"Imaginar que a emancipação dos vulneráveis vai ser construída pelos tribunais é um grosseiro engano"

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O Juiz Marcelo Semer se consolidou como uma das mais proeminentes vozes críticas ao sistema de justiça do Brasil. Ex-presidente da AJD, ele afirma que suas primeiras reflexões foram publicadas no jornal da associação. Desde então passou a colecionar uma série de artigos, colunas e livros que debatem as contradições do poder judiciário, sem contar suas contribuições em eventos, entrevistas e aparições em programas onde sempre expôs sua visão.

É nesta jornada que Marcelo chega ao seu quinto livro publicado. Em “Os Paradoxos da Justiça – Judiciário e Política no Brasil” (Editora Contracorrente), o Juiz sistematiza suas críticas em quatro pontos que considera as grandes contradições na justiça brasileira e a forma como isso se desdobra na política. “O livro é um acúmulo de reflexões”, afirma.

A publicação tem prefácio do Juiz Rubens Casara, e além de consagrar temas que o autor explora ao longo de sua carreira como magistrado e escritor, também aborda discussões mais recentes como a judicialização da política no Brasil, um fenômeno que ele observou também no restante do mundo e que em sua opinião “desconfigurou totalmente” o papel do poder judiciário.

É sobre o seu mais novo lançamento, “Os Paradoxos da Justiça”, e os rumos do judiciário brasileiro que Marcelo Semer fala nesta entrevista. Acompanhe:

AJD – NA CONDIÇÃO DE JUIZ COMO É ESCREVER UM LIVRO QUE FAZ UM DIAGNÓSTICO SOBRE AS CONTRADIÇÕES DO SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO?

Na verdade, o livro acaba sendo um ponto de chegada em relação a uma série de artigos que venho escrevendo, pelo menos, nos últimos 20 anos. Eu tenho 31 anos de carreira, talvez até mais, mas ao menos uns 20 anos venho escrevendo sobre o judiciário sob um viés crítico.

Eu sempre achei que é importante a gente questionar e levar as questões ao público para que elas possam ser melhoradas. Eu não sou adepto daquela ideia “roupa suja a gente lava em casa”, não, o judiciário é um poder público, portanto, as suas questões são todas públicas, e elas dependem do debate público para avançar.

Acho que a AJD tem essa compreensão, um dos primeiros lugares onde comecei a escrever era o jornalzinho da Associação. Depois que assumi cargos na AJD, eu consegui espaço em jornais de grande circulação. Mais para frente fiz um blog e passei a escrever nos últimos 10 anos, quase rotineiramente, em portais. Então, eu publiquei no Terra Magazine, Justificando e por dois anos na Revista Cult. De uma certa forma, eu consolidei essas críticas que vinha fazendo ao longo do tempo.

As pessoas que me acompanham e me conhecem, a turma do judiciário, acho que não tem muitas novidades. Lógico, o livro não é um conjunto de artigos, ele foi escrito dentro de uma outra dinâmica, mas as ideias já estão sendo lançadas há bastante tempo.

AJD – ENTÃO, PODEMOS DIZER QUE O LIVRO É UM ACÚMULO DE DISCUSSÕES QUE VOCÊ VEM FAZENDO AO LONGO DE SUA CARREIRA?

Algumas coisas já escrevi em outras situações, o livro vai falar sobre Foro Privilegiado, Punitivismo, Processo Penal do Espetáculo. Sobre isso eu tenho vários textos escritos. Alguns assuntos eu ainda não tinha me debruçado como a questão da judicialização da política. Neste caso eu fui estudar, ler artigos e textos. Outras coisas estou recuperando historicamente. Eu vou trazer, por exemplo, a questão da Lei da Anistia, a forma como nós deixamos de punir os torturadores. “Ah, ela foi um grande acordo nacional”, não, ela não foi um grande acordo nacional. Ela foi passada a força na época do Regime Militar.

De uma maneira geral, você tem razão, o livro é um acúmulo de reflexões.

AJD – QUAL FOI O MOMENTO EM QUE VOCÊ DECIDIU ESTRUTURAR ESSE CONJUNTO DE CRÍTICAS EM UM LIVRO?

