Relatório conjunto do CIMI, FIAN Brasil, JUSTIÇA GLOBAL e ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA para o terceiro ciclo de avaliação do BRASIL no âmbito do Mecanismo de Revisão Periódica Universal da ONU: a situação dos direitos humanos dos povos indígenas – um enfoque no acesso à justiça, na criminalização e entrave jurídicos para efetivar a demarcação de terras dos povos indígenas do Brasil (marco temporal), outubro de 2016.CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO – CIMISDS Edifício Venâncio III salas 309/314 – Brasília – DF – CEP 70.393-902 – Brasil. www.cimi.org.br;Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
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/conselhoindigenistamissionario.O CIMI – Conselho Indigenista Missionário é um organismo vinculado à CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que tem como ação prioritária o apoio à luta dos povos indígenas pela recuperação, demarcação e integralidade de seus territórios. Recentemente, o CIMI obteve status consultivo no Conselho Econômico e Social (ECOSOC) da ONU. FIAN Brasilwww.fianbrasil.org.br; Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
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; SDS, Ed. Venâncio IV, Sala 308. CEP: 70.393-903. Brasília, DF, Brasil.Seção brasileira da FIAN Internacional, a FIAN Brasil atua há 16 anos na promoção dos direitos humanos, com especial atenção ao Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas.JUSTIÇA GLOBALAv. Beira Mar, 406/1207, Centro, Rio de Janeiro/RJ, Brasil – 20021-900 www.global.org.br;Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
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A Justiça Global é uma organização não governamental de direitos humanos que trabalha com a proteção e promoção dos direitos humanos e o fortalecimento da sociedade civil e da democracia. ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIAwww.ajd.org.br;Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
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; Rua Maria Paula, nº 36, 11º andar, Bela Vista, CEP 01319-904, São Paulo, SP, Brasil.Entidade fundada em maio de 1991, formada por juízes brasileiros, que tem por finalidade a democratização do Poder Judiciário e a implementação dos Direitos Humanos.Introdução 1. As organizações da sociedade civil brasileira, focadas no trabalho com direitos humanos e com especial atenção aos povos e comunidades tradicionais do Brasil, dentre eles os povos indígenas, vêm apresentar ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas contribuição relativa ao 3º Ciclo de monitoramento do Brasil pelo mecanismo da Revisão Periódica Universal (RPU)2. Houve pouco avanço do Estado Brasileiro nas questões relativas aos povos e comunidades tradicionais nos últimos anos. Pode-se falar em retrocesso de direitos, conforme fatos e dados que serão apresentados.3. Dentre as variadas facetas deste processo de retrocesso, três fatores se destacaram nos últimos anos e são o foco deste relatório, dada a importância dos mesmos para o efetivo respeito, proteção e promoção dos direitos humanos de povos e comunidades tradicionais do Brasil, em especial dos povos indígenas, quais sejam: a) a violação ao direito dos povos indígenas de acesso à justiça; b) os entraves jurídicos para efetivar a demarcação de terras dos povos indígenas do Brasil, como o marco temporal; c) a criminalização dos movimentos sociais representantes de povos e comunidades tradicionais, bem como das organizações que provêm assessoria a estes movimentos sociais.4. A importância do acesso dos povos indígenas à justiça se dá pela transversalidade de tal questão com todos os direitos humanos de tais povos, bem como a sua defesa frente ao sistema judiciário nacional. A teoria do marco temporal, por sua vez, basicamente impõe limites ao direito originário à terra e ao território, limitando, portanto, um direito basilar, de fundamental importância. Por fim, a criminalização de movimentos indígenas e organizações correlatas impede a realização de todos os direitos humanos de tais povos, dado que o Estado Brasileiro persegue lideranças e dificulta a atuação dos movimentos e organizações de apoio, inviabilizando não só a fruição de direitos como também a plenitude da vida democrática.5. Recomendações estabelecidas no último ciclo de monitoramento do Brasil pela RPU, de 2012, tocavam pontos nos quais o presente relatório é focado (anexo 1) e com base nos fatos narrados a seguir, é obrigatório concluir que o retrocesso se