para qualquer regime que se repute democrático, uma vez que pretende a proteção do cidadão contra o arbítrio estatal. O artigo 3º da Lei no 4898/65, aliás, conceitua o abuso de autoridade como todo ato de autoridade que viola o direito subjetivo.
Contraditoriamente, essa lei, sancionada na vigência do regime de ditadura civil-militar, possui maior densidade democrática do que o PLC 27 de 2017, que ora tramita nas casas legislativas. O artigo 8º do projeto traz novo conceito de crime de abuso de autoridade dos magistrados. Inclui entre as hipóteses “IX - expressar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos ou em obras técnicas ou no exercício do magistério”.
O atual projeto de lei é marcado pela reprodução do texto legal da Lei Orgânica da Magistratura (LOMAN), também do período de ditadura civil-militar, que além de não se compatibilizar com as garantias trazidas pela Constituição de 1988, possuía, no seu bojo, a nítida intenção de conformar o Poder Judiciário à condição de mero aplicador de leis. A Constituição de 1988, além de trazer garantias fundamentais como a liberdade de expressão e de associação, que confrontam as disposições do projeto de lei de abuso de autoridade, confere ao Poder Judiciário o poder-dever de garantir a eficácia desses e dos demais direitos fundamentais, o que exige de seus membros uma atuação independente, que só é possível no contexto em que são respeitados seus direitos subjetivos.
Do Direito à Liberdade de Expressão
A livre manifestação do pensamento - artigo 5º, inciso IV-, e a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença - artigo 5º, IX-, ambos da Constituição, constituem condição de possibilidade do exercício da cidadania em um Estado Democrático de Direito.
O direito à liberdade de expressão guarda ainda proteção na esfera internacional através de acordos incorporados ao ordenamento jurídico interno brasileiro, notadamente a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que já inicia em seu artigo 1º referindo que é obrigação de respeitar os direitos: “Os Estados- partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social”.
O Artigo 13 do Pacto de San Jose da Costa Rica estabelece o direito à liberdade de pensamento e de expressão, que “inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha”, direito que “não pode estar sujeito à censura prévia”, nem a restrições “por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões”.
A garantia da liberdade de expressão, intrínseca a qualquer regime democrático, constitui barreira à previsão de criminalizar a expressão da opinião de juízas e juízes, por qualquer meio de comunicação sobre processo pendente de julgamento, seja este do próprio juiz ou de outro, tal como propõe o projeto de lei.
A qualidade de magistrado não deve, e nem mesmo pode, anular sua condição de cidadão, sujeito de direitos. Em verdade, o magistrado possui especial vínculo com a condição de cidadania, face ao seu dever de respeito e defesa da ordem democrática, razão maior para lhe garantir a plenitude dos direitos individuais.
Os limites à liberdade de expressão, que por certo não é absoluta, já possuem previsão constitucional e alargá-los, em especial através da proposta de criminalização, viola a garantia constitucional e internacional de exercício da cidadania.
Ao configurar como abuso de autoridade a emissão de opinião sobre qualquer tema que esteja em pauta no Poder Judiciário, o texto do PLC 27 de 2017 reproduz a imagem do magistrado encastelado em sua unidade, distante da população e de suas necessidades, inacessível em seu conteúdo, pois somente a este fim serve o Juiz que se omite do direito e dever de defesa da ordem democrática.