Eu fui participar de uma exposição para um público que não era do Direito, eu tinha uns 20 ou 30 minutos para falar da minha perspectiva do judiciário. Escrevi um artigo que foi a gênese desse livro, que se chamava “A Justiça Hoje em Quatro Paradoxos”. Quando pensei em escrever o livro, peguei esses quatro tópicos que havia colocado e acrescentei com os temas e reflexões, coloquei cada um em seu compartimento para conseguir fazer.

AJD – NO SEU LIVRO ENTRE SALAS E CELAS, A GENTE TEM UMA SÉRIE DE CRÔNICAS REAIS SOBRE O COTIDIANO DE UM JUIZ, NO CASO O SEU. E NESTE LIVRO, POR INTERMÉDIO DOS RELATOS EXPOSTOS, JÁ NOS DAMOS CONTA DE ALGUNS DESSES PARADOXOS DA JUSTIÇA. É POSSÍVEL TRAÇAR UMA LINHA ENTRE ESSES DOIS TRABALHOS?

Acho que sim. Aliás, eu estou escrevendo o segundo volume do Entre Salas e Celas, alguns casos eu havia deixado de lado porque não couberam no primeiro. Mas é óbvio, em cada uma daquelas crônicas e fatos que conto tem um pouco da minha interpretação sobre a Lei Penal, o judiciário, como o Juiz tem que se portar, questões de igualdade.

O que me parece mais razoável é que o Entre Salas e Celas mostra o meu amadurecimento. Naquelas crônicas que eu conto dá para você perceber como fui descobrindo e aprendendo a ser juiz. E aqui no Paradoxos da Justiça, eu estou refletindo acerca disso. Não tenha dúvidas que você vai encontrar algumas conexões. Por exemplo, eu vou falar sobre Aplicação da Insignificância, Bagatela, isso tem muito a ver com a ideia do Punitivismo, o judiciário levando o Direito Penal de uma maneira muito rigorosa causando desigualdades, a forma como a gente julga determinados crimes. Então, eu acho que tem uma ligação bem próxima.

AJD – COM RARÍSSIMAS EXCEÇÕES, POR MUITO TEMPO O PODER JUDICIÁRIO FOI POUCO QUESTIONADO. DIFERENTE DA CLASSE POLÍTICA, QUE JÁ CONVIVE COM CRÍTICAS FERINAS HÁ MAIS TEMPO, OS JUÍZES PASSARAM A ESTAR MAIS NO HOLOFOTE DA POPULAÇÃO. AO QUE SE DEVE ESSA MUDANÇA? COMO VOCÊ OBSERVA ISSO?

Acho que isso é natural pelo espaço de poder que o judiciário foi ocupando. Depois da redemocratização de 1988, você passa a ter um judiciário independente. Então, quando ele recupera essa independência passa a ser um outro ator. Mas juntamente com isso, e eu vou narrando isso no livro, o judiciário foi aumentando o espectro de competência para questões políticas de uma maneira mais ampla. Isso não foi só no Brasil, mas um processo quase universal. Lógico, cada lugar tem a sua particularidade. Aqui houve uma grande concentração de poder, sobretudo no Supremo. Nós temos inúmeras formas sob as quais o STF pode interferir na política: ADPF, ADI e etc. Há vários mecanismos, muitos deles monocráticos.

Além do judiciário ter naturalmente crescido de importância, sobretudo depois da II Guerra Mundial, ao mesmo tempo muitos atores políticos foram buscar o judiciário para destruir os seus inimigos. Não é que o judiciário se empoderou por conta própria, ele se empoderou porque todos foram procurar o judiciário, em especial os políticos. Se você pega a questão parlamentar, o cara perde na câmara e vai buscar o judiciário, obviamente vai trazer o foco para lá.

Acho também que isso é um reflexo desse populismo penal que acabou levando muita atenção ao judiciário, principalmente a partir do final do século XX, a gente vê uma recuperação desse ânimo punitivo e uma coisa muito espalhada, algo que foi visto no mundo inteiro. Quer dizer, o crime deixa de ser uma coisa de especialistas para ser o assunto número um da sociedade. E como o crime vai ser resolvido no judiciário isso também chamou a atenção.

Sem dúvida, a maior participação do juiz na administração da política é o que colocou a categoria como atores centrais.