confirma, uma vez que a maior parte das recomendações não foram efetivadas pelo Estado Brasileiro, especialmente as focadas neste relatório. O direito dos povos indígenas de acesso à justiça e violações: O direito de ser parte nos processos afetos aos seus interesses e o dever de serem chamados, nestes processos: 6. Os conflitos atuais envolvendo a terra e o território de povos indígenas no Brasil são, em grande parte, judicializados. Tais conflitos estão diretamente relacionados com fatos ocorridos no século passado, tempo em que as comunidades indígenas enfrentaram violências física, psíquica e cultural, seguidas de um ardiloso processo de espoliação do seu patrimônio e de suas terras, promovido sob a tutela estatal. Dois documentos oficiais: o capítulo sobre Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas da Comissão Nacional da Verdade (CNV)[i]e o chamado Relatório Figueiredo[ii]mostram bem as violações sofridas pelos povos indígenas, particularmente, no período da ditadura civil-militar.7. Até a promulgação da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, em outubro de 1988, os povos indígenas eram tutelados. Em outras palavras, os indígenas foram impedidos de registrar seu patrimônio ou mesmo de ingressar em juízo para resguardá-lo até a citada data, pois não eram considerados sujeitos de pleno direito. Dessa forma, mediante diversos processos, o patrimônio indígena foi dilapidado e suas terras distribuídas a terceiros em processos irregulares.8. Seguindo tais processos, os índios foram retirados de suas aldeias, confinados em reservas artificiais e transformados em pedintes, e chamados de “preguiçosos”. Junto à crescente discriminação racial percebida na sociedade brasileira, foi-se consolidando dentro do Estado Brasileiro o assim chamado “racismo institucional”, em que o próprio Estado e seus agentes tratam de forma discriminatória povos e comunidades tradicionais, dentre eles os indígenas. Por meio desses processos, povos milenares, produtivos, foram subjugados ou simplesmente eliminados.9. Inicialmente, os indígenas estavam sujeitos ao chamado regime tutelar, nos termos do revogado artigo 6º, inciso IV, do Código Civil, de 1916: “Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, e que cessará à medida de sua adaptação”. Vivíamos sob a égide da integração, da assimilação, que encontrava respaldo nas Constituições brasileiras (CF de 1934, artigo 5º, XIX, ‘m’; CF de 1946, artigo 5.º, XV, ‘r’, CF de 1967, artigo 8.º, XVII, ‘o’). Mas a Constituição Federal de 1988 colocou fim ao regime integracionista pois estabeleceu no artigo 231 “[...] são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos origináriossobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Inicia-se o tempo do direito à diferença e às especificidades culturais de cada etnia indígena. O Estado brasileiro deve respeitar as especificidades, diversidades e concepções de mundo – mundividências, ou cosmovisões.10. Os povos indígenastêm o direito a participar diretamente dos processos que versam sobre seus direitos. Neste patamar, dispõem o artigo 232 da CF: “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”. Participar dos processos que lhe dizem respeito é um direito humano dos povos indígenas, vinculado a outros direitos, como ao devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório.11. Os povos indígenas têm capacidade para estar em juízo. No ordenamento jurídico atual, os indígenas são sujeitos coletivos de direitos, através do reconhecimento de suas organizações sociais, deixando para trás a discriminatória tutela e permitindo, assim, o acesso à Justiça, sem, por isso, deixarem de ser indígenas. É o que explica o jurista Carlos Marés[iii]:“A Constituição de 1988 reconhece aos índios o direito de ser índio, de manter-se como índio, com sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Além disso, reconhece o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Esta concepção é nova, e juridicamente revolucionária, porque rompe com a repetida visão integracionista.”12. Os específicos modos de ser e viver dos indígenas, portanto, dependem de um espaço territorial, no qual se desenvolvem a cultura, as crenças e tradições. Por estes motivos é que a terra, para eles, tornou-se o tema central de suas reivindicações.13. Nesta esteira, a nova realidade dos povos indígenas desafia o Poder Judiciário Brasileiro, de certa forma, a superar o seu formalismo desmensurado e nem sempre eficaz.14. Posteriormente, em 2004, houve a promulgação da Convenção 169/OIT, através do