Reunião agendada com a Ministra Presidente do STF – Brasília 17/07/2023
[...] quando o vínculo social afrouxa e o Estado enfraquece, quando os interesses particulares passam a se fazer sentir [...], então a vontade geral emudece, todos, guiados por motivos secretos, já não mais opinam como cidadãos [...] e, sob o nome de leis, fazem-se aprovar decretos iníquos cujo único objetivo é o interesse particular (Rousseau, Contrato Social, 1762).
A pandemia da COVID – 19, que chegou oficialmente ao Brasil em março de 2020, contribuiu para escancarar as fragilidades dos arranjos internacionais do capitalismo e as abissais desigualdades que costuram o tecido social brasileiro, aprofundando-as. Vivem-se tempos em que o capitalismo - esse sistema econômico, social e político, uma construção histórica, hoje globalizado e hegemonizado pelos interesses das finanças - recrudesce os elementos que lhes são instituintes, a caber: mercantilização de todas as esferas da vida, em suas múltiplas expressões; universalização da concorrência; e, concentração da renda, da riqueza e, portanto, do poder político. E, ao chegar no Brasil, encontra condições estruturais (herança dos tempos coloniais) favoráveis à expansão de sua força essencialmente desigualadora. Nesse cenário, interesses privados, buscando subjugar o sentido do público, insistem na falsa ideia de que uma massa de pessoas “livres” (advogados, professores, cuidadoras, entregadores, motoristas, ex-bancários até), em grande parte alocadas via plataformas digitais ou por meio de contratos de simulada natureza civil, “convictas” de suas “liberdades” e na busca de realização de suas “autonomias”, renegam toda e qualquer regulação pública que seria empecilho a tanto. Na realidade, é a luta pela sobrevivência que as leva a vender pacotes de tempo de forma despersonalizada, desencarnada, sem direitos e garantias e, no dizer de Bifo Berardi, sem demandas. Nesse sentido, o alerta de Rousseau, anterior à própria constituição do capitalismo, é de grande atualidade, fornecendo pistas ricas para se olhar um Brasil em que a via do “consenso” parece ganhar força como apta a “harmonizar” e a democratizar a desigual relação capital e trabalho (Biavaschi, 2007).
Talvez, imbuídos por essas falsas ideias, recentemente, sobretudo em sede de reclamações constitucionais e institucionais, decisões de Ministros do Supremo Tribunal Federal, STF, têm atingido a Justiça do Trabalho em sua lógica fundacional, esvaziando-a, como, aliás, alertou a Juíza do Trabalho Ana Paula Alvarenga Martins, em recente artigo publicado pelo BrasilDeFato, https://www.brasildefato.com.br/2023/07/07/as-decisoes-do-stf-e-o-desmonte-da-justica-do-trabalho. Justiça do Trabalho essa que, ao lado das normas trabalhistas, dos sistemas de fiscalização e das organizações sindicais, compõe o sistema público de proteção social ao trabalho brasileiro que, com avanços e recuos, foi arduamente conquistado pela cidadania. Trata-se de instituição essencial à concretização desse sistema público, fundamentado na “garantia do não retrocesso social e na promoção de relações laborais justas e equilibradas”, como sublinha Ana Paula.
Pesquisas acadêmicas têm evidenciado a importância a instituição Justiça do Trabalho como garantidora da efetividade das normas de proteção em debate e de condições dignas às pessoas que trabalham, como se vê, entre outras, em: A Terceirização e a Justiça do Trabalho, Supervisor Paulo E. de Andrade Baltar. Pesquisadora pós-Doc: Magda Barros Biavaschi. Projeto FAPESP 2007/55180-2, vigência 1º/11/2007 a 31/10/2009. Disponível em (acesso 09/07/2023): https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/918 e A Terceirização e a Justiça do Trabalho: Diversidades Regionais. Projeto FAPESP 10/50251-1, Vigência 01/06/2010 a 28/02/2013. Supervisor e pesquisadora Ibidem. Disponível em: https://bv.fapesp.br/pt/auxilios/27337/a-terceirizacao-e-a-justica-do-trabalho-diversidades-regionais/.
Como Justiça Especializada que é, uma de suas incumbências fundantes e, aliás, sua razão de ser, é examinar o preenchimento ou não dos elementos caracterizadores de uma relação protegida pelo sistema de proteção ao trabalho, podendo, nesse processo, declarar nulos certos contratos de aparente “natureza civil” que, na realidade, encobrem relações protegidas, contribuindo, dessa forma, para com a constituição de uma sociedade justa e que não tenha a desigualdade como fundante (Biavaschi, CESIT/ 2021, vol. 01).
