“Traidor da Constituição é traidor da pátria. (...) Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.
Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações.” (Ulysses Guimarães)
Lapa - Rio de Janeiro, 30 de novembro de 2024.
O mundo contemporâneo vem passando por grandes transformações que, no rastro dos avanços tecnológicos, vêm modificando as estruturas das relações de trabalho e da própria produção, os laços de sociabilidade humana e a real possibilidade de construção de uma sociedade democrática. A perda de relevância do trabalho industrial convencional, o fim da proteção do trabalhador como regra geral, a expansão dos negócios em linha, das redes sociais e do trabalho organizado em torno de plataformas digitais (uberização do trabalho) modificam completamente as formas de organização das classes trabalhadoras, as quais passam a não contar mais com uma proteção legislativa e, consequentemente, jurisdicional efetiva, tensionando os laços humanos, em afronta à democracia tal como até hoje praticada nas sociedades ditas ocidentais.
Nesse contexto, proliferam os meios autoritários que ampliam a repressão às classes trabalhadoras, em especial nas periferias, com a militarização crescente das polícias, das guardas municipais, das milícias, até mesmo das escolas – enfim, uma militarização da vida.
Em todo o mundo, as redes sociais têm sido usadas pela extrema direita para a difusão de desinformação, criação de narrativas negacionistas e conspiratórias e ataques às instituições representativas e aos poderes constituídos. Galvanizada em torno de uma agenda de costumes retrógrada, misógina, lgbtfóbica, xenófoba, essa extrema direita, de cunho neofascista, avança sobre as bases eleitorais populares e de periferia, constituindo-se como um nefasto movimento de massas contra a democracia e a inclusão social. A partir desta agenda de costumes retrógrada, obtém artificial e parcial apoio popular para articulações golpistas, como no ataque às sedes dos três poderes em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, e, com isso, reforça as iniciativas antipopulares nos terrenos do controle social, da precarização e da degradação do trabalho, da expansão infinita dos mercados e da intensificação da repressão à população, em especial na periferia. O neofascismo em rede social é a nova forma política do neoliberalismo econômico, retrocedendo direitos e garantias conquistados ao longo de dois séculos de luta das classes trabalhadoras, e mantendo-as sob crescente controle militarizado.
Nos últimos dias, o Brasil ficou chocado com a apresentação do relatório final do inquérito sobre a tentativa de golpe de Estado de 2023, em que se evidenciou um plano detalhado e articulado para assassinato do Presidente e do Vice-Presidente da República eleitos, e de ao menos um Ministro do Supremo Tribunal Federal, plano este gestado e desenvolvido por altos oficiais das Forças Armadas e autoridades de destaque do Governo anterior, de dentro do Palácio do Planalto. As investigações da Polícia Federal evidenciam que tropas de elite do Exército e oficiais de alta patente tramavam contra a democracia e a vida de autoridades eleitas e articulavam denúncias sabidamente falsas sobre fraude eleitoral como via de mobilização popular contra o novo governo, visando impedir sua posse e constituir um governo golpista, de viés autoritário, a começar por sua origem. Ainda segundo aquele relatório, Jair Bolsonaro sabia de todos os passos do plano e detinha o domínio efetivo de comando dos meios utilizados para a trama golpista que, afinal, não se materializou em virtude da não adesão da maior parte da cúpula militar, da falta de apoio internacional e da legitimidade do governo democraticamente eleito.
