PRESERVAÇÃO DO JUIZ NATURAL

Exmo Sr. Dr. Ministro Nelson Jobim, Presidente do Conselho Nacional da Justiça

A Associação Juízes para a Democracia, entidade sem fins lucrativos e corporativos, vem, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, para encaminhar a presente representação ao Conselho Nacional de Justiça, com PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS para que seja assegurada em todas as Unidades da Federação a fiel aplicação do princípio do Juiz Natural.

É finalidade estatutária da Associação Juízes para a Democracia o respeito absoluto e incondicional aos valores próprios do Estado Democrático de Direito e a defesa da independência do Poder Judiciário, não só perante os demais poderes como também perante grupos de qualquer natureza, internos os externos à Magistratura.

O princípio do Juiz Natural assegura a imparcialidade da decisão, com juiz determinado por lei que antecede ao conflito. É instrumento de garantia da independência do juiz –a livre designação de magistrados mantém uma lógica que favorece a hierarquia e a submissão e esvazia o conteúdo da inamovibilidade, que, mais do que simples prerrogativa do magistrado, é garantia do cidadão.

Como várias práticas ofensivas ao princípio do Juiz Natural ainda permanecem em nossos tribunais, mesmo após a edição da Emenda Constitucional nº 45/04, resolvemos oficiar a este órgão de controle que detém, entre suas competências, a atribuição de zelar pela autonomia do poder Judiciário e pelo cumprimento das normas do estatuto da Magistratura, expedindo atos regulamentares ou determinando providências (art. 103-B, §4º, inciso I, CF).

Observamos, em especial, duas condutas que violam frontalmente o princípio do Juiz Natural, ainda recorrentes em nossos Tribunais:

a-) a existência em diversas unidades da Federação, v.g. São Paulo, Pernambuco e Ceará, cargos de Juízes Substitutos ou Auxiliares de entrância final ou especial, vitalícios, sob o regime de livre designação da Presidência dos Tribunais;

b-) a existência de normas regimentais de concentração de decisões em matéria liminar em membros da direção do Poder Judiciário, como ocorre em São Paulo, em relação a apreciação de medidas urgentes em processos originários, como Habeas Corpus e Mandados de Segurança.

Como se demonstrará adiante, nas duas hipóteses está sendo malferido o princípio do Juiz Natural, razão pela qual o reclamo para que providências sejam expedidas por esta Corte para que as violações cessem, preservando-se as normas constitucionais e dispositivos da Lei Orgânica da Magistratura, como se expõe.

I- Os Juízes Auxiliares/Substitutos nas entrâncias finais.

Depreende-se o princípio do juiz natural das garantias constitucionais, inseridas no art. 5º, da CF, segundo as quais: a-) ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente (art. 5º, III); b-) não haverá juízo ou tribunal de exceção (5º, XXXVII). Articula-se, o princípio, diretamente, com os predicados que moldam a independência do magistrado, notadamente a inamovibilidade.

Consoante o magistério de Ada Pelegrini Grinover, a garantia do juiz natural desdobra-se em três conceitos: a-) só são órgãos jurisdicionais os instituídos pela Constituição; b-) ninguém pode ser julgado por órgão constituído após a ocorrência do fato; c-) entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja.

A Constituição Federal de 1988 não prevê mais a figura de juízes de jurisdição plena com exclusiva função de substituição e auxílio, como fazia a Constituição de 1967 e outras que a antecederam.

Em relação à Justiça Federal dispunha o artigo 118 da CF de 1967:

Art 118 - Os Juízes Federais serão nomeados pelo Presidente da República, dentre brasileiros, maiores de trinta anos, de cultura e idoneidade moral, mediante concurso de títulos e provas, organizado pelo Tribunal Federal de Recursos, conforme a respectiva jurisdição.
§ 2º - A lei fixará o número de Juízes de cada Seção e regulará o provimento dos cargos de Juízes substitutos, serventuários e funcionários da Justiça.

Posteriormente, a EC 7 deu nova redação à matéria ao dispor no artigo 123 e seu § 2º:

“Artigo 123. Os juízes federais serão nomeados pelo presidente da República, escolhidos, sempre que possível, em lista tríplice, organizada pelo Tribunal Federal de Recursos”.
“§ 2o. A lei poderá atribuir a juízes federais exclusivamente funções de substituição, em uma ou mais seções judiciárias e, ainda, as de auxílio a juízes titulares de varas, quando não se encontrarem no exercício de substituição”.

No âmbito da Justiça Estadual a Carta Política de 1967 previa a figura do juiz de jurisdição temporária cuja atribuição, dentre outras, era substituir os juízes de direito.