Hoje, aqui no Brasil, a gente já começa a pensar em quem vai ser o Ministro do Supremo. Nos Estados Unidos isso é uma coisa que já acontece há mais tempo, se você prestar atenção na campanha eleitoral, um dos temas que vai pintar é esse: quem você vai nomear como Ministro do Supremo? Não no sentido de nomes, mas no sentido de perfil. Então, eu acredito que há várias pessoas que decidem o seu voto pensando em quem o eleito irá levar para o Tribunal norte-americano.

 

"é preciso que a mensagem que se tornou vitoriosa na eleição se concretize também nos tribunais"

 

Nós copiamos o sistema deles, mas aqui como os nossos partidos são frágeis, você tem uma série de fragmentos. O PT ganhou quatro eleições, nomeou quase todo o Supremo, mas você não vê pessoas de esquerda no Supremo, muito raro. O PT não fez aquilo que os Democratas fizeram nos EUA, eles elegem um presidente democrata, ele vai nomear pessoas liberais, você elege um presidente republicano, ele vai nomear pessoas conversadoras.

Acho que hoje a gente já tem um pouco dessa noção, o Bolsonaro já tem mais claro isso, quer colocar um cara evangélico que atende aquelas pessoas que o elegeram. O PT tinha essa ideia de que era preciso fazer uma escolha mais republicana. Eu sempre brincava na época que o PT não tinha que fazer uma escolha republicana, mas tinha que fazer uma escolha democrata. É para isso mesmo que eles servem, eles não são eleitos Ministros, eles são indicados pelos que são eleitos. Portanto, é preciso que a mensagem que se tornou vitoriosa na eleição se concretize também nos tribunais. A gente tem que ter noção, o Lula pode ser o nosso próximo presidente? Bom, pode ser que a gente tenha uma guinada progressista novamente, só que é preciso assumir isso na escolha de seus Ministros. A gente não tem que ter nenhum tipo ligação partidária, mas uma ligação ideológica é bem aceitável.

AJD – POR QUE É TÃO IMPORTANTE NOS ATENTARMOS PARA ESSE PROCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA? ISSO DESCONFIGURA OU NÃO O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO?

Acho que desconfigurou totalmente. Uma certa judicialização é inerente, ela aconteceu em todo lado. Eu trago um livro norte-americano que mostra a expansão global do poder judiciário em várias partes do mundo, óbvio que cada um tem a sua forma. Mas o problema é o excesso, ou seja, onde isso acaba por impactar?

No Brasil, a reforma do judiciário começa em 1992, grande parte dela viveu sob o Governo Fernando Henrique. O Lula chegou no final e acabou aprovando no Senado a reforma que já veio toda compactada do FHC. E qual foi a principal vertente da reforma? Ela começa por vários pontos separados até que o Governo consegue fazer um apanhado central, que é ideia de verticalização do poder, ou seja, dar mais poder ao STF esvaziando o poder dos Juízes de Primeira Instância.

Por que acontecia isso? Dentro do pensamento neoliberal e a ideia que o FHC tinha da economia brasileira, nós precisávamos aderir à globalização, ela está aí e nós temos que aderir. Para aderir à globalização significa trazer investidores de fora para o Brasil. Você só consegue trazer investidores de fora se você tiver regras mais claras e previsíveis. Regras você faz pelas leis, mas a previsibilidade vai ser pelas decisões. Portanto, você tinha que eliminar, essa era a ideia deles, as imprevisibilidades das decisões, que eram as liminares que cada um dos juízes dava, exemplo: não à privatização, não ao apagão.

Esta foi a mentalidade, concentrar poder jurisdicional lá em cima, poder administrativo, tudo para eliminar a imprevisibilidade. O que eu falo que foi um tiro pela culatra é como isso foi junto a um grande empoderamento do Supremo ao mesmo tempo, acabou que a imprevisibilidade ficou maior ainda, porque hoje essas liminares estão lá no Supremo, então, a decisão é mais custosa, e cada decisão acaba gerando mais uma crise.

Acho que nesse aprendizado, o STF fez coisas muito boas, como aceitar as cotas raciais, o casamento civil igualitário, nisso eu estou prestigiando princípios básicos da Constituição, como a igualdade, a adesão à Audiência de Custódia. Para essas grandes questões esse ativismo funciona para garantir Direitos Fundamentais, isso eu acho bom. Ao mesmo tempo, eles foram se introduzindo na política para corrigi-la moralmente, nessa perspectiva de que “tem muita corrupção, os partidos não conseguem fazer isso, vamos nós fazer isso pela via do judiciário”.  Eles assumiram um poder que eles não tinham.

 

"A situação que nós vivemos hoje é acreditar que a gente vai derrubar o Bolsonaro pelo judiciário, que quem é a oposição ao Bolsonaro hoje são os juízes"

 

Em muitos momentos os juízes tomaram a iniciativa de fazer produções legislativas que não tinham nenhum sentido, e neste ponto acho que foi um exagero. Isso acaba gerando uma certa confiança na população de que é possível resolver um problema político na justiça, nisso as pessoas deixam de fazer as suas lutas políticas judicializando nos tribunais.

Me parece que, no limite, isso é um equívoco porque a gente está esvaziando a política. A situação que nós vivemos hoje é acreditar que a gente vai derrubar o Bolsonaro pelo judiciário, que quem é a oposição ao Bolsonaro hoje são os juízes. Mas o Bolsonaro só existe porque uma série de decisões judiciais permitiram que Bolsonaro fosse normalizado durante todo esse tempo. Por mais que hoje as decisões dele sejam tão absurdas que nem o judiciário pode aceitar, o fato é que muita coisa foi normalizada. Veja, num intervalo de 5 anos, ele saiu de uma figura que defendeu torturador dentro da Câmara dos Deputados, algo que em uma democracia ele sairia preso de lá, catapultado para a Presidência da República. Ele foi cometendo difamações e injúrias sendo absolvido aqui e acolá.

O Alexandre de Moraes o absolveu no episódio que ele disse que quilombola não trabalha e tem não sei quantas arrobas, ele foi racista! Mas a gente foi apoiando. Me parece que supervalorizar o judiciário tira a autonomia da política. Os nossos problemas se resolvem com a política, o Bolsonaro não vai ser tirado de lá pelo judiciário. É preciso mostrar que uma parcela significativa da população não suporta mais, só que as pessoas deixam de fazer isso porque ficam apostando: “olha a decisão que o Fux vai dar”. Eu acho que é ruim essa situação de supervalorizar o judiciário, que não é um campo, nunca foi, acolhedor dos povos vulneráveis.

Nós estamos na luta para ver se eles deixam essa tese do Marco Temporal, mas essa ideia veio pelo judiciário, ela não existe na Constituição, o judiciário já trouxe isso em uma decisão anterior. Agora tentam ver se reconhecem o equívoco e deixam. Mas imaginar que a emancipação dos vulneráveis vai ser construída pelos tribunais é um grosseiro engano.   

AJD – UMA FRASE MUITO LEMBRADA EM NOSSOS TEMPOS É “AS INSTITUIÇÕES ESTÃO FUNCIONANDO”. É POSSÍVEL CONCORDAR COM ESTA SENTENÇA, SOBRETUDO DO PONTO DE VISTA DAS INSTITUIÇÕES DE JUSTIÇA?

Nós estamos numa ruptura institucional que abriu uma brecha para uma série de cicatrizes, que a gente não conseguiu fechar até agora. E isto se deu, em grande medida, pelo ativismo judicial de um lado, sobretudo da Lava-Jato, e de outro lado pela omissão. O STF trabalhou muito com o timing das decisões, quando o Supremo afastou o Eduardo Cunha foi seis meses depois do pedido, nesses seis meses o Cunha dirigiu com mão pesada o impeachment da Dilma. Muito provável que sem o Eduardo Cunha não tivéssemos isso.

 

"Isso que nós vimos nas ruas durante o 7 de setembro, as pessoas querendo derrubar o STF, isso começou com a Lava-Jato"

 

