“O Brasil pode se transformar, agora, no paraíso dos torturadores”
Para juíza, Ministro Eros Grau entrará nos anais do Judiciário como relator do processo que desvelou que o Judiciário brasileiro não é capaz de cumprir a sua função de garantir direitos humanos
Por Tatiana Merlino
O julgamento do STF é mais uma “página infeliz da nossa história”, define a juíza Kenarik Boujikian Felippe acerca da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que julgou, no dia 29 de abril, por sete votos a dois, improcedente a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, movida pela Ordem dos Advogados do Brasil. O processo questionava a abrangência da Lei da Anistia, de 1979, por considerar que os crimes de tortura, desaparecimento e assassinatos cometidos por agentes do Estado não se inscrevem entre os crimes políticos e conexos previstos na lei de 1979. No entanto, por 7 votos a 2, o STF julgou pela improcedência da ação.
A juíza afirma que Ministro Eros Grau entrará nos anais do Judiciário “como relator e voto condutor do importante processo que desvelou, com todas as tintas e letras, que o Judiciário brasileiro não é capaz de cumprir a sua função de garantir direitos humanos, no que foi acompanhado por mais seis ministros”. Acompanharam o voto do ministro relator Eros Grau, pela manutenção da lei, os ministros Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marco Aurélio, Celso de Mello e o presidente do STF, Cesar Peluso. Já os ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto entenderam que a ação da OAB era parcialmente procedente.
Para Kenarik, integrante da Associação Juízes Para a Democracia (AJD), a opção do Estado Brasileiro/STF representa “um rompimento da essencialidade da condição humana, o que é inaceitável para o estágio de civilização que pretendemos e que a comunidade internacional espera de todos que queiram estar dentro dela”.
Caros Amigos- Qual é a sua opinião sobre a decisão final do julgamento da ADPF no STF? Como avalia os votos dos ministros?
Kenarik Boujikian Felippe - O Ministro Eros Grau entrará nos anais do Judiciário como relator e voto condutor do importante processo que desvelou, com todas as tintas e letras, que o Judiciário brasileiro não é capaz de cumprir a sua função de garantir direitos humanos, no que foi acompanhado por mais seis ministros.
Este é o julgamento mais triste e deplorável do STF, especialmente porque deturpou a história e usou elementos políticos falseados para justificar uma decisão que menospreza a luta pela democratização no Brasil, embora, à modo dos sofistas, muitos ministros manifestaram-se, como que estivessem a resguardar estes valores.
Não faz jus à história dos ministros que foram cassados pela ditadura militar, Vitor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva, que foram seguidos, em ato solidário de aposentadoria pelos Ministros Gonçalves de Oliveira e pouco depois por Lafayette de Andrade. Eles foram cassados, com base no AI-5, porque decidiam contra as arbitrariedades do regime ditatorial e não atenderam os interesses dos que roubaram o poder do povo brasileiro. Fizeram parte do Tribunal que honrou o país, na medida em que resistiram às muitas arbitrariedades e violência. Tiveram coragem moral, que é o mínimo que se espera de um Ministro da mais alta Corte, para salvaguardar os direitos humanos. Deram importantes decisões com base no direito protegido por habeas-corpus (como excesso de prazo na prisão, liberdade de cátedra, liminar preventiva para evitar constrangimento ilegal, etc...). Uma das coisas mais chocantes neste julgamento é que fica claro que o Judiciário deturpou completamente os fatos históricos e usou-os como base do julgamento. Isto nada mais é que uma opção política. Sete ministros fizeram afirmativas, com algumas nuances, que a anistia era um acordo. Ora, acordo é palavra compatível com paridade de condições e sabemos que não foi isto que aconteceu. A lei de anistia chegou 15 anos após o Golpe Militar de 64, os opositores do regime estavam presos, exilados, mortos, desaparecidos, tinham sido torturados. Ainda assim, a resistência nunca teve fim, inclusive dentro das prisões. À toda evidência, a luta encontrava limites no poder armado e violento. Conseguiram a anistia, mas em nenhum momento, a anistia reivindicada e gritada em manifestações, mote da campanha: “anistia ampla, geral e irrestrita”, abarcava os torturadores, o que, acreditem, foi afirmado no julgamento. Isto beira à loucura! Haveria de ser aceitar a anistia, com a redação que viesse, para avançar minimamente, o que não altera, absolutamente a posição dos que a reivindicam e dos que a apoiavam.
A alegação que foi apresentada no julgamento, de que não se vê possibilidade de reinterpretar a lei, decorridos trinta anos, mostra-se verdadeira falácia, pois recentemente, o STF fez exatamente isto em relação à lei de Imprensa, editada muitos antes da lei de anistia, quarenta anos antes. O julgamento do STF é mais uma “página infeliz da nossa história”.
O que ainda pode ser feito juridicamente para impedir a impunidade em relação aos crimes cometidos por agentes do Estado durante a ditadura? Recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos é uma possibilidade? Em caso afirmativo, como seria feito o processo? E qual seria o prazo para se ingressar uma ação na corte?
