A Casa Almerinda Gama, localizada no Centro do Rio de Janeiro, funciona como um espaço de acolhimento para mulheres vítimas de agressões e violências domésticas. O Movimento Olga Benário é responsável por cuidar da ocupação, que também organiza outro espaço de acolhimento para mulheres na cidade de Belo Horizonte-MG. O núcleo da Associação Juízas e Juízes para a Democracia no Rio de Janeiro (AJD-RJ) atendeu ao convite da Casa Almerinda Gama para uma visita que ocorreu no dia 9 de outubro de 2023. As associadas Raquel Braga e Simone Nacif foram as representantes da entidade.
O imóvel onde fuciona a Casa Almerinda Gama passou por um processo de desapropriação. Anteriormente, o espaço era uma loja de instrumentos musicais. Uma das motivações para a visita da AJD à ocupação foi documentar a passagem pela casa e anexar o relatório aos autos do processo judicial proposto pelo Estado do Rio de Janeiro que envolve as ocupantes do imóvel. Em favor da Casa Almerinda Gama consta uma Moção de Aplausos da Câmara de Vereadores do Município do Rio de Janeiro, por iniciativa da vereadora Mônica Benício, e também o apoio da Deputada Estadual Renata Souza que apresentou uma proposta de indicação legislativa convertida e aprovada como indicação simples de Cessão de Uso de Bem Público do imóvel pelo Estado do Rio de Janeiro ao Movimento Olga Benário.
O relatório completo da visita da AJD-RJ à Casa Almerinda Gama pode lida abaixo:
RELATÓRIO DE VISITA INSTITUCIONAL DA AJD À CASA ALMERINDA GAMA
I - INTRODUÇÃO
A Associação Juízas e Juízes para a Democracia, representada por suas associadas Raquel Braga e Simone Nacif, designadas pelo do Núcleo do Rio de Janeiro, visitaram a CASA ALMERINDA GAMA, na Rua da Carioca, número 35, na data de 09 de outubro de 2023. O imóvel funciona como CASA DE PASSAGEM para mulheres vítimas de violências domésticas.
A visita deu origem ao presente relatório, acompanhado de fotos e vídeos realizados no local por ocasião da visita. As fotos acompanham o relatório no anexo e o vídeo será disponibilizado caso solicitado.
II – MOTIVAÇÃO DA VISITA
A AJD – Associação Juízas e Juízes para a Democracia fundada em 13 de maio de 1991, nas dependências da Faculdade de Direito da USP – tem como princípios e fins estatutários a garantia da cidadania do juiz, por meio de uma participação transformadora na sociedade, com a promoção dos valores democráticos e a defesa intransigente dos Direitos Humanos. É seu destino e sua razão de existir a luta por uma sociedade justa e igualitária.
Nesse caminho, a AJD firmou posição, dentre inúmeras outras frentes em que atuou no decorrer de sua história, pela democratização do acesso ao solo urbano e rural, em defesa da vida do povo negro, pobre e periférico, pelo fim da desigualdade de gênero, no enfrentamento às mazelas da violência de gênero no âmbito familiar e pela autonomia e fortalecimento das mulheres vítimas dessas mazelas gravíssimas em nossa sociedade.
Assim, a partir de convite elaborado pelo coletivo das advogadas voluntárias atuantes na Casa Almerinda Gama que vislumbraram a importância de uma observação externa documentada, a AJD – Núcleo Rio de Janeiro – deliberou por comparecer ao local, documentando a visita, ciente de que poderá ser anexado aos autos do processo judicial proposto pelo Estado do Rio de Janeiro em face das ocupantes do imóvel.
III – O MOVIMENTO OLGA BENÁRIO
Trata-se de uma ocupação iniciada em 08/03/2022, integrada à Rede MOVIMENTO OLGA BENÁRIO, movimento feminista nacional de mulheres, com sede em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, Estado em que fora regularizado o registro de imóvel da primeira ocupação para o fim de acolhimento de mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, em 2016, e que já se encontra inserida na rede pública de proteção e já em estágio de autofinanciamento.
Vale salientar que todos os imóveis, prédios ou casas, assim como o sobrado ora visitado, ocupados pelo Movimento Olga Benário, são destinados para o acolhimento das mulheres vítimas de agressões e demais violências domésticas, inclusive abrigá-las, se necessário, como medida de proteção, por um período de poucos dias.
Atente-se que tais espaços, embora não contem com os recursos estatais, pois são autogeridos (Rifas, doações, vendas de ECOBAG e artesanatos) têm as suas vagas contadas e oferecidas pelo Estado como alternativa de proteção, além de destinar as vítimas para orientação e assistência jurídica. Há registros do salto de qualidade quando as vagas são monitoradas e administradas pelo Movimento Olga Benário.
IV - A CASA ALMERINDA GAMA
A visita se iniciou com uma reunião no primeiro piso numa roda de conversa de que participaram as subscritoras desse relatório – Raquel Braga e Simone Nacif – além das advogadas e demais colaboradoras da ocupação: Fernanda Vieira, Mariana Trotta, Monique e Gabriela, que relataram a origem do espaço, funcionamento, objetivo e trâmites judiciais da ocupação.