A gravidade dos fatos revelados pelas investigações policiais traz à tona o papel degradado e degradante que as forças armadas desempenharam e seguem desempenhando em sua relação com a política, de resto vedada pela Ordem Constitucional Democrática. Ainda que o alto generalato não tenha aderido ao plano golpista, tampouco tomou iniciativas que se impunham para barrá-lo, como denunciar e responsabilizar os seus autores, tornando públicos os gravíssimos fatos descobertos. Além de bradarmos com decisão “sem anistia para o 8 de janeiro”, é preciso organizar as forças populares para que gritemos todos juntos e com determinação – RESPONSABILIZAÇÃO DOS TRAIDORES DA CONSTITUIÇÃO E DA PÁTRIA, PRISÃO AOS GOLPISTAS DO 8 DE JANEIRO. Nessa linha, faz-se necessário medidas para desmilitarizar a vida, desmilitarizado as polícias e as guardas municipais, bem assim renovando o ensino militar de modo a focar na defesa da democracia.
Como já dito, o ascenso destes ataques às instituições democráticas não decorrem apenas de sonhos autoritários de candidatos a ditador. Repousa, de fato, na necessidade de dar forma autoritária ao aprofundamento da supressão de direitos das classes trabalhadoras, avançar na subtração de direitos sociais, no enfraquecimento dos mecanismos de sua defesa, como a Justiça do Trabalho, fragilizar e precarizar o trabalho e suas formas de organização e protesto, ao tempo em que amplifica o Estado policial repressor sobre pobres, pretos, periféricos, imigrantes. A agenda de costumes conservadora visa apenas atrair adesão popular a um programa que, de fato, é brutalmente antipopular e contra as trabalhadoras e os trabalhadores, e contra toda forma de regulamentação ou limitação da lógica perversa do mercado e à ação multiplamente predatória dos grandes conglomerados econômicos: aniquilamento da resistência popular, aniquilamento dos direitos trabalhistas, aniquilamento dos povos tradicionais e de suas culturas, aniquilamento do meio ambiente e de uma perspectiva de desenvolvimento econômico inclusivo e sustentável e da possibilidade de resistência e organização do povo.
A defesa consequente dos segmentos que estão no centro dos ataques desta agenda neoliberal conservadora – trabalhadores, mulheres, negros, populações originárias, imigrantes, pessoas LGBTQIAPN+, diante deste quadro, não se pode concretizar apenas nos limites de uma luta identitária de cunho liberal; ela somente pode se dar através da articulação profunda destas pautas com o resgate da centralidade do trabalho nas propostas democráticas e inclusivas de sociedade futura, bem assim da desmilitarização da vida. Uma grande rearticulação de lutas interseccionais que compreenda que a forma concreta e a finalidade dos ataques atuais a estas populações não são fruto apenas de um discurso moralista reacionário exacerbado, mas de um ataque frontal às limitações constitucionais à exploração absoluta do trabalho, em um retrocesso histórico ao século XIX, com suas jornadas brutais de trabalho e ausência de regulações protetivas dos trabalhadores. Devemos articular as agendas de respeito aos direitos humanos destas populações e reconhecê-las, também e fundamentalmente, como pessoas submetidas a uma brutal exploração como força de trabalho e à crescente repressão militarizada, que atinge estas pessoas com um peso ainda maior e mais desproporcional.
A luta decidida pelo fim da precarização do trabalho, assim como pelo fim do regime de trabalho 6x1, neste contexto, e a defesa de um horizonte do trabalho fundado em um regime de 4x3 devem estar no centro do debate e da movimentação social promovidos pelas forças democráticas do país, além da defesa dos sindicatos e dos movimentos sociais, da auto-organização e da Justiça do Trabalho como instituição protetiva de tais direitos sociais.
A AJD conclama toda a sociedade brasileira e toda a sociedade civil organizada a defender o Estado Democrático de Direito, a Constituição, os Poderes Constituídos, as liberdades asseguradas pela Constituição, os direitos sociais das classes trabalhadoras, o regime de trabalho de 4x3, a Justiça do Trabalho, os mecanismos de contenção e regulação dos mercados e a desmilitarização da vida, apoiando iniciativas, inclusive legislativas, neste sentido. Defende, também, o afastamento cautelar, observado o devido processo legal, dos militares envolvidos com a trama golpista.
Viva a Constituição e viva a Democracia.