decreto nº 5.051/2004, que impõem aos Estados a obrigação de proteção contra a violação de seus direitos, estabelecendo que os povos indígenas podem mover ações legais, individualmente ou por meio de seus órgãos representativos, para garantir a proteção efetiva de tais direitos.15. Ao Poder Judiciário cabe não dar andamento a qualquer processo que tenha possibilidade de atingir a esfera de direitos dos índios, de qualquer natureza, sem que à eles seja possibilitado participarem do mesmo. Eles podem demandar em juízo, por si, e não serem necessariamente representados por quaisquer órgãos, como FUNAI, União, ou mesmo pelo Ministério Público Federal.16.Uma das condutas rotineiras do Estado Brasileiro/Judiciário, que implica em violação de direitos humanos, é que na maioria dos processos, os povos indígenas sequer são chamados para integrarem os mesmos e apresentarem defesa ou manifestação.17. A título de exemplo, destacamos um dos casos mais emblemáticosde violação do direito ao acesso à Justiça. Trata-se do processo da Terra Indígena Guyraroká, do povo Guarani e Kaiowá, no Estado do Mato Grosso do Sul, comunidade que em 2015 foi surpreendida com uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que suspendeu os atos do Ministério da Justiça que, através da Portaria nº 3.219, de 7 de outubro de 2009, declarou de posse permanente do grupo indígena Guarani Kaiowá a Terra Guyraroká, com superfície aproximada de 11.401 hectares. Esta comunidade buscou o apoio de advogados especializados no direito indígena e requereu a nulidade de todos os atos processuais por não ter sido chamada a integrar a disputa. A comunidade fora, portanto, impedida de realizar a sua defesa, considerando que, até a decisão, os indígenas sequer haviam tomado conhecimento da ação judicial.Em resposta, o recurso da comunidade indígena foi negado com o argumento de que “a Funai é o órgão federal do Estado brasileiro responsável pela proteção dos índios e seus bens, ao qual cabem todos os estudos e levantamentos que precedem a demarcação, nos termos do art. 231 da Constituição Federal, bem como da Lei 5.371, de 5.12.1967”[iv].18. Esta decisão de uma das turmas do STF contraria o ordenamento jurídico atual concernente aos povos indígenas, considerando que a Constituição de 1988 não recepcionou a malfadada tutela.19. É imperioso que o Estado Brasileiro/Judiciário passe a incorporar em cada um dos processos judiciais os direitos humanos dos povos indígenas, permitindo e, mais especialmente, possibilitando a participação deles nos processos que são de interesse, mediante informação do trâmite processual. Tratando-se de uma questão de violação de direito humano, questão de nulidade, que pode ser reconhecida de ofício, seria recomendável que o Estado Brasileiro verificasse se nos processos em curso que tangenciem os interesses dos povos indígenas, de qualquer natureza, estes foram chamados à manifestação; em caso negativo, poder-se-ia alegar a nulidade dos respectivos atos processuais.A lentidão dos processos de demarcação de terras 20. Diversas organizações criaram a campanha “Eu Apoio a Causa Indígena”, em dezembro de 2012, que culminou com mais de 20 mil assinaturas colhidas em curto espaço temporal, subscrita por professores, entidades indígenas e indigenistas, intelectuais e artistas. Indicaram no referido documento que foi dirigido ao Estado Brasileiro, por seus três poderes: executivo, judiciário e legislativo, que: “as terras não são demarcadas com a presteza fincada na CF; obras públicas são realizadas sem qualquer diálogo com as comunidades afetadas, descumprindo a necessidade de consulta e participação; órgãos oficiais permanecem vulneráveis às pressões dos poderes econômicos e políticos locais e/ou com estrutura precária. Assim temos o extermínio, a desintegração social, opressão, mortes, ameaças, marginalização, exclusão, fome, miséria e toda espécie de violência física e psicológica, agravada, especialmente, entre as crianças e jovens indígenas”. 21. A normativa nacional (artigo 5º, inciso LXXVIII da Constituição Federal), com o respaldo nos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, exige que os processos tenham tramitação em prazo razoável. A CF estabelece que o prazo para a conclusão das demarcações das terras indígenas (artigo 67 das Disposições Constitucionais Transitórias) é de cinco anos. 22. O processo de demarcação de terras indígenas é de responsabilidade do Estado/Executivo, que não cumpre o seu papel, pois não dá andamento aos procedimentos necessários.SITUAÇÃO ATUAL DAS TERRAS INDÍGENASQUANTO AO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE DEMARCAÇÃOSituação Geral das Terras Indígenas no BrasilQuantidade%Registradas (Demarcação concluída e registrada no Cartório de Registro de Imóveis da Comarca e/ou no Serviço do Patrimônio da União)39835,75· Homologadas (com decreto do Presidente da República e aguardando registro)151,34· Declaradas (com Portaria Declaratória do Ministro da Justiça, e aguardando demarcação)635,66· Identificadas (analisadas por Grupo Técnico da Funai e aguardando decisão do Ministro da Justiça)464,13· A identificar (incluídas na programação da Funai para identificação futura)17515,72Sem providências (terra que não consta na listagem da Funai pra realização de estudo – reivindicada pela comunidade)34931,35· Reservadas (demarcadas como “reservas indígenas” à época do SPI) ou Dominiais (de propriedade de comunidades indígenas)615,48* Com Restrição (terra que recebeu portaria do presidente da Funai restringindo o uso da área ao direito de ingresso, locomoção ou permanência de pessoas estranhas aos quadros da Funai)60,53Total1.113100Fonte: Cimi / Secretariado Nacional / agosto de 2016. GOVERNO DILMA ROUSSEFFNA DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS GOVERNO DILMA1.º ANO(2011)GOVERNO DILMA2.º ANO(2012)GOVERNO DILMA3.º ANO(2013)GOVERNO DILMA4º ANO (2014)GOVERNO DILMA5º ANO (2015)GOVERNO DILMA5º ANO (2016)TOTALDecretos de Homologação 030701--070422Portarias Declaratórias do Ministro 06020301031126Despachos do Presidente da Funai Aprovando Identificações0911060204941Decreto de Desapropriação----------0101Portaria de Restrição de Área010102--020107Decreto de Retificação Fonte: Cimi / Secretariado Nacional / agosto de 2016.23. Registre-se que os processos demarcatórios de terras indígenas acabam por ser jurisdicionalizados. No que se refere ao Poder Judiciário, é inegável que a demora no julgamento dos processos, em todas as instâncias, relativos à demarcação de terras indígenas tem sido problema a ser combatido e que agrava ainda mais a notória situação de violência, pela qual passam os povos indígenas. 24. Nos casos de demarcação das terras indígenas, a razoabilidade do trâmite processual deve encontrar os seus limites nos parâmetros fixados para a União. A demora do Judiciário, nessa matéria, rompe com o trato dos direitos humanos, agrava a situação das comunidades indígenas, especialmente em razão da violação dos direitos consagrados no artigo 231 da Constituição Federal, que reconhece aos povos indígenas o respeito à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.25. Urge a agilização do processamento e julgamento dos mencionados processos e que seja determinada a prioridade absoluta para o Poder Judiciário de todo o Brasil, que poderá assim fazer através do Conselho Nacional de Justiça, órgão da estrutura do Poder Judiciário, que tem fixado metas de cumprimento a todos os tribunais do país, em temas e recortes variados.26. Também fundamental que este mesmo órgão proceda à coleta de dados, de todo o Brasil, como tem feito em diversas matérias, para que se tenha o mapeamento minucioso de todos os processos em trâmite, andamento e seu respectivo resultado. O CNJ tem ferramentas próprias para que esta alimentação de dados possa ser feita em termos nacionais.A Teoria Jurídica do Marco Temporal e Tradicional 27. O Poder Judiciário Brasileiro tem impactado direitos alcançados e positivados na Constituição de 1988, de modo a diminuir o seu conteúdo de garantia. Nesse sentido, a chamada Teoria do Marco Temporal e Tradicional tem sido apontada como uma grande ameaça aos direitos humanos dos povos indígenas.28. A tese é relativamente recente, tendo sido adotada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação nº 3.388, relativa à Terra Indígena Raposa Serra do Sol.29. Tal julgamento abriu precedente que põe em risco o direito originário dos povos indígenas. Apesar de o STF ter frisado que as terras que não estavam ocupadas em 1988, não perdem a tradicionalidade em razão de atos de não índios, outros tribunais e alguns ministros do STF vêm oferecendo uma interpretação a esta teoria que desconsidera o violento processo que levou várias comunidades indígenas para longe de suas terras, ao arrepio das constituições anteriormente válidas no Brasil.30. A tese do Marco Temporal e Tradicional tem levado o Poder Judiciário a desconsiderar as gravíssimas violações de direitos ocorridas em pleno período de ditadura militar, que fizeram com que indígenas não pudessem estar em seu território no ano de 