As obrigações do magistrado quanto à dignidade do cargo, independência e imparcialidade devem balizar sua liberdade de expressão, sem, todavia, anular o direito individual, tal como expresso nos Princípios de Bangalore para conduta Judicial e nos Principio Básicos para a Independência Judicial da Organização das Nações Unidas, que entre outras coisas asseveram que “é a confiança do público na independência das cortes, na integridade de seus juízes e na imparcialidade e eficiência de seus processos que sustenta o sistema judiciário de um país”. E definem: “De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os membros do Judiciário são como os outros cidadãos quanto ao direito à liberdade de expressão, crença, associação e reunião, com a condição, entretanto, de que, ao exercer tais direitos, os juízes sempre se comportarão de modo a preservar a dignidade de seus ofícios e a imparcialidade e independência do Judiciário”. Ao explicar a importância do direito pleno à liberdade de expressão, o documento ressalta que um juiz necessariamente “se exporá às forças formadoras de opinião e poderá até mesmo formar opiniões como uma consequência da exposição a amigos, colegas e à mídia. De fato, o conhecimento do público é essencial para a competente administração da justiça. Um juiz não é meramente enriquecido pelo conhecimento do mundo real, a natureza da lei moderna requer que o juiz ‘viva, respire, pense e tome parte de opiniões no mundo’. Hoje a função do juiz se estende para além da resolução da disputa. Cada vez mais, o juiz é convidado a se dirigir a temas de largo valor social e direitos humanos e a decidir temas moralmente controversos em uma sociedade crescentemente pluralística. Um juiz desatualizado é menos provável de ser eficaz” (https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil/Topics_corruption/Publicacoes/2008_Comentarios_aos_Principios_de_Bangalore.pdf).
A previsão do PLC 27 de 2017 avança contra esses parâmetros internacionais de garantia da liberdade de expressão da magistratura de forma evidente, desrespeitando também a ordem constitucional vigente, seja pela presunção de que, ao se manifestar publicamente sobre qualquer tema sub judice, estar-se-ia violando a imparcialidade e independência, seja por criminalizar a livre manifestação sobre matéria de direito que não está sob sua jurisdição, quando evidentemente tal manifestação não guarda relação alguma com a necessária imparcialidade.
Ao contrário de avançar em relação ao diploma da LC nº 35 de 1979 (Lei Orgânica da Magistratura), já defasado em relação à Constituição, o PLC 27 de 2017 retrocede, ao criminalizar o exercício da liberdade de expressão de magistradas e magistrados. Importa destacar que conhecer a/o magistrada/o e suas opiniões quanto aos temas de relevância pública fazem do espaço institucional do Judiciário uma arena de debates mais transparente e ampla, o que representa verdadeiro avanço, inclusive, quanto ao controle social da atividade judicial e à observância do respeito à imparcialidade.
Direito à Liberdade de Associação
Nos termos do PLC 27 de 2017, constitui abuso de autoridade a participação de juízas e juízes em cargo técnico ou de direção de quaisquer sociedades, associações ou fundações, ressalvadas as entidades de classe. A proposta legislativa novamente esbarra em valioso direito para à democracia: a liberdade de associação, reproduzindo o dispositivo do artigo 36, II da LC nº 35 de 1979.
Encontra-se prevista no artigo 5º, inciso XVII, da nossa Constituição, a garantia da liberdade de associação, assim como no artigo 16 do Pacto de San José da Costa Rica, nos seguintes termos:
“Todas as pessoas têm o direito de associar-se livremente com fins ideológicos, religiosos, políticos, econômicos, trabalhistas, sociais, culturais, desportivos ou de qualquer outra natureza”.
Nos termos já mencionados dos Princípios de Bangalore para conduta Judicial e nos Princípios Básicos para a Independência Judicial da Organização das Nações Unidas reputa-se que juízas e juízes devem ter garantidos os direitos de associação como corolário da democracia. Estabelece expressamente que, de “acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os membros do Judiciário são como os outros cidadãos quanto ao direito à liberdade de expressão, crença, associação e reunião, com a condição, entretanto, de que, ao exercer tais direitos, os juízes sempre se comportarão de modo a preservar a dignidade de seus ofícios e a imparcialidade e independência do Judiciário. Os juízes serão livres para criar e se juntar a associações de juízes ou outras organizações para representar seus interesses, promover seus treinamentos profissionais e proteger sua independência judicial”. Note-se que a previsão da LOMAN, ora reproduzida no PLC 27 de 2017, restringe a garantia de associação em relação aos termos definidos pela norma de direito definida pela Organização das Nações Unidas.
