As mortes violentas, por feminicídio, na véspera do Natal

O Natal de 2020, no Brasil, não será lembrado apenas pelas reuniões familiares, pela troca de presentes ou por momentos de recolhimento e reflexão. Será também lembrado pelo acirramento da violência  de gênero.

Em Jaraguá do Sul, SC, Thalia Ferraz, de 23 anos, foi assassinada por seu ex-companheiro na frente de seus familiares, entre eles os sobrinhos de 14 e 8 anos, na noite de quinta-feira, 24 de dezembro.

Na Zona Norte do Recife, na localidade de Alto do Mandu, Anna Paula Porfirio dos Santos, de 45, morreu após receber dois tiros de seu marido, logo após a ceia de Natal.

Viviane Vieira do Amaral, 45 anos, foi morta a facadas, em plena rua, na véspera de Natal, na frente de suas 3 filhas pelo ex-companheiro, mesmo sob os gritos das crianças que imploravam para que parasse as agressões.

Viviane, Thalia e Anna Paula, a primeira morava no Rio de Janeiro, a segunda em Jaraguá do Sul, em Santa Catarina, e a última em Recife, Pernambuco.

O que há em comum nessas três mulheres? A morte. As três foram brutalmente assassinadas, por homens com quem um dia partilharam seus afetos, seu amor, suas vidas.

Três mulheres de regiões diferentes do Brasil, de classes sociais diferentes mas unidas pelo gênero, o feminino, esse gênero que secularmente tem sido oprimido pela força patriarcal que normaliza nas estruturas sociais uma superioridade masculina e reforça o machismo que objetifica as mulheres, fazendo homens se sentirem senhores e proprietários dos corpos, dos desejos e vontades das mulheres, sentindo-se no direito de decidir inclusive sobre a vida e a morte das mulheres.

O feminicídio que silenciou para sempre Viviane, Thalia e Ana Paula , na véspera do Natal, é um crime de ódio ao Ser Mulher.

Nesse sentido, o Natal de 2020, marcado pela pandemia da Covid-19 e a necessidade de isolamento social, não apenas repetiu as tragédias de tantos Natais passados, mas agudizou suas manifestações.

Dados reunidos no Relatório “Um vírus, Duas Guerras” demonstram que,  desde o início da pandemia de coronavírus, ao menos 497 mulheres perderam suas vidas. Foi um feminicídio a cada nove horas entre março e agosto, com uma média de três mortes por dia. São Paulo, com 79 casos, Minas Gerais, com 64, e Bahia, com 49, foram os estados que registraram maior número absoluto de casos no período. Há elementos que permitem afirmar a subnotificação e mesmo a resistência em classificar homicídios de mulheres como feminicídios, em muitos Estados.

Esses três casos, portanto, são representativos de um fenômeno muito maior.

Quem são autores de feminicídio?

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 89,9% dos feminicídios o autor é companheiros ou ex companheiro da vítima e em 58,9 % o crime ocorre em uma residência.

As vítimas de feminicídio no ano de 2019 66, 6 % eram negras e 33, 1% eram brancas e 0,3% amarela.

Esses dados dizem muito sobre esse crime que viola gravemente os direitos humanos das mulheres e uma delas é que numa sociedade fundada pela ideologia do patriarcado não há lugar seguro para as mulheres e que a violência de gênero está interseccionada  com outros marcadores sociais com raça e classe.

O Brasil além de ser signatário de vários Tratados e Convenções de Direitos Humanos das Mulheres, como a CEDAW- Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher e a Convenção de Belém do Pará, tem uma excelente legislação interna para o enfrentamento à violência contra a mulher a exemplo da Lei n. 11.340/2006 - Lei Maria da Penha e a Lei n. 13.104/2015 conhecida como a Lei do Feminicídio, ainda é o 5o país do mundo onde mais se matam mulheres por serem mulheres.

As leis são necessárias e importantes para punir os autores de violências, mas elas por si só não desconstroem uma cultura machista que naturaliza a violência e a opressão às mulheres.

“As leis não bastam . Os lírios não nascem das leis” (Carlos Drumond de Andrade).

Assim, é preciso refletir profundamente sobre a violência que retira a vida de tantas e tantas mulheres brasileiras.

Mais que refletir, é preciso cumprir compromissos assumidos pelo Brasil na ordem internacional. Nesse sentido, há tarefas inadiáveis que o Poder Judiciário deve cumprir.

O sucateamento de estruturas voltadas à plena execução dos parâmetros protetivos estabelecidos pela Lei Maria da Penha impede que políticas públicas alcancem os resultados devidos e esperados. A asfixia orçamentária dessas estruturas não é uma questão nova.

Os esforços empreendidos no passado recente, de efetivação do texto da Lei Maria da Penha precisam ser retomados.

Ainda que alguns passos tenham sido dados, com a capacitação de juízes e juízas sobre direitos fundamentais das mulheres, jornadas de estudos e introdução de instrumentos de monitoramento de implementação da Meta 8 (fortalecimento da Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica), é preciso ir além.

A Resolução 255 do CNJ, que determina a todos os Tribunais a adoção de medidas com vistas à criação de Comitês e Grupos de Trabalho, com a finalidade de fomentar uma cultura organizacional mais equitativa em matéria de gênero, não foi plenamente implementada.

Não é possível pensar em políticas públicas como mero “check list”.

O enfrentamento da violência de gênero, como autêntico crime de ódio contra mulheres, requer a tomada de consciência acerca de seu caráter estrutural, sistêmico e que se perpetua nas mentalidades das instituições. A desconstrução de relações patriarcais de gênero exige esforço contínuo e ininterrupto.

Mais que medidas sazonais, a violência de gênero deve ser compreendida como verdadeira prioridade. 

 

Até quando choraremos as mortes de tantas Thalias, Annas Paulas, Vivianes e tantas, tantas mais, todos os dias do ano?

 

Organizado por Cláudia Dadico