1988.31. Importantes doutrinadores do direito nacional têm indicado a ilegitimidade de muitas das condicionantes do julgamento da Ação relativa à Terra Indígena Raposa Serra do Sol. José Afonso da Silva, por exemplo, indica a arbitrariedade da data estipulada como marco temporal pelo citado julgamento: 05 de Outubro de 1988, data da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil[v]. O autor também elenca uma série de argumentos valiosos contra a tese do marco temporal, como, por exemplo, o fato de que a Constituição simplesmente reconheceu o direito dos povos indígenas ao seu território tradicional. Em outras palavras, tal direito já existia anteriormente à Constituição de 1988, não fazendo sentido lógico que ele passasse a valer somente com a promulgação desta[vi].32. Outro fator fundamental de inconstitucionalidade da tese do marco temporal se refere ao chamado esbulho renitente: segundo a construção do STF, haveria uma exceção ao marco temporal nos casos em que a comunidade indígena não estivesse no território exigido devido à ação persistente de terceiros (esbulho). Contudo, a definição da exceção do esbulho renitente só veio a ser melhor delineada pelo STF posteriormente ao julgamento da Ação nº 3.388, com o ARE 803.462-AgR/MS, incluindo somente efetivo conflito possessório que se manteve no tempo até 5 de outubro de 1988. Sendo assim, caso a comunidade indígena já tivesse sido completamente expulsa de seu território antes de tal data, não se configuraria a exceção[vii].33. A teoria do marco legal, principalmente quando considerado o histórico de atrocidades e violações de direitos envolvendo tais povos antes da promulgação da Constituição de 1988, que se pode observar, em parte, nos dois documentos acima referidos, viola o direitos dos povos indígenas de terem acesso às suas terras, se lhe foram retirados.A criminalização dos movimentos indígenas e organizações correlatas34. A criminalização cometida pelo Estado Brasileiro e por outros atores sociais contra os povos indígenas vem se acentuando nos últimos anos, também como resultado de diversos processos sociais e políticos anti-indígenas.35. Nos últimos anos, os parlamentares representantes do agronegócio (os chamados ruralistas) se movimentaram a fim de retomar a tramitação de instrumentos danosos aos povos no âmbito do Congresso Nacional, como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/00, aprovada por Comissão Especial em outubro de 2015, que inviabiliza novas demarcações de terras indígenas e titulações de terras quilombolas e legaliza a invasão e a exploração das terras indígenas já demarcadas, que estão na posse e sendo preservadas pelos povos.36. Na esteira da tramitação da PEC 215/00 e de outras proposições legislativas anti-indígenas, parlamentares da bancada ruralista, dirigentes de sindicatos rurais patronais e associações de produtores de commodities agrícolas espalham o ódio e o terror contra os povos e suas comunidades. Discursos de incitação ao ódio e à violência multiplicaram-se ao longo de 2014 e 2015. Os resultados desse processo foram colhidos, principalmente, na forma de assassinatos de lideranças indígenas que lutavam pela demarcação[viii] e na proteção de suas terras tradicionais[ix] e de sistemáticos ataques paramilitares contra comunidades indígenas ao redor do Brasil.37. Neste sentido, a situação vivida pelos Guarani e Kaiowá, no estado do Mato Grosso do Sul, é emblemática. Em 2015, foram registrados mais de uma dezena de ataques paramilitares contra várias comunidades deste povo. Tais ataques, desferidos por milícias comandadas por fazendeiros, resultaram em liderança assassinada e dezenas de indígenas, inclusive crianças e idosos, feridos.38. O ataque paramilitar desferido contra o Tekoha Nhanderú Marangatú é exemplar. A ação foi precedida por uma onda de mentiras espalhadas por alguns fazendeiros com o intuito de criar um clima de terror e animosidade da população regional contra os indígenas, numa tentativa pré-concebida de legitimar o ataque que estava sendo perpetrado[x].39. Segundo dados do CIMI, da SESAI e do Dsei-MS, entre 2003 e 2015 um total de 891 indígenas foram assassinados no Brasil; cerca de metade deles (426, oun 47%) somente no estado do Mato Grosso do Sul[xi]. Isto representa, em outras palavras, 426 (quatrocentos e vinte e seis) indígenas mortos nos últimos anos somente em um dos estados da federação brasileira.40. Pode-se concluir, pois, que se vivencia no Brasil atualmente um processo de genocídio dos povos indígenas.41. A tentativa de criminalizar