"Não é penalizando a classe que vive do trabalho que nós vamos alcançar uma sociedade mais justa"

Nesta terça-feira (10) foi votada e aprovada em Brasília a Medida Provisória n° 1.045, que institui o “Novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda”. A proposta apresenta um conjunto de medidas complementares para o enfrentamento das consequências da pandemia de coronavírus (Covid-19) no âmbito das relações de trabalho. 

Entretanto, entidades de diversos campos e atribuições da sociedade civil, entre elas a AJD, se manifestaram contrárias a esta medida. Em Nota Técnica divulgada na sexta-feira (06), as organizações apontaram a “ineficácia” das proposições da MP 1.045, “fundamentadas em promessas não cumpridas da reforma trabalhista de 2017 e Medidas Provisórias subsequentes”. Os deputados voltam ao plenário hoje para votar os destaques da Lei.

A juíza do trabalho, Ana Paula Alvarenga (AJD), participou ativamente da elaboração da nota. Em entrevista para o site da Associação Juízes para a Democracia, ela dá mais detalhes dos perigos que rondam a MP 1.045:

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1 – O que é a MP 1.045? O que ela se propõe a realizar?

Ela foi editada pelo Poder Executivo, o governo entende que ela é necessária em razão da pandemia de coronavírus ter se estendido ao longo de 2021, trazendo uma série de prejuízos para o mercado de trabalho e fazendo com que seja necessária a existência de uma regulação emergencial para atender essa situação específica da pandemia. Em síntese, o governo propõe um tripé que é baseado na redução da jornada de trabalho de forma proporcional e consequentemente dos salários, outra medida é a suspensão temporária dos contratos de trabalho e a terceira é o pagamento do Benefício Emergencial de Emprego e Renda.

Ocorre que o relator da MP, o deputado Christino Aureo (PP-RJ), acrescentou ao Projeto de Lei outras matérias que não estavam previstas, que são extremamente prejudiciais aos trabalhadores. O Brasil é um país que tem um mercado de trabalho extremamente desestruturado, a reforma trabalhista de 2017, apesar das promessas, vários estudos feitos por economistas mostram que ela não cumpriu nenhuma delas. Ela só trouxe mais precariedade, ela prejudicou todo o sistema sindical brasileiro, trouxe prejuízos para o acesso à Justiça do Trabalho.

2 – Poderia especificar melhor estes acréscimos que o relator deseja fazer à MP?

Ele está ampliando os objetivos desta medida provisória, e ao ampliar estes objetivos ele cria dois novos programas, um que tem a sigla PRIORI, que é o Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego, e também propõe a criação do REQUIP: Regime Especial de Trabalho Incentivado Qualificação e Inclusão. Entretanto, estes dois programas que estão sendo propostos, eles não se limitam ao período da emergência pública, da vigência da pandemia. Se forem aprovados, eles vão promover alterações na legislação trabalhista brasileira em caráter definitivo.

E nós temos compreendido, tanto a AJD quanto às demais entidades que assinam a nota, que é absolutamente indevida a ampliação desse objeto. Inclusive o Supremo Tribunal Federal numa situação de 2015, entendeu pela inconstitucionalidade desse procedimento. Um processo normal de aprovação de uma lei no Brasil é longo, que tem uma ampla discussão com a sociedade, ela vai passar pelas chamadas comissões especiais. É um procedimento democrático de construção de legislação. Esse caminho que o relator está buscando é inconstitucional, esse é o primeiro aspecto que nós abordamos em nosso documento chamado de “Inconstitucionalidade Formal”.

Mas ainda que este problema não existisse, o que a gente verifica, naquilo que se refere às matérias que estão sendo tratadas neste Projeto de Lei, nós temos argumentos que são falaciosos. Os principais argumentos que são colocados pelo governo é que há a necessidade de reforma da legislação do trabalho brasileira porque ela é antiquada, inadequada e inviabiliza o crescimento econômico. Então, esse é um argumento que vem sendo utilizado desde 2017 pelos defensores da reforma trabalhista, que volta a ser usado agora.

3 – Neste sentido, de que forma a MP 1.045 aprofunda a reforma trabalhista de 2017?

A reforma de 2017, promovida pela Lei 13.467 no governo Temer, ela foi estruturada em quatro pilares fundamentais de destruição de todo arcabouço legislativo de proteção ao trabalho no Brasil. Primeiro ela fragiliza os sindicatos, excluindo a chamada contribuição sindical obrigatória, principal fonte de custeio dos sindicatos trabalhadores do Brasil. Dentro da fragilização dos sindicatos ela autoriza em diversos dispositivos que os trabalhadores possam negociar diretamente com os patrões. Então, retira os sindicatos daquilo que é a sua missão precípua, a negociação coletiva.

Neste projeto de medida provisória nós não temos nenhuma regra específica em relação à questão sindical, o que nós temos neste aspecto é a possibilidade de que os programas que mencionei, PRIORI e REQUIP, possam ser negociados diretamente entre o trabalhador e o patrão. Inclusive, se eu não me engano no Reequipe, os trabalhadores que forem contratados por esse tipo de regime não serão considerados categoria profissional, e o que isso significa? Que eles não poderão estar filiados a sindicatos, significa que não se beneficiarão das convenções e acordos coletivos. Eu excluo o sindicato dessa relação na medida que eu afirmo que esse trabalhador não pertence a nenhuma categoria profissional. Então, ele é um pária do sistema sindical, que vai ter de negociar sozinho suas condições de trabalho.