Art 136 - Os Estados organizarão a sua Justiça, observados os arts. 108 a 112 desta Constituição e os dispositivos seguintes:
§ 1º - A lei poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça:
b) Juízes togados com investidura limitada no tempo, os quais terão competência para julgamento de causas de pequeno valor e poderão substituir Juízes vitalícios;
c) Justiça de Paz temporária, competente para habilitação e celebração de casamentos e outros atos previstos em lei e com atribuição judiciária de substituição, exceto para julgamentos finais ou irrecorríveis.


No mesmo sentido também havia previsão na Lei Orgânica da Magistratura Nacional, datada de 1975.

Art. 17 - Os Juízes de Direito, onde não houver Juízes substitutos, e estes, onde os houver, serão nomeados mediante concurso público de provas e títulos.
§ 4º - Poderão os Estados instituir, mediante proposta do respectivo Tribunal de Justiça, ou órgão especial, Juízes togados, com investidura limitada no tempo e competência para o julgamento de causas de pequeno valor e crimes a que não seja cominada pena de reclusão, bem como para a substituição dos Juízes vitalícios.
§ 5º - Podem, ainda, os Estados criar Justiça de Paz temporária, competente para o processo de habilitação e celebração de casamento.

Atualmente, porém, não mais existe no seio da magistratura estadual ou federal juiz com exclusiva função de substituição ou de jurisdição limitada.

Os magistrados gozam da garantia da inamovibilidade, não existindo no texto Constituição Federal e na Lei Orgânica da Magistratura Nacional qualquer distinção entre juiz titular e juiz com função de substituição, até porque, ambos têm jurisdição plena, não havendo razão axiológica para tal desigualdade.

Consoante ensinamento de Castro Nunes:

“A inamovibilidade abrange, na conceituação doutrinária do instituto, o grau e a sede, isto é, o direito de não ser destituído (a que chamamos vitaliciedade) e o de não ser transferido ou removido (inamovibilidade, na linguagem do nosso direito positivo).

A inamovibilidade se define, pois, em nosso direito pela conservação na sede do juízo. ‘Consiste’, disse o Supremo Tribunal, ‘no direito de ser conservado na comarca, secção ou têrmo – sede do juízo – salvo promoção ou permuta a ‘que anuir o juiz’ (acórdão de 26 de julho de 1938, apel. Cível n. 6.204)”.

Os juizes só podem ser movidos por vontade própria ou por interesse público, hipótese última em que há a necessidade da prática de um ato de indisciplina ou ilícito do removido; do contrário, não pode o juiz titular ou substituto ser sacado da condução de nenhuma unidade judiciária.

A figura do juiz substituto referida no inciso I do art. 93 da CF/88 diz respeito ao juiz que ainda se encontra em estágio probatório, juiz vitaliciando.

Decorrido o biênio do efetivo exercício o magistrado adquire todas as garantias: vitaliciedade, irredutibilidade de vencimentos e inamovibilidade, independentemente de ser titular de uma vara ou juiz com função de substituição.

A despeito da disciplina constitucional, remanesce em nosso ordenamento práticas que violam a inamovibilidade dos juízes vitalícios e, por consequência, o princípio do juiz natural.

É o que ocorre em diversos Estados, como os de São Paulo, Pernambuco e Ceará, com a livre designação de magistrados nas Capitais.

A livre designação de juízes vitalícios, que já incorporam funções de juiz titular, por disposição da Presidência do Tribunal de Justiça ou de juízes diretores de circunscrição, viola frontalmente o princípio do Juiz Natural. Por intermédio do sistema de substituições por livre designação, é possível deslocar-se juiz em razão de um ato administrativo, mesmo durante a relação processual.

O cumprimento do princípio do Juiz Natural exige a garantia que os casos sejam distribuídos normalmente a juízes fixados na jurisdição daquela vara por critérios legais de acesso, com a garantia constitucional de inamovibilidade. O jurisdicionado sabe, de antemão, que goza de um juiz natural para dirimir seu conflito e que esse juiz não será compulsoriamente afastado, senão por regras expressas em lei.

Pela Lei Orgânica da Magistratura, a remoção compulsória de magistrado é punição, dependente de processo administrativo e decisão motivada, tomada pelo quórum de 2/3. A designação administrativa permite o afastamento da inamovibilidade do juiz por singela publicação, desmotivada e sem processo.

