Nota Pública - Contra a tese do "marco temporal" na delimitação das terras indígenas

A AJD - Associação Juízes para a Democracia divulgou na noite desta segunda-feira, 07, nota pública contra a tese do "marco temporal", que pode definir o futuro das terras indígenas no Brasil. Entre os dias 11 e 18 de junho, o assunto, no bojo do Recurso Extraordinário Geral número 1.017.365, será apreciado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).  A vitória da tese, defendida no Parecer 001 da Advocacia Geral da União (AGU), pretende limitar os direitos dos povos indígenas apenas às porções de terras que estavam sendo ocupadas até 5 de outubro de 1988 - data da promulgação da Constituição Federal.

 A Suprema Corte poderá, assim, dar uma solução definitiva aos conflitos envolvendo terras indígenas. Pelo menos 27 terras indígenas tiveram seus processos de demarcação devolvidos da Casa Civil e do Ministério da Justiça para a Funai com base no Parecer 001. 

"A tese do marco temporal desconsidera que os deslocamentos forçados e a sistemática invasão e expropriação dos territórios – não raro sob o beneplácito do Estado brasileiro – são fatores impeditivos a que os indígenas estejam na plena posse de seus territórios", afirma o texto da nota da AJD.

"A AJD se une à voz dos povos indígenas para rememorar sua luta de mais de quinhentos anos, e conclama ao STF que, neste momento tão difícil de nossa história, mais uma vez cumpra seu papel de guardião da Constituição Federal e promotor dos Direitos Humanos para afastar qualquer medida política ou judicial que redunde em eliminação ou redução de direitos dos povos indígenas", conclui a nota.

Abaixo, a íntegra da nota.

 

AJD - NOTA PÚBLICA

CONTRA A TESE DO “MARCO TEMPORAL”

A Associação Juízes para a Democracia (AJD) vem a público manifestar profunda preocupação com o julgamento que ocorrerá entre os dias 11 e 18 de junho de 2021, no Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal em que será decidida, no bojo do Recurso Extraordinário com Repercussão Geral nº 1.017.365, a denominada tese do “marco temporal”, por meio da qual se pretende limitar os direitos dos povos indígenas apenas às porções de terras que estavam sendo ocupadas até 5 de outubro de 1988.

A referida tese desconsidera a forma peculiar de ocupação de territórios indígenas, mais precisamente, a composição geoespacial dos territórios e as múltiplas destinações de suas parcelas, já que equipara a posse civil à posse indígena, o que é incompatível com a Constituição Federal de 1988, que adota a teoria do Indigenato, ao garantir aos povos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” (art. 231), bem como com o art. 14 da Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil, que determina a salvaguarda do uso global dos territórios, para além da posse da casa e dos roçados, respeitando-se os modos peculiares de ocupação da terra, de acordo com suas atividades tradicionais, dando especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.

Desde a chegada do europeu ao Brasil, esses povos são vítimas de um genocídio que tem na expropriação de seus territórios um de seus eixos de ação.

A tese do marco temporal desconsidera que os deslocamentos forçados e a sistemática invasão e expropriação dos territórios – não raro sob o beneplácito do Estado brasileiro – são fatores impeditivos a que os indígenas estejam na plena posse de seus territórios.

Dessa forma, legitima e naturaliza as várias violências que resultaram na separação dos povos de seus territórios tradicionais.

Ignora, também, que a posse indígena é muito mais rica e profícua que a decorrente da propriedade privada, e que as presentes e futuras gerações dela dependem para que possamos ter assegurado o direito ao meio ambiente ecologicamente sadio.

Nesse aspecto, a adoção, pelo Judiciário brasileiro, da tese do marco temporal contraria frontalmente os ditames do Acordo de Paris e do Protocolo de Kyoto, dos quais o Brasil é signatário, pois a criação de entraves ao reconhecimento dos povos indígenas a seus territórios favorece a devastação e o esgotamento da terra, inerentes aos modos neoliberais de exploração econômica.

Além disso, a eventual aprovação da tese do marco temporal pelo STF contrariaria o postulado segundo o qual não existe direito adquirido contra a Constituição, unânime em toda a doutrina e na jurisprudência do próprio Tribunal e decorrente direto do princípio da supremacia da Constituição. Isso porque fixaria uma condicionante inexistente no Texto Constitucional, subordinando-o à posse ou à propriedade de direito civil. Não há posse ou propriedade oponível à posse ancestral dos territórios pelos povos originários.

“Nossa história não começa em 1988”.

Arrancaram a paz, arrancaram a alegria, arrancaram a tradição, arrancaram até o nome - Território Pindorama - só não arrancaram a coragem de resistir dos povos originários.

A AJD se une à voz dos povos indígenas para rememorar sua luta de mais de quinhentos anos, e conclama ao STF que, neste momento tão difícil de nossa história, mais uma vez cumpra seu papel de guardião da Constituição Federal e promotor dos Direitos Humanos para afastar qualquer medida política ou judicial que redunde em eliminação ou redução de direitos dos povos indígenas.

 

AJD - ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA