A Associação Juízes para a Democracia, em conjunto com outras entidades, encaminhou aos senadores manifestação sobre o projeto do Código de Processo Penal em tramitação no Senado. Chamamos a atenção da sociedade para aspectos extremamente preocupantes que marcam o caráter autoritário da proposta, pese a afirmação de sua inspiração garantista. O mais expressivo exemplo é a limitação do uso do Habeas Corpus em níveis que somente o Ato Institucional nº 6 teve a ousadia de impor.
São Paulo, 02 de outubro de 2009.
Excelentíssimo Senhor Senador.
As entidades que este subscrevem, a propósito do Projeto de Lei que trata do Código de Processo Penal, ora em trâmite na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, e tendo em vista a existência de aspectos nele contidos que geram grave desconforto e mal estar no espírito do Estado Democrático de Direito, vêm, à público, destacar o seguinte.
Em que pesem os termos da exposição de motivos do projeto, na qual se externa a promessa de romper com o modelo de inspiração fascista instaurado com o Decreto-Lei 3.689/41, o texto do Projeto registra passagens que sinalizam verdadeiro retrocesso na caminhada da sociedade brasileira em prol da democracia processual e dos direitos e garantias individuais.
O tratamento conferido ao Habeas Corpus, com a limitação infraconstitucional do âmbito de seu cabimento, e em conseqüência, com reflexos na legitimação ativa, vai de encontro não só com o projeto constitucional, que não impôs limitações ao writ, como também com toda a história de lutas que levou ao seu reconhecimento. Na medida em que restringe uma garantia de liberdade, o Projeto de Reforma do Código de Processo Penal compromete um dos valores que justificam a própria justiça penal.
Não se pode esquecer que, desde sua consagração normativa, o Habeas Corpus exerce uma função democratizante, por se tratar de uma ação popular em prol da liberdade, e de controle da legalidade, o que contribui de forma decisiva para o desenvolvimento social e político do país, inclusive ao impedir a exploração das classes sociais historicamente criminalizadas.
O Habeas Corpus existe como instrumento de controle da persecução penal, como verdadeiro instrumento de limitação do poder penal, sempre que exista a ameaça, ainda que remota, da restrição da liberdade de um indivíduo. Por se tratar de um remédio constitucional, as únicas restrições legítimas à utilização do Habeas Corpus são aquelas que podem ser extraídas do próprio texto constitucional. O Habeas Corpus é, e sempre foi, ação popular, de legitimação difusa, e há motivos para continuar a ser assim.
Em tempos democráticos, não se justifica acolher práticas autoritárias, que despem o Habeas Corpus de sua roupagem garantista. Ação autônoma de impugnação destinada a proteger direito fundamental da pessoa à liberdade de locomoção contra toda espécie de ilegalidade, coação ou abuso de poder de agente do Estado, o Habeas Corpus constitui garantia constitucional que não se esgota na tutela direta e imediata do direito de ir e vir. Resguarda outros direitos que tenham a liberdade de locomoção como condição ou suporte de seu exercício. Presta–se a remover ou evitar atos manifestamente ilegais ou exteriorizadores de constrangimento ilegal, que possam causar reflexos sobre a liberdade das pessoas.
No Brasil, fruto de construção histórica, o Habeas Corpus conquistou dimensão e relevância, que não se coadunam com o acanhado perfil da coação ilegal limitada à ausência de justa causa para a prisão ou sua decretação, como dispõe o artigo 636, inciso I, do Projeto do Código de Processo Penal. Menos ainda com a vedação do Habeas Corpus às hipóteses em que previsto recurso com efeito suspensivo, nos termos do parágrafo único do artigo 636 do Projeto. Restrição que mais se assemelha ao Ato Institucional n. 6, de 1 de fevereiro de 1969, de triste memória, ao proibir o Habeas Corpus originário ao Supremo Tribunal Federal, em substituição ao recurso ordinário da decisão denegatória da ordem.