Não dá para dizer que foi o Supremo que fez o impeachment, não fez! Mas tomou uma série de decisões, principalmente em relação à Lava-Jato. Isso que nós vimos nas ruas durante o 7 de setembro, as pessoas querendo derrubar o STF, isso começou com a Lava-Jato. Ela que foi um impulsionador de movimentos de massa fazendo pressão por decisões judiciais, inclusive pressões do ponto de vista intimidatório. A gente viu várias manifestações em que o pessoal fez Pichuleco de Ministro, colocava a cabeça de um na forca, e isso está se repetindo agora. A gente já teve a Paulista parada com um cidadão tocando “Como é Grande o Meu Amor por Você” no piano para o Sergio Moro. O Supremo está vivendo ainda a herança maldita da Lava-Jato, isso desconfigurou o STF porque você passa a ter uma decisão judicial que ela tem que ser imediatamente acolhida pelas pessoas. O Barroso, que é um grande constitucionalista, chegou a dizer mais de uma vez que era preciso “ouvir a voz das ruas”. Acho que o 7 de setembro ele não quis ouvir a voz das ruas. Se fosse para ouvir a voz das ruas, ele não teria votado contra o Lula poder ser candidato, não teria votado a favor da reforma trabalhista, a favor da reforma previdenciária, dada a inconstitucionalidade disso.

Então, me parece que não é possível imaginar porque tem o judiciário no meio está seguro de que não aconteceu nenhuma perversão, não, todos são capazes disso, e eu acho que aconteceu em 2016, por ações e omissões do judiciário, mas sobretudo porque a estratégia do Sergio Moro era trazer a massa para pressionar o judiciário. Como era a favor dele não incomodou a ele, só deu prestígio. Mas os outros juízes foram emparedados tomando decisões casuísticas.

Você pode me falar: “mas o STF que quebrou a Lava-Jato”. É verdade, mas como é que isso mudou de figura? Foram as gravações do The Intercept? Essas gravações foram importantes, não tenha dúvidas disso, mas se elas tivessem aparecido na época em que o Sergio Moro era o dono da situação, a imprensa não daria espaço para elas, o tribunal ia falar que eram provas ilícitas. O que aconteceu é que a vaidade do Sergio Moro foi maior do que a sua esperteza e aceitou um cargo no governo Bolsonaro. A partir daí começa a se questionar, por muitos motivos, a própria questão da Lava-Jato. E juntou uma coisa com a outra, Lava-Jato e Bolsonaro, portanto, as críticas a um viraram críticas a outro, no sentido de depreciação. Foi nessa situação que vieram as gravações da Vaza-Jato, mas se viessem em outra situação acho que seriam ignoradas.

Os questionamentos existiam desde antes, desde o começo, só que batia na parede e ninguém prestava atenção. A partir do momento que o Moro se deslegitimou aderindo ao governo da pessoa que ganhou, porque ele não deixou outro disputar, a coisa foi enfraquecendo.

AJD – É POSSÍVEL A GENTE SONHAR COM UM SISTEMA DE JUSTIÇA MENOS PARADOXAL, MAIS JUSTO E POPULAR?

Não é fácil porque a nossa história é atravessada por um autoritarismo que é muito relevante. O país só elegeu o Bolsonaro porque tinha um legado autoritário muito persistente aí. A gente tratou muito mal isso enquanto outros países souberam purgar melhor essa situação. A Ditadura não é uma questão que ficou no passado, ela está no presente.

Só acho que fazendo coisas erradas não resolve, por exemplo, quando o Alexandre de Moraes sai prendendo aquelas pessoas, um inquérito que vale tudo, eu não consigo ver a legalidade disso. Eu adoraria, mas eu não acho que a gente fazendo a coisa errada vai dar certo. Eu até entendo que politicamente o Supremo está acossado ele vai ter de responder, mas deu uma desorganizada no processo de maneira absurda. A pessoa que xinga o STF, não tem Foro Privilegiado, ela precisa responder na sua Vara.

Acho que deveríamos pensar em mandato para Ministro do Supremo, para que eles não se eternizem lá. O STF deveria colher a tese da Corte Interamericana de Direitos Humanos e permitir que sejam processadas as pessoas que cometeram crimes contra a humanidade, porque isso aconteceu em todos os países da América do Sul e isso foi muito importante para recuperar a sua integridade democrática.

Na base, a gente precisa mudar um pouco o recrutamento para trazer para dentro do judiciário pessoas que não fazem parte dele no momento. Então, tem que mudar um pouco o concurso. Começaram com as cotas, acho importante, mas não é tudo, pois é preciso um grande investimento para passar no concurso de magistratura, tem que reunir uma cultura grande em pouco tempo, então, aquele que consegue parar de trabalhar tem uma vantagem muito grande. Portanto, a gente precisa mexer lá em cima, mas ao mesmo tempo temos que mexer em baixo, isso é até mais importante.