Vera Lúcia Santana: "o grande desafio da Justiça Eleitoral, hoje, é mobilizar a cidadania coletiva"

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Foto: Arquivo Pessoal

 

Aos 62 anos, Vera Lúcia Santana possui uma longa trajetória como ativista antirracista e experiência em cargos públicos. Baiana de nascimento, construiu sua vida na capital do país, quando chegou lá aos 18 anos para estudar na faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília).

A advogada é membra da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Frente de Mulheres Negras do DF. Atualmente, Vera compõe a lista tríplice de candidatos à vaga de Ministro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), cuja escolha cabe ao presidente Jair Bolsonaro.

Apenas a sua presença em tal lista já é um feito histórico, visto que é a primeira vez que uma mulher negra chega tão perto de ocupar uma das instâncias máximas do poder judiciário. A Associação Juízes para a Democracia manifestou apoia à candidatura de Vera ao TSE. Ela é certamente uma figura inspiradora neste mês em que se comemora a mulher negra, latina e caribenha. Acompanhe abaixo entrevista que ela concedeu ao portal da AJD:

1 – O processo para o cargo de Ministro do TSE anda travado. O nome da senhora consta na lista tríplice enviada ao Presidente Jair Bolsonaro. A senhora acredita na possibilidade do seu nome ser acolhido, mediante o fato do presidente ter um pensamento abertamente racista?

Vera: Como advogada, eu preciso acreditar no regular funcionamento de nossas instituições jurídicas. Qual o procedimento constitucional? O Supremo Tribunal Federal apresenta ao excelentíssimo presidente da república uma lista com três nomes. Ele está contido a um desses nomes, mas ele não tem nada que o vincule à nomeação. A partir de notícias da imprensa, parece que ele não se agradou de nenhum dos nomes. O meu nome é o único feminino e foi a primeira vez que uma advogada negra integra a lista.

A composição da bancada de juristas, no âmbito do TSE, já teve e tem mulher branca, mas nunca teve uma mulher negra. Então, seria uma excelente oportunidade dada pelo Supremo Tribunal Federal para que a presidência da república ousasse nesse campo.

Então, eu preciso acreditar que tenho essa possibilidade, na medida em que, constitucionalmente, eu componho essa lista tríplice.

2 – Na sua visão, quais as principais demandas que o TSE precisa atuar para o aperfeiçoamento do processo eleitoral no Brasil?

Vera: Eu acho que o grande desafio da Justiça Eleitoral, hoje, é mobilizar a cidadania coletiva. O tribunal vem fazendo esforços neste sentido, através da constituição de observatórios de entidades da sociedade civil, tem alargado e muito o escopo dos diálogos, inclusive com representações diplomáticas.

A minha experiência com eleições remonta ao processo de redemocratização do país. Então, eu já morava em Brasília em 1986, quando das eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, tive que atuar como advogada eleitoral. Foi um aprendizado na prática. Vivi toda essa construção de aperfeiçoamento do processo em si, das ferramentas. Destaque à votação eletrônica, que realmente é uma conquista democrática, tecnologicamente a cada eleição o sistema se aperfeiçoa.

E aí, porque digo que o grande desafio é essa chamada? Do ponto de vista estrutural do sistema de justiça eleitoral, a máquina está bastante azeitada. Você tem a organização permanente da Justiça Eleitoral sem qualquer solução de continuidade. Você muda a composição da magistratura eleitoral, mas a estrutura da justiça eleitoral trabalha diuturnamente e cotidianamente.

O que a gente tem hoje? O mundo virtual favorece muito a rapidez e a celeridade, mas também o falseamento da verdade em rede. Com a mesma agilidade da multiplicação das verdades, tem as falsidades. As famosas fake News. Por isso digo que o grande desafio é essa chamada coletiva de exercício da cidadania, para que cada eleitor e cada eleitora se sinta um pouco fiscal da cidadania. Não basta eu ter meu candidato ou minha candidata, isso não é suficiente para impedir que desvios adulterem a soberania do voto.

Hoje, as ferramentas tecnológicas podem corromper não o processo da votação, mas o processo do debate democrático, que orienta e confere à consciência a escolha do voto.   

3 – A senhora possui uma longa experiência dentro do funcionalismo público, atuando também em outras frentes de luta social importantes. De que forma isso pode agregar na sua gestão do TSE?

Vera: Eu tenho um histórico profissional extremamente diverso, desde sindicatos, câmara legislativa até funções governamentais, tanto no âmbito do Distrito Federal, quanto no âmbito do governo federal, com distintos executivos e diferenciadas composições partidárias. Por exemplo, eu trabalhei no governo do presidente Sarney, Fernando Henrique. No DF, com o governador Cristovam Buarque, Rodrigo Rolemberg, Agnelo Queiroz. E paralelamente, atuei na coordenação jurídica de muitas dessas eleições.