lideranças indígenas, profissionais de antropologia, organizações e pessoas da sociedade civil que atuam em defesa dos projetos de vida dos povos indígenas no Brasil também foi intensificada pelos ruralistas nos últimos quatro anos. Neste sentido, duas Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPI) foram criadas e postas em funcionamento sob o controle de deputados representantes do agronegócio. Uma na Assembleia Legislativa do estado do Mato Grosso do Sul, denominada CPI do Cimi[xii], e outra na Câmara dos Deputados, denominada CPI da Funai/Incra[xiii].42. As invasões possessórias para exploração ilegal de bens naturais de terras indígenas, de modo especial a madeira, foram agravadas, em 2015, pela prática macabra de atear fogo intencionalmente no interior dessas terras. Essa ação criminosa foi posta em prática por madeireiros como uma represália ao fato dos próprios indígenas fazerem a proteção territorial[xiv]. A ação dos madeireiros resultou na ampliação em larga escala das queimadas e consequente destruição generalizada da fauna e da flora no interior de terras indígenas e ameaça grave a famílias inteiras de indígenas com a queima de suas casas. No caso da Terra Indígena Arariboia, do povo Guajajara, no Estado do Maranhão, as queimadas atingiram cerca de 50% dos 413 mil hectares da área demarcada[xv]. Povos isolados sofreram permanentemente com as invasões e destruição dessas terras[xvi].43. Na mesma trilha de crimes, madeireiros passaram a ameaçar de morte e eliminar lideranças indígenas que se opõe à exploração de suas terras e que se organizam para evitar que isso ocorra[xvii]. O caso do assassinato do líder Eusébio Ka’apor, também no estado no Maranhão, se localiza neste contexto.44. Nesses casos, a omissão do Estado brasileiro é verificada desde a falta de ações preventivas e efetivas na proteção das terras indígenas até a impunidade dos assassinos das lideranças indígenas.45. Dentre outras situações, o governo brasileiro manteve-se omisso no que diz respeito à sua responsabilidade de demarcar as terras indígenas e de promover a atenção adequada à saúde dos povos originários. Com isso, a demanda dos povos pela demarcação de suas terras continuou se acumulando, juntamente com o elevado e inaceitável número de óbitos indígenas, de modo especial na infância.46. Setores do Poder Judiciário mantiveram decisões que restringem violentamente os direitos indígenas. Para além da Tese do Marco Temporal indicada anteriormente, anulações de atos administrativos de demarcação das terras indígenas Guyraroká, do povo Guarani Kaiowá, Limão Verde, do povo Terena, e Porquinhos, do Povo Canela-Apanhekra, foram mantidas nos últimos anos.47. A própria tese jurídica do Marco Temporal pode ser elencada como modo de criminalização dos povos indígenas, dado que ela legitima e legaliza as expulsões e as demais violações e violências cometidas contra os povos indígenas no Brasil, inclusive no passado recente. Serve de combustível que potencializa a violência contra os povos em seus territórios, uma vez que sinaliza, para os históricos e novos invasores de terras indígenas, que o mecanismo da violência, dos assassinatos seletivos de lideranças e do uso de aparatos paramilitares para expulsar os povos das suas terras seria legítimo,conveniente e até vantajoso para os seus intentos de continuarem se apossando e explorando essas terras.48. Os povos, por sua vez, diante destes ataques e tentativas de criminalização, não demonstraram intimidação e mantiveram-se coesos em ações sistemáticas de resistência e insurgência na defesa e pela efetivação de seus direitos e de seus projetos de vida. Nas retomadas[xviii], nas autodemarcações[xix], na proteção de seus territórios[xx], na incidência política junto a diferentes instâncias dos três poderes do Estado brasileiro[xxi]e junto a organismos multilaterais[xxii]demonstraram a disposição e organização necessárias para vencer os projetos de morte e a própria morte que o Estado e outros atores sociais lhes imputam.Recomendações49. Diante de todo o exposto apresentamos as seguintes recomendações ao Brasil:50. Recomendação 1:O Estado Brasileiro deve pôr fim à morosidade administrativa dos processos de demarcação das terras indígenas, fator que impede a realização dos demais direitos humanos de tais povos e é o fator principal na relação do aumento da criminalização e violência contra os povos indígenas de todo o país.51. Recomendação 2:O Estado Brasileiro deve focar na efetiva investigação e punição dos culpados pelos violentos ataques a que têm sido