A liberdade de associação para juízas e juízes, assim como para as/os demais cidadãs/ãos está intrinsecamente relacionada à garantia da liberdade de expressão. Com efeito, através da associação, o indivíduo se fortalece para o exercício de seus direitos civis e políticos, sendo de particular importância a garantia associativa, em especial, quando reduzida a densidade do regime democrático, em que o risco de expressar-se individualmente aumenta de modo exponencial, tornando o cidadão alvo fácil de retaliações, perseguições e mesmo intervenção em sua vida particular ou profissional.
Da ausência de Taxatividade e Violação à Independência Judicial
Nos termos dos Princípios Básicos para a Independência Judicial da Organização das Nações Unidas: “O Judiciário deve decidir sobre as questões a ele trazidas de forma imparcial, com base e concordância com a lei, sem nenhuma restrição, influência imprópria, induzimento, pressão, ameaça ou interferência, direta ou indireta de nenhuma parte ou por qualquer razão”.
A independência judicial é elementar para o regular exercício da democracia, garantindo à magistratura e, especialmente, ao cidadão sob sua jurisdição, o direito ao julgamento sem interferência ou pressão seja de natureza, política ou econômica. O papel do Poder Judiciário, na aplicação da constituição e das leis, não pode curvar-se aos interesses de natureza política, econômica ou mesmo ao apelo popular em desrespeito à ordem constitucional, o que, consequentemente, requer a existência do aparato institucional e normativo consistente para barrar as pressões que, naturalmente, tentam se impor.
Em desacordo com o basilar princípio do Direito Penal, que dispõe que os crimes devem ser taxativos na descrição da conduta tipificada, o projeto de lei que versa sobre o abuso de autoridade de magistradas/os apresenta tipos penais descritos através de cláusulas abertas como “evidente motivação político-partidária” “proceder de forma incompatível com honra, dignidade e decoro das funções”. A ambiguidade das expressões previstas nos tipos penais comporta a subsunção a uma infinidade de condutas, criando fácil caminho para a utilização desta norma como meio de pressão e perseguição contra magistradas e magistrados que enfrentam interesses contrários à Justiça, ferindo de morte a independência judicial.
Por fim, já existe no ordenamento jurídico as previsões legais para situações em que membros do Poder Judiciário atuam em desacordo com os deveres do cargo seja em âmbito processual, no qual se reputam inexistentes os atos praticados pelo juiz impedido ou que age com parcialidade; seja na esfera da responsabilização administrativa, civil e mesmo penal.
A AJD, ciente de sua responsabilidade social e democrática, vem denunciando, de forma crítica e construtiva o uso abusivo, inconstitucional e ilegal do processo penal com interferência no cenário político (lawfare) contra certos partidos e líderes políticos, com pesada interferência no processo democrático brasileiro. No contexto específico do PLC 27, entretanto, os dispositivos, da forma como redigidos, não se prestarão ao controle dessa prática. Ao contrário, o projeto de lei que versa sobre o abuso de autoridade não representa uma maior proteção para o cidadão diante das violações ao regular exercício da magistratura – matéria especialmente cara à população brasileira no momento em que a imprensa destaca denúncias de que o atual Ministro da Justiça, quando juiz, teria infringido o dever funcional, atuando de forma parcial e orientada por interesses de natureza política.
Alegando atender o clamor popular, o referido projeto de lei fixa os contornos de uma proposta em que juízas e juízes são silenciadas/os e fragilizadas/os na sua atuação, quando o aprofundamento da democracia exige o oposto.
A Associação Juízes para a Democracia, coerente com o histórico de luta pela cidadania e pela independência da magistratura, manifesta-se, portanto, contrariamente à aprovação desse projeto, reputando-o verdadeira tentativa de mordaça e, pois, de comprometimento das possibilidades de convívio social democrático.
A AJD exorta os parlamentares à observância das normas constitucionais e internacionais que regem os parâmetros de garantia da independência judicial e, por consequência, a rejeitarem integralmente o texto do PLC 27 de 2017.
Brasil, 23 de julho de 2019.
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Foto: Pedro França/Agência Senado