Entre as decisões preocupantes estão, entre outras, aquela proferida na Reclamação Constitucional referente a processo ajuizado por trabalhador que obteve junto ao TRT da 3ª Região reconhecimento do vínculo de emprego, com Recurso de Revista não recebido e AIRR aguardando julgamento no Tribunal Superior do Trabalho, TST. Foi com preocupação e perplexidade que a comunidade trabalhista e as organizações dos trabalhadores receberam a notícia de que Ministro Alexandre de Moraes, em decisão monocrática (Reclamação nº 59.795/MG), atravessou esse julgamento para declarar sua nulidade e negar competência à Justiça do Trabalho para reconhecer a relação de emprego e, em decorrência, assegurar os direitos de proteção ao trabalho.
Essa decisão, além de questões relacionadas ao próprio cabimento da Reclamação Constitucional, com agravo já interposto a aguardar parecer da PGR e julgamento, representa inequívoca fragilização da Justiça do Trabalho em seu papel histórico de julgar conflitos decorrentes das relações de trabalho, afrontando o artigo 114, I da Constituição Federal de 1988. A decisão chega a se apoiar em jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, STJ (e não do STF), no âmbito do conflito de competência 164.544/MG, cujo tema, data vênia, não guarda correspondência com o discutido na reclamação constitucional em questão (que, segundo artigo 156 do Regimento Interno do STF, objetiva preservar a competência daquele tribunal ou garantir a autoridade de suas decisões). Ademais, determina remessa à Justiça Comum, pedido não formulado, pois a tutela pretendida foi de suspensão da ação trabalhista e de sua execução provisória, revelando-se teratológica também nesse sentido. Em nota veiculada amplamente, que se anexa a este texto, o Grupo Prerrogativas apontou consequências preocupantes dessa decisão, cujo recurso interposto será ainda julgado pelo STF.
Ainda na linha das decisões monocráticas que podem esvaziar a Justiça do Trabalho, está a Reclamação Institucional 59.836, ajuizada por Décio Freire e Advogados Associados em face de decisão do TST proferida no Processo nº 0001311-52.2016.5.14.0001, sendo Relator Ministro Roberto Barroso que invocou julgamento conjunto da ADPF 324 e do RE 958.252, paradigma do Tema 725 da repercussão geral, tendo como objeto comum a discussão sobre constitucionalidade da terceirização de mão de obra. Essa decisão, depois de referir ao julgamento conjunto da ADC 48 e da ADI 3.961, trouxe o julgamento da ADI 5.625, em que fixada a tese da constitucionalidade da celebração de contrato civil de parceria entre salões de beleza e profissionais do setor, forte na Lei 13.352, de 27/10/2016. E, ao argumentar que o contrato de emprego não é a única forma de se estabelecerem relações de trabalho, conclui serem lícitos, mesmo em atividade-fim, contratos de terceirização de mão de obra, parceria, sociedade e de prestação de serviços por pessoa jurídica (pejotização), desde que não haja relação de emprego com a empresa tomadora do serviço, com subordinação, horário para cumprir e outras obrigações típicas do contrato trabalhista, hipótese de fraude à contratação. A questão que se coloca é quem teria competência para essas análises? Não seria a Justiça do Trabalho, criada que foi para essa finalidade? Ainda, essa decisão traz o argumento de que não se estaria diante de uma trabalhadora hipossuficiente, mas de profissional com elevado grau de escolaridade e remuneração expressiva, apta a fazer escolhas esclarecidas sobre sua contratação. E, assim, desconsiderando que a desigualdade é instituinte da relação capital e trabalho e que as normas de ordem pública são inafastáveis pela vontade das partes, o Relator cassou a decisão da Justiça do Trabalho que reconhecera o vínculo de emprego (Autos nº 0001311-52.2016.5.14.0001), determinando que outra seja proferida, em observância à jurisprudência vinculante do STF.