O imóvel era de propriedade de uma pessoa jurídica cujo objeto era a venda de instrumentos musicais, mas sofreu processo de desapropriação pelo Estado do Rio de Janeiro que, no entanto, jamais ingressou na posse direta do bem.
O espaço em análise conta em seu favor com a Moção de Aplausos da Câmara de Vereadores do Município do Rio de Janeiro, por iniciativa da vereadora Monica Benício.
Foi salientado que o funcionamento da Casa Almerinda Gama como uma CASA DE PASSAGEM tem se demonstrado imprescindível para salvaguardar a vida das mulheres agredidas, fato que ganha relevância aguda ao ser relacionado ao índice alarmante de feminicídios no Brasil.
Os trâmites jurídicos para a manutenção da ocupação contam com o apoio e gestões da Deputada Federal Renata Souza que apresentou uma proposta de indicação legislativa convertida e aprovada como indicação simples de Cessão de Uso de Bem Público do imóvel pelo Estado do Rio de Janeiro ao Movimento Olga Benário. Está em curso um processo administrativo de abertura do CNPJ, requisito para uma futura e eventual cessão.
Relataram que as mulheres chegam à Casa Almerinda Gama encaminhadas por Mandatos Legislativos e por outras vias, como da Clínica da Família do Centro do Rio de Janeiro, mas o projeto já conta com uma divulgação nos movimentos sociais e de mulheres.
Não há formalidades para o encaminhamento e os recebimentos das vítimas – foi citado o exemplo dos encaminhamentos dos próprios 5 estudantes universitários, através dos canais de extensão universitária. Além dos acolhimentos com origem nos panfletos e rede social (Instagram).
Durante a visita, havia uma mulher nas dependências do sobrado, no segundo andar, parte destinada aos quartos, envolvida com atividade de artesanato, tendo relatado que se matriculara em dois cursos no Centro da Cidade. Apresentava-se tranquila, saudável e asseada, concentrando-se na atividade que realizava. Interagiu conosco, demonstrando sentir-se segura no ambiente.
Vale destacar a natureza dos atendimentos prestados pela CASA ALMERINDA GAMA, desde a recepção e/ou abrigo transitório das vítimas e outras observações no curso da visita:
1. Além do suporte pelas advogadas voluntárias, as mulheres acolhidas contam com o encaminhamento para atendimento e orientação jurídica com o NUDEM da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.
2. Atendimento psicológico, aqui englobadas as 8 psicólogas e a Assistente Social em trabalho voluntário;
3. Esse acolhimento, inclusive, pode englobar a transferência para o Estado de origem se a vítima o preferir. E o contrário também ocorre, encaminhamentos de São Paulo para o Rio de Janeiro, por exemplo, com o apoio da Casa Almerinda Gama e do Movimento Olga Benário;
4. Foi limitado o acolhimento ao número de 6 mulheres, mais pelas condições econômicas para alimentar, vestir e adquirir itens higiênicos (pois não recebe recursos públicos, sendo autogerida por contribuições voluntárias) do que pelo que poderia comportar o espaço (dimensões físicas para abrigar ao menos até uma dezena de mulheres concomitantemente);
5. Há uma parceria com a Clínica da Família para onde as mulheres que precisam de atendimento médico são encaminhadas pela Casa Almerinda Gama.
6. São promovidos debates e cursos de formação política e “Letramento em Gênero”, nas universidades, por coletivos de advogadas feministas objetivando contribuir para a ruptura do ciclo de agressões até nas relações futuras, pois algumas mulheres não percebem a violência moral e psicológica, identificam apenas a violência física.
7. A Casa Almerinda Gama sobrevive financeiramente com recursos de apoiadores diretamente ou pela plataforma “Apoia-se”, atividades culturais com cobrança de ingresso, Rifas, Brechós nas Universidades promovidos pelo Movimento Olga Benário.
V – O ESPAÇO FÍSICO
O imóvel é um sobrado antigo, contando com um imenso salão. No térreo, dotado de estantes na extensão da parede lateral direita, do chão ao teto, que fazem a vez de armários, compartimentos separados por portas, servindo para guardar objetos recebidos em doação, em maioria peças de vestuário. Ao fundo, cozinha e banheiro, além de um espaço de secretaria (ou escritório), que se forma separado pela decoração. O andar de cima, sala de confraternização, leitura e os quartos.
Os ambientes da parte de cima são arejados e claros. A decoração dos espaços é colorida, motivacional e ornada com as mandalas confeccionadas pelas próprias abrigadas, além de tapetes e quadros e/ou trabalho de coletivo de mulheres. Decoração agradável cercando todos os ambientes. Percebe-se o cuidado a transparecer um astral de acolhimento. Mesmo o espaço térreo, menos luminoso, conserva a agradável sensação dos demais cômodos.
Há uma sala ampla com poltronas ao redor de uma mesa de centro, próxima às grandes janelas que deixam entrar fartamente a luz natural. Num canto, está uma estante com livros infantis, brinquedos e jogos educativos.
Em todos os ambientes há livros de literatura, didáticos, de arte e sobre cultura brasileira. A localização beneficia as mulheres acolhidas, uma vez que se situa no coração da cidade, com acesso ao transporte de todo o tipo e direção, possibilitando a reintegração social e familiar aconselhável, assim como o exercício de atividade laborativa, o que contribui para a autonomia no direcionamento de sua vida. Ao lado, está instalado o Projeto Arco-Íris para acolhimento de pessoas LGBTQIA+.
Foi relatado que encontraram o prédio em total abandono e cheio de entulho, sendo promovida a limpeza e conservação desde a ocupação. Segundo informações fornecidas pelas gestoras e advogadas que nos receberam, arquitetas voluntárias fizeram uma avaliação e emitiram laudos certificando a inexistência de riscos estruturais no prédio. Também mencionaram a possibilidade de um projeto arquitetônico de reforma do espaço, respeitando suas características históricas de imóvel tombado.
VI – OBSERVAÇÕES FINAIS
O Estado do Rio de Janeiro não possui nenhuma outra CASA DE PASSAGEM para acolhimento de mulheres vítimas de violência doméstica, havendo tão somente Casas Abrigos
Os Abrigos são locais sigilosos fortemente protegidos para onde as mulheres são encaminhadas quando existe concreto risco de vida para si e/ou seus filhos. Neles, as mulheres ficam apartadas da vida cotidiana, emparedadas, quase privadas de sua liberdade para resguardo de sua vida.
Já a Casa de Passagem se destina a um amparo urgente e momentâneo que retira as mulheres do ambiente tóxico e violentam, fornece as orientações imprescindíveis, acompanham para os atendimentos indicados, disponibilizam um teto, alimento, vestimenta pelo período necessário para que elas possam se proteger imediatamente, direcionar suas decisões, retornar para entes queridos que as acolham e até encontrar um lugar seguro para viverem.
Na visita de observação, foi possível constatar que a Casa Almerinda Gama exerce esse papel.
Com efeito, o ambiente físico é conservado com muita limpeza e cuidado, sendo perceptível a serenidade no espaço silencioso e tranquilizante.
As profissionais voluntárias fornecem um serviço qualificado desde a gestão do espaço e do projeto até cada atuação concreta em proveito das mulheres vítimas de violência doméstica, com destaque à assistência jurídica de excelência que pudemos constatar tendo em vista que o Direito é a nossa área de atuação.
Ora, existe uma omissão estatal na disponibilização de Casas de Passagem para a prestação do serviço essencial e urgente à proteção imediata dos Direitos Humanos das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar.
Por sua vez, as mulheres, titulares dos Direitos Humanos à igualdade, à incolumidade física, psicológica e emocional, a sua autonomia, à saúde, à educação e à informação (dentre inúmeros outros) e principais destinatárias dos serviços almejados, identificaram a necessidade de promoverem por suas próprias forças a sua defesa.
Demais disso, o prédio encontrava-se abandonado há décadas sem cumprir sua função social, como imposto pela Constituição da República em seu artigo 5º, XXIII.
Por outro lado, o Estado do Rio de Janeiro é um ente federativo com dever constitucional de fornecer os serviços prestados por uma Casa de Passagem para mulheres vítimas de violência doméstica e familiar contra a mulher. Aliás, reconhecendo o abandono do bem, promoveu a desapropriação, mas jamais teve a posse direta do imóvel.
Dessa forma, diante de tudo o que foi relatado, ante os princípios expressos na Constituição da República, dados os objetivos e valores defendidos pela Associação Juízas e Juízes para a Democracia, considerados os Direitos Humanos das mulheres descumpridos desde as violências de gênero nos mais diversos ambientes, sendo o mais perverso deles o doméstico, até a constatada a omissão do Estado em assegurar uma Casa de Passagem para o acolhimento provisório para as mulheres vitimadas, concluímos que a Casa de Passagem Almerinda Gama confere ao imóvel, pela ação concreta, uma função social de profunda densidade.
Como já afirmado alhures, “com atenção para a história de organização e luta pelos direitos, as mulheres sempre construíram e conquistaram o reconhecimento de seus direitos na resistência em movimentos populares, enfrentando insurgentemente o direito positivado e fazendo valer suas reivindicações oficialmente negadas pelo Estado ao longo da história.” (Lopes, Simone Dalila Nacif, Oliveira Maria Helena Barros de. Meu corpo, minhas regras: mulheres na luta pelo acesso ao serviço público de saúde para a realização do aborto seguro. Saúde em Debate [en linea]. 2019, 43(4), 20- 33[fecha de Consulta 26 de Octubre de 2023]. ISSN: 0103-1104. Disponible en: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406369064004)
A afinal foi assim que a sufragista Almerinda Gama, mulher pobre, preta e nordestina conquistou ao lado de outras mulheres incríveis o direito 10 de votarem e serem votadas, tendo ela sido a única mulher a votar como delegada na Assembleia Nacional Constituinte de 1933. (https://vejario.abril.com.br/cidade/trajetoria-sufragista-almerinda-farias-gama)
Rio de Janeiro, 26 de outubro de 2023