Eu vivi muito intensamente, no plano do direito eleitoral, todo o processo de organização da campanha, da postulação jurídica em si, a elaboração de petição, de defesa de sustentação oral perante os tribunais. Então, eu conheço o círculo completo de uma eleição, nunca me ative apenas a uma atuação jurídico-processual.

Ao mesmo tempo por ter trabalhado em órgãos centrais de governo, também atuei no sentido de prevenção desses agentes públicos não cometerem violações a condutas regradas, para que não houvesse um aparelhamento da máquina pública.

Eu trago na minha história profissional um acumulado de vida em todas as posições no acompanhamento do processo eleitoral, só nunca exercitei a posição de magistrada. E por conhecer também da administração pública, acho que tenho um contributo que distingue bastante um eventual assento na nossa magistratura eleitoral superior.

 

"Não basta elegermos negros e negras, precisamos eleger parlamentares democráticos, e se são democráticos não podem ser racistas"

 

4 – Infelizmente, tem sido uma rotina candidaturas de figuras negras, após serem empossadas em seus cargos eletivos, receberem uma série de ameaças. Como o Tribunal Superior Eleitoral pode combater isso?

Vera: Eu penso que a gente vai combater essa recusa à igualdade racial, combatendo o racismo e promovendo a inclusão. A gente tem a expectativa de que a representação negra cresça nessas eleições, inclusive em virtude de medidas de ação afirmativa que a Justiça Eleitoral vem implementando, e que isso aporte efetivamente com uma presença mais aproximada do que é a nossa presença na população brasileira.

A garantia para o exercício dos nossos mandatos vai se dar pelo incremento da nossa presença, da nossa própria representação.

Após a diplomação dos eleitos, o papel da Justiça Eleitoral fica menor para o exercício do mandato, pois as ameaças de morte que são praticadas contra homens e mulheres negras que conquistam algum mandato vão para a esfera criminal.

A Justiça Eleitoral contribui, e vem fazendo, na medida em que avança no cumprimento de políticas afirmativas. Agora, esse garante, para o exercício do mandato, ele vem, prioritariamente, da própria sociedade. Porque se você tem uma sociedade antirracista, que faz a aposta da igualdade racial, que projeta um país democraticamente racial ou racialmente democratizado, você vai ter parlamentos com representações cidadãs que não vão mais recusar a presença de parlamentares de presenças negras.

Quando a gente vê, nas Câmaras de Vereadores, que aceita ameaças contra seus pares representativas da negritude, especialmente quando é LGBT, que defende a liberdade e o direito da vida humana dessa população, é porque a representação democrática está falhando.

Não basta elegermos negros e negras, precisamos eleger parlamentos democráticos, e se são democráticos não podem ser racistas. E aí precisam ser antirracistas! Não podem permitir, não podem anuir e não podem se cumpliciar de processos autoritários de corte de cabeças, como recentemente vimos a Câmara de Vereadores de Curitiba cassou o mandato de um vereador negro, um advogado.

A mim, como uma advogada negra, eu vejo aquilo como um precedente de maneira muito temerosa. Inclusive, porque o ato de cassação traz na sua essência também uma profunda intolerância religiosa, pois se pretensamente a acusação sobre o vereador Renato era de que ele teria violado princípios religiosos, a partir da manifestação do pensamento no espaço religioso. Os representantes da igreja, que supostamente teria sido violada, se manifestaram dizendo não ter havido a propalada ameaça. Então, se a Câmara cassa é porque a Câmara traz em si uma composição de recusa à nossa representatividade negra e tudo o que a gente carrega como expressão. Inclusive de uma religiosidade que não é hegemônica, ao contrário, é duramente perseguida por forças fundamentalistas.

Se a gente tem uma democracia representativa que não assegura a plenitude da representação da soberania do voto, e as perseguições às nossas representações são uma prova disso, alguma coisa está errada e eventualmente a gente vai ter que buscar o manejo de institutos democráticos outros para não ficarmos tão rendidos a composições e uma correlação de forças autoritária, que retire o mandato dos nossos representantes, porque é isso que a representação negra vem experimentando, especialmente nos municípios.

5 – Estamos no mês da mulher negra, latina e caribenha. Como alguém que atua no sistema de justiça, de que forma você vê a presença das mulheres negras no poder judiciário? Quais as melhorias você viu ao longo do tempo e o que ainda precisa ser feito?

Vera: Tem tudo por ser feito! A advocacia negra no Brasil, particularmente a exercida pelas mulheres negras, ainda vive situações absurdas em que a ausência física de mulheres negras, quer nas representações do sistema da OAB, quer nas carreiras públicas, é o que tem de mais evidente. E isso, por si só, diz muito.

Nós tivemos no ano passado as eleições da Ordem dos Advogados do Brasil, pela primeira vez tivemos paridade de gênero e uma política de cota racial de 30%, e o que aconteceu? Em vários estados, aqui no Distrito Federal a gente identificou isso também, a auto declaração grotescamente fraudada. À época, eu escrevi alguns artigos sobre isso. Eu vi amigas minhas, que sempre se colocaram publicamente em solidariedade à minha luta, de repente auto declararem negras para compor chapa e dizer que estavam fazendo cota.

A advocacia tem assento na composição dos tribunais. Eu, por exemplo, embora não esteja num processo de Quinto Constitucional feito pela OAB, sou uma representação da advocacia. No Quinto Constitucional típico, a própria Ordem quem conduz o processo, que tem assento nas bancas examinadoras dos concursos para magistratura, Ministério Público, Defensorias, enfim, tem concurso a OAB está presente.

Quando a advocacia frauda a sua composição, ela antes, e acima de tudo, nega o direito à representação negra na direção do sistema da OAB, e mais do que isso, ela nega a legitimação da política de cotas para os concursos públicos. Então, a gente tem uma ausência muito grave, tanto que você o resultado na composição do Conselho Federal da OAB, temos apenas uma negra como conselheira efetiva. Tem outras como suplentes, mas como efetiva temos apenas a Dra. Silvia Souza. E se você for para os conselhos seccionais a coisa se reproduz.

Que eu saiba, até hoje teve só uma desembargadora negra no TJ da Bahia. O TRF da 1ª região teve uma desembargadora federal negra, Dra. Neusa, que é baiana. Então, a ausência é a grande marca. Isto significa que você como advogada está muito mais vulnerável diante das violações das prerrogativas profissionais.

Veja, o nível de exigência para você chegar numa delegacia e precisa apresentar a carteira da Ordem. Claro, todo mundo tem que apresentar. Só que essa prática não costuma ser feita com homens brancos principalmente, mesmo com mulheres brancas. Há recorrência de procedimentos mínimos e básicos como esse.

Há o próprio distrato na condução de audiências, aquela situação absurda que o país inteiro viu há uns quatro anos, envolvendo a advogada Valéria em Nova Iguaçu, no estado do Rio de Janeiro, na qual ela foi agredida por uma conciliadora, mas que acabou encontrando a anuência e a legitimação por parte do juiz ou juíza. Tudo isso mostra o nível de dificuldades em que a gente exercita a atividade profissional.  

6 – Quando a gente ouve que representatividade importa, quais aspectos é preciso levar em consideração para que não seja levada de forma vazia?

Vera: Pessoalmente, sempre fui muito crítica e muito ciente do alcance e conteúdo da representatividade. Eu iniciei a advocacia num tempo ainda muito adverso, o próprio país estava ainda sob ditadura, então, eu era muito só, na perspectiva da ausência de representatividade. Eu era sempre a única. Isso, obviamente, era e é ainda muito incomodativo.

A própria exposição e visibilidade que se deu ao meu nome, por ter sido pela primeira vez uma negra a compor uma lista tríplice, ou seja, não é nem nomeada, apenas por integrar uma lista, isso diz muito.

Eu tenho muita preocupação de que a palavra representatividade passe a expressar um desvio nas questões centrais que envolvem a presença, a inclusão e o combate ao racismo, e consequentemente, a inclusão e a participação de pessoas negras em todas as esferas de poder, em todos os espaços em que isso se transforme num fato quase que anômalo.

 

"A representatividade para mim, só se revifica se esse homem e essa mulher tem um compromisso com a luta e a pauta antirracista"

 

Então, a representatividade para mim, só se verifica se esse homem e essa mulher tem um compromisso com a luta e a pauta antirracista. Porque termos uma representação negra sem o compromisso do combate ao racismo persistente, porque é estrutural e fundante da organização desse país, não significa nada. E às vezes até atrapalha, pois se faz uma conta meramente matemática sem agregar qualquer valor à luta dos povos quilombolas, por exemplo.

A representatividade ela não é meramente estética, menos ainda quantitativa, ela é substantiva. Ela é conceitual, só verifica se preenchido o pressuposto do compromisso com a cidadania, com a efetividade da vida democrática-nacional, com o fim do racismo, com a construção de uma democracia racial. Fora disso é nada.

Na medida em que a expressão humana de uma coletividade, de um povo com uma historicidade que tem o povo negro com a construção da riqueza nesse país. Uma representação populacional que é majoritária desse país, e alguém dizer: negro agora virou moda. Eu não quero essa representatividade, isso para mim não é representatividade, nada diz sobre representatividade.

7 – Como a senhora disse, quando começou sua carreira era "a única". Para as demais mulheres negras que começam a ocupar os espaços no judiciário, qual mensagem a se deixar para elas?

Vera: Lutemos coletivamente, solidariamente, fraternalmente, lutemos. Fora desse espaço de luta a gente não tem conquista, a gente não tem vitórias. É o único caminho, eu não conheço outro.