Essa decisão despertou grave preocupação nas entidades signatárias de nota de repúdio que, igualmente, acompanha este texto, na medida em que coloca em xeque o sistema público de proteção ao trabalho duramente construído neste Brasil de graves assimetrias e históricas desigualdades sociais. De resto, o Estatuto da Advocacia prevê duas formas de vínculo estável entre advogado/a e sociedade de advocacia ou empresa: o de associação ou sociedade, em que há determinados poderes na gestão; e o de vínculo de emprego, em que a pessoa do/a advogado/a não participa dessa esfera de decisão. Para cada tipo de vínculo há expectativas e riscos diferentes. O que não se pode admitir é a adoção de formas de contratar que ampliam a insegurança dos que trabalham e se lhes nega o padrão civilizatório mínimo assegurado pelo sistema de proteção social colocado em risco, com resultados são amplamente conhecidos: precarização, aumento da concentração de renda e ampliação das desigualdades sociais que, ademais, sequestram a democracia. As entidades que defendem os direitos sociais seguirão vigilantes e em luta na defesa do patamar civilizatório mínimo que esses direitos impõem ao capitalismo. Vale lembrar que em 1936 Keynes já alertara que a redução dos salários nominais seria fator de aprofundamento de crises, podendo contribuir para criar uma previsão de nova baixa com reações desfavoráveis para a eficiência marginal do capital (1985: 163).
São exemplos de decisões que, sem assegurarem o amplo contraditório, reforçam certos interesses privados que, subjugando o sentido do público, acabam por esvaziar a própria razão de ser da Justiça Especializada do Trabalho. Essas decisões estão fundamentadas em uma lógica liberalizante que a reforma de 2017, Lei nº 13.467/2017, já expressara ao: (1) retirar da regulação pública universal a fonte prevalente dos direitos trabalhistas, para eleger o contrato individual como espaço prevalente da produção normativa, mesmo que redutor de direitos; (2) estabelecer ônus aos ajuizamentos, desrespeitando o direito constitucional de amplo acesso ao Judiciário e o princípio da gratuidade que fundamenta o direito processual do trabalho; (3) retirar os sindicatos dos trabalhadores de momentos importantes da relação de emprego, em especial o das despedidas e demissões; (4) determinar como devem ser interpretados princípios do direito do trabalho, como o da autonomia das vontades, para atribuir-lhe validade mesmo quando redutora de direitos, em desrespeito ao princípio da vedação de retrocessos e ao da progressividade social. O resultado foi a redução abrupta das ações ajuizadas, mas não das lesões trabalhistas.
Diga-se, ainda, que é da Justiça Especializada em comento a competência para dirimir os conflitos do trabalho podendo, na norma de decisão, concluir pela existência ou inexistência da relação de emprego, bem como afastar a validade de contratos de natureza supostamente civil. As decisões aqui exemplificadas retiram a força normativa da constituição, esvaziando a Justiça Especializada em sua lógica fundacional, criada que foi para concretizar um direito profundamente social e tuitivo das pessoas que trabalham, independentemente do valor dos salários ajustados e da qualificação profissional dos que vendem a força de trabalho. Segundo o alerta de Ana Paula, o esvaziar dessa competência abre espaço para “a fragilização das relações de trabalho, para a precarização dos empregos e para o enfraquecimento da proteção às trabalhadoras e trabalhadores brasileiros”. E, quando se olham os dados do mercado de trabalho brasileiro após mais de cinco anos de vigência da reforma de 2017, o que se constata é que as promessas de seus defensores não foram cumpridas e, ao contrário do prometido, foram aprofundadas as históricas assimetrias de um mercado de trabalho constituído sob o signo da exclusão social. E tudo isso acontece na contramão de um movimento atual que ganha força e se expressa, sobretudo, nas decisões de Cortes europeias e em recente definição do Parlamento Europeu das diretrizes para o reconhecimento da relação de emprego de trabalhadores alocados por plataformas digitais que têm, inclusive, estimulado a formação de uma jurisprudência trabalhista com contornos importantes e que assegura às pessoas que trabalham, hoje sem direitos e em luta pela sobrevivência, a condição de sujeitos de direitos trabalhistas.
Confia-se que tais decisões não serão chanceladas pelo STF pois, sem respeitarem o amplo direito ao contraditório, colocam-se em desacordo com os valores sociais do trabalho e a dignidade humana e, acaso chanceladas, poderão impactar negativamente as relações de trabalho, com danos aos fundos públicos e ao conjunto da sociedade, em inaceitável regresso aos primórdios do capitalismo primitivo e com o grave risco de acirramento das desigualdades que impactam a democracia, fazendo ecoar o alerta de Rousseau, não por acaso escolhido para abrir este texto.
Referências bibliográficas
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Relatórios científicos de pesquisas acadêmicas
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BALTAR, Paulo de Andrade (supervisor). Terceirização e a Justiça do Trabalho: Diversidades Regionais. Pesquisadora Magda Barros Biavaschi. Projeto FAPESP 10/50251-1, Vigência 01/06/2010 a 28/02/2013. Disponível Em: https://bv.fapesp.br/pt/auxilios/27337/a-terceirizacao-e-a-justica-do-trabalho-diversidades-regionais/.