submetidos os povos indígenas no país, bem como na proteção direta aos indígenas, quando se mostrem necessários.52. Recomendação 3:As invasões de Terras Indígenas já demarcadas, bem como a retirada de bens comuns de tais territórios (a exemplo de madeira e minerais) demonstram a omissão do Estado Brasileiro, que deve oferecer proteção direta, imediata e real aos povos indígenas e às terras indígenas, sempre que se apresentar risco e tendo em vista a natureza destas invasões.53. Recomendação 4:Assegurar aos povos indígenas o direito de participarem de todos os processos judiciais em curso e futuros, que possam impactar seus direitos, particularmente o concernente ao direito à terra, ao território e recursos tradicionais.54. Recomendação 5:Assegurar que órgão próprio do Estado/Judiciário (CNJ) estabeleça metas de atuação para todo o Brasil, priorizando os processos que tratam dos povos indígenas, especialmente os referentes às demarcações de terras, tendo em vista, o evidente retardo na prestação jurisdicional.55. Recomendação 6:Assegurar que todos os operadores do Sistema de Justiça, especialmente os magistrados, sejam capacitados a atuar na temática de direitos humanos dos povos indígenas, levando-se em conta a normativa internacional e regional, realizando capacitação permanente, através da Escola do Poder Judiciário, campanhas do CNJ, e outras vias e, especialmente, para que a aplicação do direito seja compatível com o regramento de proteção aos povos indígenas.56. Recomendação 7:Recomendar que sejam realizadas campanhas, no mínimo anuais, de informação e esclarecimento à população do país, sobre os povos indígenas, com a participação deles, como contra cultura ao clima de ódio que se instaura e para combater o racismo estrutural e estruturante do Estado Brasileiro.[i] Disponível em: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/Volume%202%20-%20Texto%205.pdf. Acessado em: 4 de agosto de 2016.[ii]O Relatório Figueiredo foi encontrado em agosto de 2012 no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, após 45 anos desaparecido. Ele é composto por aproximadamente 7 mil páginas preservadas, contendo 29 dos 30 tomos originais. Disponível em: http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=DocIndio&PagFis=0&Pesq=. Acessado em: 4 de agosto de 2016.[iii]SOUZA FILHO, Carlos Federico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. 1a Ed. (ano 1998, 5ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2008.[iv]Mandado de Segurança 29.087 - STF. Inteiro Teor do Acórdão - Página 7. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6937880. Acessado em: 15 de agosto de 2016.[v] SILVA, José Afonso da. Parecer sobre a Tese Jurídica do Marco Temporal e Tradicional, p. 8. S.d.[vi] Ibid., p. 8.[vii] Ibid., p. 11.[viii] http://cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=8294&action=read[ix] http://www.ihu.unisinos.br/noticias/542263-na-onu-secretario-do-cimi-denuncia-assassinato-de-indigena-kaaapor-no-maranhaoe http://www.cimi.org.br/File/ONUCleberPortugues.pdf[x] https://www.diplomatique.org.br/print.php?tipo=ac&id=3141[xi] CIMI, op. cit., p. 79.[xii] http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=8354[xiii] http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/499549-CAMARA-CRIA-CPI-PARA-INVESTIGAR-ATUACAO-DA-FUNAI-E-DO-INCRA.html[xiv] http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Noticias/Fogo-terras-indigenas-no-Maranhao-voltam-a-sofrer-ataques-/[xv] http://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2015/10/28/incendio-em-terra-indigena-no-maranhao-esta-controlado-diz-ibama.htm[xvi] http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/edicoes/v/madeireiros-ameacam-tribo-indigena-na-amazonia/4037147/[xvii] http://www.ihu.unisinos.br/noticias/532903-madeireiros-ameacam-indios-na-amazonia[xviii] http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=8235&action=read[xix] [xx] http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2015/05/indios-ka2019apor-arriscam-a-vida-para-expulsar-madeireiros-de-sua-terra-6620.html[xxi] http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes/noticias/acoes-dos-movimentos/3025-em-brasilia-indigenas-manifestam-se-contra-matopiba-usinas-hidreletricas-e-a-pec-215e http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2015/04/indigenas-fecham-esplanada-e-fazem-ato-em-frente-ao-planalto.html[xxii] http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/10/151020_brasil_violencia_indios_jf_cce http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=8084