Não há garantia alguma ao cidadão de que o juiz de seu processo, nesse sistema de livre designação por autoridade administrativa, não seja retirado do processo durante o julgamento ou até mesmo em razão dele, como já ocorreu por inúmeras vezes. De outra parte, não há garantias ao juiz para que possa exercer de forma livre, independente e imparcial a jurisdição, se depende de consentir, agradar ou se submeter a decisões administrativas para permanecer na condução do processo.

Só está a salvo de pressões, para o exercício consciente e sereno de seu ofício, com total independência e sem controle que não seja o derivado da própria atividade recursal, o juiz que não possa ser afastado de onde exerce sua jurisdição por critérios de conveniência administrativa.

O devido processo legal é uma garantia e um direito de todos. A possibilidade da administração do Judiciário mover discricionariamente um juiz com jurisdição plena, retirando-o da condução de um acervo processual ou designando-o para conduzir um outro, sem que se saiba prévia e claramente as razões de tal movimentação, implica na violação do devido processo legal, porque ferido foi o princípio do juiz natural em razão da violação ao princípio da independência e da imparcialidade do juiz, como visto.

No âmbito penal, os efeitos dessa flexibilidade são ainda mais graves e evidentes porque ampliam o poder persecutório do Estado, na medida em que dão ao administrador o Poder de retirar ou designar o juiz para conduzir um determinado acervo processual e, por via direta, um ou vários processos que o integram.

Em relação a estas considerações, observe-se que no Estado de São Paulo, existem 330 (trezentos e trinta) Juízes Auxiliares da Capital, de livre designação da presidência, criados pelo Código Judiciário do Estado, em 1969, sob a égide da legislação constitucional anterior . São todos vitalícios, classificados em Terceira Entrância, com duração de aproximadamente 13 anos para o próximo degrau da carreira. Durante este período, são suscetíveis à livre designação por ato administrativo da Presidência do Tribunal de Justiça. As designações não são motivadas nem há prazo fixo para que o magistrado cumpra a designação, que pode se alterar entre as centenas de cargos da Capital .

No Estado de Pernambuco, os atos da Presidência do Tribunal de Justiça têm por base os §§ 2º e 3º do art. 52 da Constituição do Estado de Pernambuco e os art. 127 e 129 do Código de Organização Judiciária do Estado . No Estado do Ceará, os cargos de Juiz Auxiliar da Comarca de Capital, de entrância especial, foram criados pela Lei nº 12.698, de 28.05.97 .

Em todos os exemplos referidos, o que se tem é a infringência ao princípio do Juiz Natural e, mais diretamente, à regra constitucional da inamobibilidade do juiz vitalício.

Faz-se necessário, assim, que este órgão de controle, formule entendimento no sentido de que os princípios constitucionais a respeito do Juiz Natural sejam preservados, os predicados da magistratura (como a inamovibilidade) não continuem a ser infringidos, preservando-se ademais as regras atinentes aos magistrados constantes da Lei Orgânica, para afastar dos ordenamentos estaduais a existência de juízes vitalícios de livre designação.


II- A concentração de poderes em vice-presidentes para análise de medidas liminares.


Também ofende o princípio do Juiz Natural a delegabilidade de atribuição jurisdicional que ocorre particularmente no Estado de São Paulo, com a concentração de poderes nas mãos de vice-presidentes para a análise de medidas liminares.

Como ensina Frederico Marques, por juiz competente deve ser entendido “o órgão judiciário cujo poder de julgar derive de fontes constitucionais” (Juiz Natural, Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 46, p. 447).

Nas ações de competência originária de cada Tribunal, cabe ao Relator Sorteado, juiz constitucionalmente competente, a prestação jurisdicional, devendo conhecer, desde logo das questões suscitadas. No impedimento deste, supre-lhe a falta o revisor ou o desembargador imediatamente subsequente.

Assim, o juízo de admissibilidade do recurso, positivo ou negativo (exame dos requisitos, pressupostos processuais e condições da ação), também incumbe ao Relator Sorteado, inclusive o exame da deserção e desistência do recurso e outras causas extintivas do exercício da via recursal. O mesmo ocorre com as medidas urgentes e pedidos cautelares, matéria atinentes à apreciação do recurso.

Segundo o regimento interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no entanto, “Compete aos vice-presidentes do Tribunal, conforme a partilha regimental de atribuições jurisdicionais, entre outras funções: I- oficiar como juízes preparadores de mandados de segurança, "habeas corpus" e outros feitos da competência originária do Tribunal, antes da distribuição, e solucionar incidentes surgidos depois da publicação dos acórdãos, nesses mesmos feitos (art. 194, RITJSP).