Verte da interpretação conjunta dos referidos dispositivos que os conceitos de coação ilegal e justa causa ficam reduzidos a espaço mínimo da convivência democrática. Refogem do amparo e tutela do Habeas Corpus: fato não previsto como infração penal no ordenamento jurídico, fato imputado não constitui infração penal, comprovada existência de coisa julgada, indiciamento indevido, direito de permanecer calado e suas implicações. Situações relevantes em que a violação ao status libertatis se apresenta de evidente gravidade a exigir remédio constitucional da estatura do Habeas Corpus, assegurado que deve ser o leque de garantias, que integram o devido processo legal.
De igual sorte, ao admitir a aplicação da pena sem procedimento de reconstrução dos fatos em contraditório, o projeto suprime uma das principais conquista da democracia processual, a saber: o julgamento com base em provas. Ao prescindir do contraditório e desconsiderar a presunção de inocência, o Projeto de Reforma do Código de Processo Penal desqualifica os direitos fundamentais.
Outro dispositivo que aparenta não maltratar o garantismo penal, mas que, de perto, revela conteúdo indisfarçavelmente autoritário, é o art. 271 do Projeto, que, junto do art. 272, disciplina o proposto procedimento sumário.
Informado pelos valores celeridade e efetividade processual, o Projeto admite a aplicação antecipada de pena privativa de liberdade, desde que haja acordo entre defesa e acusação e desde que a punição seja balizada pelo mínimo cominado, com possibilidade de ser fixada abaixo dele. O procedimento sumário não teria, então, rito – devido procedimento –, transformando-se tão só forma antecipada de aplicação de pena.
Não há democracia sem respeito ao Estado de direito; não existe Estado de direito sem respeito à ampla defesa e ao devido processo legal, especialmente no tocante à aplicação de pena privativa de liberdade. Nas palavras de nossa Suprema Corte, é “o Estado de direito que viabiliza a preservação da prática democrática (...). Aqui e ali, no entanto (...), o Estado de direito tem sido excepcionado, com o que o direito de defesa resulta sacrificado. Pois é disso que se trata, na raiz, quando cogitamos do Estado de direito: direito de defesa” (STF, HC 95.009-4, rel. Min. Eros Grau).
Não é democrática previsão que admita, sem que se percorra iter processual, a aplicação de pena privativa de liberdade (ainda que prevista substituição por penas restritivas de direitos), impossibilitando o exercício amplo do Direito de Defesa, que se há de dar sempre, ainda que o acusado concorde em se submeter à punição proposta pelo Ministério Público. É que o exercício do Direito de Defesa é garantia individual que extrapola o interesse particular, adentrando na esfera do interesse público; é fator de legitimação política do processo e da solução que se toma ao final da ação, pouco importando que haja submissão voluntária do acusado à punição aventada na tese acusatória.
Toque-se na indispensabilidade do processo, tendo em vista que o procedimento sumário se aplicaria a feitos que tratam de crimes graves, com pena máxima cominada de até oito anos. Imagine-se que se apresente nos autos cidadão como autor de crime de sonegação fiscal (art. 1º da Lei nº 8.137/90), de evasão de divisas (art. 22 da Lei nº 7.492/86), de concussão (art. 314 do Código Penal) ou de redução de outrem à condição análoga de escravo (art. 149 do Código Penal) e réu e Ministério Público acordassem punição sem processo, nos termos do art. 271 do Projeto; sem o iter procedimental probatório, seria impossível à sociedade, representada pelo Estado-Juiz, verificar se foi mesmo aquele acusado o responsável pelos fatos articulados na inicial, ou se a autoria é, em verdade e por exemplo, imputável a terceiro, que o “laranja” pretende proteger pela autoacusação. A celeridade procedimental seria chanceladora, nesta hipótese, de impunidade do verdadeiro autor do crime.
Doutra sorte, a previsão legal viraria verdadeira “faca no pescoço” do réu acusado indevidamente, que poderia ver-se tentado a capitular diante da ameaça ministerial de postulação por aplicação de pena mais grave, a menos que aceite a sugestiva opção do acordo antecipado, abreviadora de alegado sofrimento a ser causado pelo curso “inconveniente” do processo.
Releva lembrar, em abono ao que se acaba de firmar e lembrando que o Projeto exige a confissão do acusado como requisito para a atuação do art. 271, que o Superior Tribunal de Justiça editou súmula considerando nula a desistência de produção de outras provas, ainda que se tenha a confissão de adolescente (Súmula nº 342/STJ), a demonstrar que se exige mais do que a confissão de acusado para legitimar processo e punição que possa envolver privação da liberdade.
Registre-se, que não se desconhece a atuação do instituto noutros ordenamentos jurídicos (o plea bargaining americano, o patteggiamento italiano etc.). O que se pondera, contudo é a inconveniência de importação acrítica de instituto que lá fora parece funcionar, mas que é inadequado à realidade brasileira, posto que os ambientes constitucionais e as culturas de proteção a garantias fundamentais são deveras diversos.
A democracia quer, exige, na verdade, o exercício da Defesa como antecedente necessário à aplicação de penas a crimes graves, não a substituindo o acordo entre Ministério Público e acusado. Todo e qualquer dispositivo que vede ou a dispense, há de ser tomado por autoritário e, assim, inconstitucional.
De outra parte, o artigo 46, §3º, da lei projetada prevê que, em todos os casos de ação penal pública condicionada à representação, a vítima deve retornar à delegacia de polícia, mediante intimação, após o término das investigações, para ratificar o ato anteriormente produzido, sob pena de decadência do direito de punir estatal.
Além de prever expediente que traz incremento burocrático à persecução e dificulta a concretização do valor celeridade no processo penal, em descumprimento à garantia constitucional da sua duração razoável, o dispositivo não se coaduna com a preocupação que o projeto demonstra com a figura da vítima no processo penal, externado pelo título V – Dos direitos da vítima e pela própria exposição de motivos, que esclarece ter a comissão de juristas pretendido “fomentar uma cultura de respeito à condição da vítima pelos órgãos públicos”.
A opção de sujeitar a vítima a novamente comparecer ao ambiente da delegacia de polícia para renovar um ato anteriormente praticado, revivendo a cena delituosa, contribui para agravar a vitimização secundária provocada pelos atos da persecução penal. Já é conhecida a dificuldade que as vítimas possuem de noticiar o fato à autoridade policial e comparecer em juízo para prestar declarações, caminhando o preceito em comento no sentido inverso ao da simplificação de procedimentos.
Esse procedimento dificulta o acesso à justiça criminal à vítima de infrações penais. A obrigatoriedade da renovação da representação, nesta altura, é injustificada, já que a vítima compareceu regularmente à delegacia para formalizar o ato, oportunidade em que lhe será informado que possui o direito de retratar-se até o oferecimento da denúncia. O não exercício deste direito é o bastante para externar a vontade do ofendido de prosseguimento do feito.
Se a previsão em comento é inadequada em relação às infrações penais em geral, se aplicada aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, seria extremamente nociva. É cediço que as vítimas desta espécie de violência sofrem pressões das mais variadas, pela família e pela comunidade, – seja em função de questões econômicas, sociais ou afetivas – para renunciarem ao direito de representação. O exercício do direito legítimo de punir do Estado, nestes casos, transforma-se num peso, num ônus, suportado, por exemplo, pelas mulheres vítimas de violência, que, normalmente, apenas noticiam a violência sofrida em situações extremas, quando as infrações já se apresentam como corriqueiras, graves e incontornáveis.
Em uma sociedade marcada por desigualdades sociais, autoritarismos e desinformação, não existem condições objetivas para racionalizar o processo à custa da garantia constitucional do Habeas Corpus, para a formação democrática do consenso em matéria penal, e para a imposição de ônus às vítimas.
As entidades subscritoras, diante da importância desse projeto de lei, que apresenta distorções capazes de comprometer conquistas históricas da sociedade brasileira, reafirmam que não se pode ceder à tentação populista e utilitarista, que clama por repressão em curto espaço de tempo como remédio (diga-se: ineficaz) aos graves problemas sociais que assolam a população, e pugnam pelo respeito à ordem constitucional.
ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA – AJD
Luís Fernando Camargo de Barros Vidal
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS – ANADEP
André Luís Machado de Castro
ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE DEFENSORES PÚBLICOS – APADEP
Juliana Garcia Belloque
INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS – IBCCRIM
Sérgio Mazina Martins
INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA - IDDD
Flávia Rahal Bresser Pereira
CPP
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