4 – Essa abordagem de que o trabalhador vai poder negociar diretamente com o patrão é um dos argumentos mais usados quando se defende medidas dessa natureza. Na prática, trabalhador e patrão entram em pé de igualdade nessa negociação?

Em nenhuma hipótese, nem aqueles trabalhadores que alguns chamam de hipersuficientes, nem mesmo estes trabalhadores participam dessa relação entre capital e trabalho com simetria. Ela é assimétrica desde sempre. Se a gente pensa no Brasil, nesse mercado de trabalho desestruturado, com altas taxas de desemprego e informalidade, a maior parte da população brasileira com salários baixíssimos, qual a capacidade que um trabalhador inserido nessa estrutura, inserido nessas condições tem de negociar com o seu patrão?

Então, é uma relação assimétrica, uma relação em que não há nenhuma isonomia ou igualdade para que essas partes possam realmente negociar sem a participação dos sindicatos.

É imprescindível a existência de sindicatos fortes para que as condições de trabalho, em qualquer país do mundo, possam ser negociadas em patamares mínimos de civilidade.

5 – A MP 1.045 se propõe como um projeto de garantia de emprego. De acordo com a sua avaliação, isto se sustenta?

O que a reforma fez e agora esse projeto aprofunda é o oposto disso. Há uma promessa de que tais ações são necessárias para o crescimento econômico, assim teremos mais empregos e melhores condições nestes empregos. Mas todos os estudos e dados que nós temos hoje demonstram o oposto disso. Primeiro que o crescimento econômico de qualquer país não está atrelado à legislação trabalhista. O que leva o crescimento de um país não é uma legislação trabalhista mais protetiva ou menos protetiva. O crescimento econômico está vinculado a outros elementos: dinamismo econômico, políticas econômicas, inserção na economia internacional, está vinculado à própria crise mundial, por exemplo, agora todos os países durante a pandemia tiveram estagnação ou decréscimo. A legislação não interfere em absolutamente em nada no crescimento econômico de um país.

Tanto a reforma de 2017 quanto estes dois programas que estão sendo apresentados agora, eles representam apenas redução de custos. Eles vão determinar uma redução de custos para as empresas sem garantir a nenhuma que ao ter o custo reduzido estas empresas vão contratar mais.

O programa PRIORI afirma que se aplica apenas a criação de novos postos de trabalho, mas ele é tão contraditório que ele afirma que 25% de um quadro de uma empresa pode ser contratado por esse programa, com todas essas reduções de direitos, e estes 25% serão calculados com base nos postos de trabalho de 2019, ou seja, anterior à pandemia. Então, na verdade não são novos postos de trabalho, eu tenho a efetiva substituição de um quarto dos postos de trabalho de uma empresa por uma forma de trabalho extremamente precária, inclusive criando uma desigualdade entre os trabalhadores daquela própria empresa. Eu posso ter ali trabalhadores com determinadas condições, que são as estabelecidas na legislação, e um quarto dos trabalhadores em condições totalmente diversas fazendo a mesma atividade.

6 – A nota aponta uma inconstitucionalidade na MP que diz respeito ao sistema de proteção social. Poderia explicar melhor como funciona esse dispositivo?

A Constituição estabelece no Artigo 7° o que nós chamamos um patamar mínimo civilizatório, são os direitos mínimos que qualquer trabalhador brasileiro tem para assegurar uma vida digna. Nós observamos neste projeto a redução deste patamar. Quando eu admito, por exemplo, no Reequipe que o trabalhador seja contratado sem vínculo de emprego.

No Priori, eu tenho a mesma situação, redução dos salários, a redução da multa rescisória para o Fundo de Garantia, eu tenho exclusões de natureza previdenciária. Então, todo esse arcabouço que está na Constituição, que já é o mínimo, ele acaba sendo vilipendiado a partir destes programas.

Tem outros pontos da medida provisória que também afetam esse patamar mínimo, tem um aspecto em que o programa propõe: aqueles trabalhadores que tem uma jornada especial (os chamados profissionais liberais), podem ter estas jornadas elastecidas e que esse elastecimento vai ser considerado hora-extra, mas o adicional é de apenas 20%, sendo que o adicional mínimo previsto na Constituição é de 50%.

7 – Porque tanto a AJD como as diversas outras organizações são contra a MP 1.045?

Porque elas representam a precarização das condições de trabalho no Brasil, um mercado de trabalho que já é marcado por muita desigualdade, extremamente desestruturado e entendemos que o caminho da precarização do trabalho não é o caminho para o crescimento econômico. Não é penalizando a classe que vive do trabalho que nós vamos alcançar uma sociedade mais justa, mais solidária e uma sociedade em que as pessoas possam viver com mais dignidade. O que nós acreditamos é exatamente o oposto do que a medida provisória está propondo.