Penso que, juridicamente, há que se recorrer às instâncias regionais e internacionais, pois o Brasil firmou uma série de compromissos com a ordem mundial e regional e nesta medida tem obrigação de respeitá-los. Tramita um processo na Corte Interamericana de Direitos Humanos, referente ao Caso Araguaia. Para chegar na Corte, o processo já passou pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que decidiu que os elementos que constam dos autos admitem o julgamento do Brasil, por haver indicativos de descumprimento dos pactos firmados pelo país, no patamar de direitos humanos. É preciso lembrar que a Corte já tem jurisprudência sobre o tema. No Caso Almonacid Arellano, considerou que os crimes contra a humanidade incluem cometimento de atos inumanos, como o assassinato, perpetrados em um contexto de ataque generalizado ou sistemático contra a população civil, bastando que um ato ilícito seja cometido para que se produza um crime de lesa-humanidade. Considera também que a proibição de cometer crimes de lesa-humanidade é uma norma de ius cogens e a penalização é obrigatória de acordo com o direito internacional. Na sentença prolatada pela Corte Interamericana (Caso La Cantuta vs Peru), de 2006, referiu-se aos crimes de lesa-humanidade e explicitou que ocorrem quando: comete-se um ato inumano em sua natureza e caráter; como parte de um ataque sistemático ou generalizado; em resposta a uma política não necessariamente adotada de maneira formal; dirigido contra uma população civil. No tocante aos desaparecimentos forçados, é considerado um dos crimes mais bárbaros que se pode cometer contra a humanidade, em razão das consequências perversas para uma multiplicidade de pessoas. Além da própria vítima e da sociedade, exerce potencial dano para a família, amigos, uma vez que fragmenta o indivíduo. A Corte Interamericana manifestou-se quanto ao crime de desaparecimento forçado em diversas oportunidades. Destaca-se a sentença do Caso Goiburú y otros vs Paraguai, de 2006. Refere-se à atos decorrentes da ação coordenada entre as Forças Armadas da Argentina e do Paraguai, no âmbito da Operação Condor, perpetradas entre 1974 e 1977. A Corte considerou que o crime de desaparecimento forçado e a correlata obrigação de investigar e punir os responsáveis tem o caráter de ius cogens. A Corte Interamericana de Direitos Humanos também já decidiu sobre o aspecto da imprescritibilidade, como no caso Albán Cortejo vs. Equador, de 2007, no caso Barrios Altos vs. Peru, de 2001. Trata-se de norma vigente, em função do direito internacional consuetudinário. No processo do Caso Araguaia, há audiência marcada para este mês de maio de 2010 e, decorridos alguns meses, a Corte prolatará a sentença, razão pela qual os esforços se concentram doravante neste processo.
Quais serão os próximos passos do “Comitê contra a anistia aos torturadores”?
O Comitê foi formado para o caso brasileiro da lei de anistia e as pessoas e entidades envolvidas pretendiam que o STF pudesse se sensibilizar com a nossa história e revelar aos ministros a importância do julgamento para a consolidação da democracia. O Comitê teve adesão de muitos brasileiros e pessoas de diversas partes do mundo, cerca de 21 mil, e levou esta mensagem para a Corte. O que temos certeza deste processo é que: “A única luta que se perde é aquela que se abandona”. Penso que todos nós temos compromissos com o nosso passado e com as futuras gerações. Ficou muito claro que muitos brasileiros e brasileiras e a comunidade internacional não querem que a impunidade perpetue. Assim, continuaremos a caminhar para que no Brasil se faça a correta interpretação da Lei da Anistia e não permitir crer que foram perdoados os que torturaram, mataram e executaram desaparecimentos forçados, pois não são crimes políticos e nem conexos. São crimes contra a humanidade, insuscetíveis de anistia e imprescritíveis, conforme os tratados internacionais subscritos pelo Brasil e pela Constituição Federal.
Com essa decisão no STF, como fica a imagem do Brasil em relação aos direitos humanos diante da comunidade internacional?
Não era esta a expectativa internacional em relação ao país, especialmente porque o Brasil quer cumprir um papel de vanguarda na América Latina e na ordem global e para tanto é indispensável efetivo, e não discursivo, compromisso com os direitos humanos. Alguns atores chaves já começaram a se manifestar repudiando a decisão do Estado Brasileiro/Judiciário, como a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, peritos do Comitê Contra a Tortura e entidades como Anistia Internacional e diversas outras da América Latina. É forçoso reconhecer que o Brasil rompeu com a ordem de obrigações internacionais e o resultado deste processo é um marco de violação de direitos humanos. Várias entidades latino americanas ressaltam as suas preocupações porque temos atrelada à anistia o tema da extradição, que tem como requisito a similitude, ou seja, uma extradição somente é possível se o crime também é punível no Brasil. O STF decidiu que estes crimes não são puníveis no Brasil porque anistiados, logo, não poderá extraditar pessoas que praticaram crimes da mesma espécie.
O Brasil pode se transformar, agora, no paraíso dos torturadores. A opção do Estado Brasileiro/STF foi um rompimento da essencialidade da condição humana, o que é inaceitável para o estágio de civilização que pretendemos e que a comunidade internacional espera de todos que queiram estar dentro dela.
SOBRE O JULGAMENTO DA ADPF 153
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