Assim, todas as medidas urgentes são apreciadas pelos vice-presidentes, afastando a decisão do Juiz natural (o Relator Sorteado).

Antes da promulgação da Emenda 45/04, de notório conhecimento que os processos nos tribunais de São Paulo eram represados, somente sendo distribuídos após a apreciação das questões urgentes pelos vice-presidentes e, mais, quando atingia-se a cota semanal atribuída a cada juiz ou desembargador.

Este sistema provocou um atraso na distribuição de quase quinhentos mil processos, como é também de conhecimento público, sendo a situação da segunda instância no Estado de São Paulo, a que motivou o estabelecimento de norma explícita contida na Reforma do Judiciário, determinado a distribuição imediata de processos.

Mesmo com a determinação da distribuição imediata de processos, ainda permanece no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (o único de segunda instância em face da extinção dos antigos Tribunais de Alçada), a apreciação de medidas liminares pelos vice-presidentes.

A atribuição de função jurisdicional de um para outro órgão é em nosso direito obstada pelos princípio do juiz natural e da indelegabilidade da jurisdição. A substituição do órgão ao qual é atribuído por lei o conhecimento e a decisão das causas em certa jurisdição é prevista apenas para situações excepcionais, incontornáveis, como de impedimento, afastamento, férias e ausências ocasionais.

Por isso a distribuição de ações de competência originária dos tribunais, como Habeas Corpus e Mandados de Segurança devem ser feitas sempre ao relator, a quem incumbe, naturalmente, decidir sobre eventual medida liminar, requisitar informações e submeter o feito à apreciação da turma julgadora.

A sistemática em vigor no TJ, além de discrepante da praticada pelo STF (RISTF, artigos 191, 192, 203, 263), STJ (RISTJ, artigos 179, 180, 192) e outros tribunais, ofende aos princípios constitucionais acima mencionados. A substituição do juiz natural do caso pelo vice-presidente está em desacordo com direito fundamental assegurado pela Constituição da República a todo cidadão.

O despacho inicial nos casos mencionados é frequentemente tão importante quanto à decisão final.

Subtrair do Juiz Natural a apreciação de medida liminar em mandado de segurança ou em Habeas Corpus, significa retirar do magistrado vinculado ao processo significativa parcela de sua jurisdição, atribuindo-a a outro órgão. Nenhuma providência de caráter prático pode justificar a violação do princípio do Juiz Natural, delegando-se, por mera disposição regimental, a outros juízes a apreciação de questões atinentes a um processo já distribuído.

A sistemática, tradicional neste Estado, mas desconhecida em outras unidades da Federação, burla o sentido da distribuição dos processos a totalidade dos juízes da referida seção (Criminal, Pública ou Privado), ademais de aguçar uma ilegal e desmesurada concentração de poderes nas mãos de poucos juízes, esvaziando por completo o próprio sentido da distribuição dos processos.

A Associação Juízes para a Democracia já representou anteriormente ao Tribunal de Justiça para que cessasse a concentração da decisão de medidas urgentes junto aos vice-presidentes, como já havia sido anteriormente pleiteado junto ao extinto Tribunal de Alçada Criminal. Não há até o momento a alteração da sistemática, havendo decisão administrativa do Órgão Especial que posterga a distribuição imediata de processos nos termos do art. 1º da Resolução 204/05.

Como se vê, tanto em relação a livre designação de juízes vitalícios pela Presidência, quanto na concentração de poderes na apreciação de medidas urgentes, tem-se frontal violação do Princípio do Juiz Natural e à garantia da inamovibilidade.

Só o respeito ao princípio do Juiz Natural assegura a independência e imparcialidade do juiz; não há, de outra parte, como preservar-se a independência do Poder Judiciário, malferindo a independência do juiz dentro do poder.

Tendo em vista que faz parte da competência deste E. Conselho, zelar pela autonomia do poder Judiciário e pelo cumprimento das normas do estatuto da Magistratura, expedindo atos regulamentares ou determinando providências (art. 103-B, §4º, inciso I), requeremos que sejam expedidos atos regulamentares fixando o entendimento, com esteio nas normas constitucionais supra-referidas, de que:

a-) não é possível o sistema de livre designações a juízes vitalícios, que só devem ser removidos dos cargos onde exerçam sua judicatura, pelas normas contidas da Lei Orgânica da Magistratura e;

b-) não é possível a concentração de poder jurisdicional em mãos de vice-presidentes de Tribunais, subtraindo a competência dos juízes naturais, inclusive para a apreciação de medidas urgentes nos feitos a ele distribuídos.


São Paulo, 20 de julho de 2005


Marcelo Semer
Presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia