logo

Área do associado

  • Associe-se!
  • Esqueci a minha senha

AJD Portal
  • Início
  • Sobre nós
    • Quem somos
    • Conselho
    • Núcleos
    • Estatuto da AJD
    • Aplicativo AJD
    • Política de Privacidade
  • Notícias
  • Podcasts
  • Documentos
    • Atividades do Conselho
    • Cidadania
    • Voto e Cidadania
    • A AJD em juízo
  • Decisões
    • Eleitoral
    • Penal
    • Trabalho
    • Administrativo
    • Cível
    • Consumidor
    • COVID-19
    • Povos indígenas e comunidades tradicionais
    • Juros e correção monetária na JT
  • Artigos
  • Publicações
    • Jornal
    • Revista
  • Eventos

Artigos

  1. Início
  2. Artigos

Compreensão histórica do regime empresarial-militar brasileiro

Fábio Konder Comparato* Meio século após a instauração do mais longo regime de exceção de nossa história política, é importante examinar suas causas e analisá-lo num amplo contexto social, ultrapassando fatos singulares e personagens individuais. Com esse propósito, parece-me necessário considerar, antes de mais nada, a tradicional estrutura de poder vigente entre nós e a posição que nela ocupou a corporação militar.IPosição das Forças Armadas na Estrutura de nosso Poder Político Em todo o curso da História do Brasil, a organização do poder apresentou uma estrutura dualista, englobando de um lado os agentes estatais, e de outro lado os potentados privados, ou seja, os grandes proprietários e empresários. Enquanto os primeiros se apresentaram oficialmente como titulares do poder político e administrativo, os segundos, graças ao seu poderio econômico, não deixaram de exercer sobre aqueles uma influência determinante. Essa organização do poder político, a bem dizer, é própria da civilização capitalista. “O capitalismo”, como bem advertiu Fernand Braudel, “só triunfa quando se identifica com o Estado, quando é o Estado”.[1] Como órgão auxiliar dessa estrutura dualista de poder sempre atuou a Igreja Católica. A monarquia portuguesa havia obtido do papado, durante a Idade Média, o privilégio do padroado régio, que habilitava o monarca a propor a criação de novas dioceses, escolher os bispos e propor sua sagração ao papa; além do chamado beneplácito, que era o poder de o rei aprovar previamente as normas e determinações da Santa Sé destinadas ao reino. Em razão do padroado, que vigorou entre nós até a República, os eclesiásticos atuaram como autênticos funcionários da Coroa. Mesmo após a separação entre a Igreja e o Estado, estabelecida pela primeira Constituição republicana de 1891, a Igreja Católica exerceu no Brasil uma influência decisiva, em defesa da ordem política estabelecida. Quanto ao povo propriamente dito, ele nunca, nem de longe, deteve a soberania e, salvo períodos de curta duração – como durante a “Era Vargas”, por exemplo – ficou totalmente alheio ao esquema geral de exercício do poder político, mesmo quando, a partir do período republicano, foi constitucionalmente proclamado como a fonte de onde emanam todos os poderes.Entre os dois grupos dominantes acima nomeados –os agentes estatais e os potentados privados – estabeleceu-se aquela dialética da ambiguidade a que se referiu o historiador José Murilo de Carvalho, retomando uma expressão cunhada pelo sociólogo Guerreiro Ramos.[2]Cada um desses grupos de poder sempre busca, antes de tudo, realizar o seu próprio interesse e não o bem comum do povo. Mas, salvo conflitos episódicos, mantêm-se associados, em situação de mútua dependência. Assim, enquanto o conjunto dos agentes estatais – governantes, legisladores, juízes, membros do Ministério Público, altos funcionários – no exercício de suas funções oficiais favorece a realização dos interesses econômicos dos potentados privados, estes últimos, sob o disfarce da submissão ao poder oficial, não cessam de exercer pressão sobre os primeiros em todos os níveis – legislação, administração, prestação da justiça –, quando não os corrompem, pura e simplesmente. Aliás, a generalizada prática da corrupção dos agentes públicos, herdada de Portugal, marcou toda a nossa história, havendo chamado a atenção de notáveis viajantes estrangeiros no século XIX.[3] Até o final do Império, as Forças Armadas atuaram como organização auxiliar desse esquema dúplice de poder. A partir da Guerra do Paraguai (1865-1870), entretanto, a corporação militar manifestou crescente insatisfação com o seu estado de dependência na organização estatal, como passamos a ver.a) Período colonial A colonização portuguesa, tanto na América, quanto na Ásia e na África, teve, desde o início, um caráter nitidamente mercantil.[4]Com efeito, a partir do reinado de D. João I, inaugurador da dinastia de Avis na segunda metade do século XIV, o pequeno reino ibérico conheceu a primeira grande revolução dos tempos modernos, com o rompimento da milenar estrutura social da civilização indo-europeia. Nesta, como sabido, a sociedade era dividida em três estamentos (États, Stände): o dos clérigos, o dos aristocratas-militares e o dos simples servos lavradores. Sucedeu que no dealbar da Baixa Idade Média, nas localidades chamadas “burgos de fora”, ou seja, não sujeitas ao poder feudal, surgiram e prosperaram três grupos sociais estranhos àquela tripartição estamental, e que passaram, em razão de sua origem territorial, a ser denominados burgueses: os comerciantes, os juristas e os militares de profissão.O Mestre d’Avis, assumindo o trono logo após a grande crise de 1383 – 1385 entre Portugal e Castela, afastou da Corte a nobreza favorável à aliança entre ambas as Coroas ibéricas, e chamou a si aquelas três categorias de burgueses, atribuindo-lhes a missão de servi-lo diretamente na luta pela manutenção da independência do reino. Criou, destarte, aquele estamento burocrático, cuja atuação na história política de nosso país foi analisado em profundidade por Raymundo Faoro em obra já clássica.[5]A grande aventura colonial, desenvolvida a partir da descoberta da América e a abertura do caminho marítimo para as Índias, foi desde o iníicio montada com o auxílio dos militares e comerciantes ligados à Coroa. O próprio rei tornou-se o primeiro comerciante do reino. Em suma, como disse Alexandre Herculano, fundou-se em Portugal um regime de capitalismo político.[6]No sistema das capitanias hereditárias, por primeiro instalado no Brasil, a autoridade máxima local, o capitão-donatário, era dotado de todos os atributos régios, notadamente o poder militar, e desenvolvia pessoalmente a atividade de exploração mercantil da terra. Sobrevindo o regime de governo-geral, inaugurado por Tomé de Souza em 1549, garantiu-se, em benefício de alguns senhores de engenho designados pela Coroa, o oligopólio da produção de açúcar. “O ser senhor de engenho”, asseverou Antonil em sua obra de 1711,[7]é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos”.Criou-se em consequência, em todo o período colonial, uma estrutura dúplice de poderes, reunindo de um lado os grandes fazendeiros e senhores de engenho, e de outro lado o estamento burocrático nomeado pela Coroa, ou seja, os altos funcionários régios. Entre esses dois grupos de potentados, estabeleceram-se ao longo dos séculos estreitas relações de parentesco, amizade e compadrio.[8]No conjunto dos funcionários oriundos da metrópole, os militares sempre predominaram, pois desde o início da aventura colonial houve constante preocupação com a defesa do território. A corporação militar organizava-se em três grupos:[9]1) as tropas de linha, compostas essencialmente de regimentos portugueses, e que operavam em todo o território colonial; 2) as milícias, constituídas também por tropas regulares de recrutamento compulsório, mas não remuneradas, distribuídas em freguesias ou circunscrições eclesiásticas; 3) os corpos de ordenanças, que abrangiam toda a população masculina entre 18 e 60 anos, não recrutada nos dois primeiros corpos militares.Essa avassaladora organização militar nunca se distinguiu pela disciplina. Enquanto os chefes mantinham-se estreitamente unidos à classe dos ricos senhores, sendo que muitos oficiais de alto grau adquiriam propriedades rurais ou tornavam-se comerciantes, a soldadesca cometia freqüentes abusos contra a população pobre. Luís dos Santos Vilhena, em suas crônicas da Bahia do final do século XVIII,[10]relata a freqüência com que, nas épocas de escassez de alimentos, os militares invadiam currais e açougues, a fim de se apossar de toda a carne destinada à venda.b) Período imperial Desde a criação do Estado brasileiro independente em 1822, até o final do reinado de D. Pedro II, a corporação militar representou o braço armado da Coroa imperial, em defesa da organização política centralizada e da unidade territorial do país.Nessa posição, as Forças Armadas atuaram, já em 1824, na pacificação do conflito entre o presidente da Província de Pernambuco, nomeado pela Corte, e seu adversário local. Nos anos seguintes, a corporação militar teve que enfrentar, não poucas vezes, segmentos rebeldes dos proprietários agrícolas e comerciantes urbanos, ou seja, o outro ramo da dominação oligárquica. Assim sucedeu durante todo o período regencial – Guerra dos Cabanos (Pará, 1835-1840), Guerra dos Farrapos (Rio Grande do Sul e Santa Catarina, 1835-1845), Sabinada (Salvador, 1837-1838), a Balaiada (Maranhão e Piauí, 1838-1841) – estendendo-se até os primeiros anos do reinado de D. Pedro II: revoltas liberais de 1842 e a Revolta Praieira de 1848. A corporação militar foi, porém, poupada no combate aos vários levantes de escravos, como a Revolta dos Carrancas em Minas Gerais em 1831, a Revolta dos Malês na Bahia em 1835 e os combates contra quilombolas. Nesses confrontos, o governo imperial preferiu servir-se das forças policiais e dos chamados capitães-do-mato, estipendiados pelos senhores rurais. O governo chegou mesmo a criar em 1831, como força auxiliar da polícia, a Guarda Nacional. Compunham-na todos os cidadãos ativos de 21 a 60 anos, entendendo-se como tais as pessoas que dispunham de uma renda anual de 100 mil-réis e constituíam, nessa condição, os eleitores de primeiro grau.[11]Eles formavam a ínfima minoria de brasileiros, considerada a “elite” da nação. Mais importante que isso, todavia, foi o desempenho de primeira linha das Forças Armadas imperiais em vários conflitos externos, como as sucessivas guerras platinas e, sobretudo, a Guerra do Paraguai (1865-1870). Esta última representou o fator desencadeante de um inconformismo geral no seio da corporação militar. Havendo combatido ao lado das tropas da Argentina e do Uruguai, repúblicas onde os militares podiam ocupar altos postos políticos, inclusive a chefia do Estado, os oficiais brasileiros não mais aceitavam permanecer como cidadãos de segunda categoria, sem desfrutar de todas as liberdades políticas asseguradas aos civis. Por outro lado, nossos militares tomaram consciência de sua condição humilhante de subordinados ao poder escravocrata, devendo assinalar-se que um contingente apreciável das tropas brasileiras era composto de escravos. A partir de 1883 e praticamente até a Proclamação da República, ocorreu uma série de incidentes, que os historiadores classificaram como “a questão militar”. Influenciados pela pregação positivista, desenvolvida sobretudo por Benjamin Constant na Escola Militar da Praia Vermelha, os integrantes das Forças Armadas começaram a reivindicar direitos fundamentais de cidadania que lhes eram recusados, como o de reunião e de livre manifestação política.Por outro lado, com o crescimento exponencial da fuga de escravos e a multiplicação de quilombos em todo o sudeste do país, o governo imperial, pressionado pelos grandes proprietários rurais e verificando a fraqueza dos contingentes policiais, tentou recorrer às forças do Exército para a recaptura dos fugitivos, o que causou generalizado mal-estar entre os militares. A tensão agravou-se até que em outubro de 1887, poucos meses antes da Abolição, o Clube Militar, sob a presidência de Deodoro da Fonseca, dirigiu um apelo à Princesa Regente, no sentido de que os soldados ficassem dispensados da “captura de pobres negros que fogem à escravidão”.Em suma, ao final do Império as Forças Armadas entraram em aberto conflito, não só com os agentes estatais detentores do poder político oficial, mas também com o conjunto dos grandes proprietários agrícolas; ou seja, os dois grupos titulares efetivos da soberania. É nesse contexto que sobrevém a Proclamação da República. Como sempre em nossa História, o povo ficou totalmente alheio ao episódio. Na famosa carta a um amigo, Aristides Lobo, que assistira à manifestação de protesto de Deodoro e sua tropa no Campo de Santana, assim declarou: “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada.” c) O consulado militarOs primeiros anos do novo regime transcorreram sob a forma de um verdadeiro consulado militar, com Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto na chefia do Estado. Para se ter uma ideia do ambiente de insegurança e temor que então predominou, ressalte-se que em março de 1890, como reação a um simples cartaz afixado em certos pontos do Rio de Janeiro, conclamando o povo a pôr abaixo a ditadura, três civis foram presos e submetidos, pela primeira vez desde 1825, a julgamento pela Justiça Militar, que os condenou a penas de prisão. O regime empresarial-militar instaurado em 1964 voltou a dar preponderância à Justiça Militar, determinando sua competência obrigatória para julgar os crimes ditos contra a segurança nacional.Sob a chefia de Floriano, a situação de turbulência latente acabou por explodir em duas revoltas da Armada contra o Exército, em 1891 e 1893; neste último ano coincidindo com o deflagrar da Revolução Federalista no Rio Grande do Sul, em oposição à ditadura positivista de Borges de Medeiros. De qualquer maneira, para os grandes fazendeiros do sudeste do país, onde surgiu a ideia republicana – o Manifesto de 1870 foi lançado em Itu, Estado de São Paulo – os militares já haviam feito o que deles se esperava, ou seja, derrubar a monarquia. Eles deviam, doravante, voltar à caserna e entregar o comando do Estado aos civis; o que foi feito, afinal, em 15 de novembro de 1894, com a assunção da presidência da República por Prudente de Morais, legítimo representante da oligarquia cafeeira. d) A “República Velha” (1894-1930) O restabelecimento da supremacia do poder civil não significou um apaziguamento da insubordinação dos militares; longe disso.Já em 1904, no contexto da revolta popular contra a vacina obrigatória, instituída por Osvaldo Cruz para debelar a febre amarela, deu-se no Rio de Janeiro a Revolta da Escola Militar da Praia Vermelha, na qual morreram, em confronto com as forças policiais, além de um aluno, o tenente-coronel e senador Lauro Sodré e o general Travassos.Na década de 20, com o chamado movimento tenentista, irrompeu a revolta da jovem oficialidade do Exército contra a falsidade de uma representação política subordinada ao poder latifundiário. Em 1922, um grupo de tenentes revoltou-se no forte de Copacabana. Em 1924, em São Paulo, a capital ficou três semanas em mãos de jovens militares, chefiados pelo general reformado Isidoro Dias Lopes. Ainda em 1924, graças à junção de um contingente militar, que se retirava vencido de São Paulo, com outro grupo de soldados rebeldes, chefiado pelo capitão Luis Carlos Prestes, futuro líder do Partido Comunista, teve início a façanha da Coluna Prestes, que percorreu cerca de 25.000 quilômetros no território nacional, protestando contra o regime político fraudulento da “República Velha”. d) A “Era Vargas” Sobrevindo a chamada Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas à presidência da República, este percebeu desde logo a necessidade de contar com o apoio do novo operariado industrial urbano, bem como da jovem oficialidade das Forças Armadas; tudo no contexto da primeira experiência de intensa propaganda política pessoal levada a efeito no Brasil. Assim, além de criar a legislação trabalhista e desenvolver a organização sindical sob a tutela do governo, Getúlio não hesitou, durante o período de governo provisório, em nomear tenentes do Exército como interventores em todos os Estados da federação. Além disso, cercou-se de vários generais na cúpula do governo, o que lhe permitiu, sem qualquer reação, repudiar em 1937 o Estado Constitucional (em 1934 fora promulgada nova Constituição), instituindo o Estado Novo, de inspiração fascista. Graças ao apoio militar, foram sucessivamente esmagadas a revolta comunista de 1935 e a integralista de 1938, as quais contaram com a participação de oficiais do Exército.Com o início da Segunda Guerra Mundial, Getúlio decidiu, após dois anos de hesitação, apoiar os Estados Unidos no conflito bélico. Em julho de 1941, assinou um pacto secreto com o governo ianque para a construção de bases aéreas e navais no extremo oriental do Nordeste brasileiro, como trampolim para o transporte de tropas e armamentos norte-americanos em território africano, onde já operava a Wehrmacht. Em compensação, o governo americano liberou um empréstimo de 20 bilhões de dólares para a fundação da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, o primeiro complexo de siderurgia criado na América Latina.Em agosto de1942, após o torpedeamento de 21 navios mercantes brasileiros que navegavam em nosso mar territorial, o governo declarou o estado de beligerância e, logo após, a declaração de guerra contra a Alemanha e a Itália. Um ano depois, em 9 de agosto de 1943, foi criada a Força Expedicionária Brasileira, enviada em 1944 a combater na Itália. A influência norte-americana fez-se presente também no plano da política interna, envolvendo os militares. Em 1943, o General Manuel Rabelo criou a Sociedade Amigos da América, que contava com o apoio dos Generais Horta Barbosa e Candido Rondon. Em 1944, Oswaldo Aranha, desde há muito amigo dos americanos, desligou-se do Ministério das Relações Exteriores e passou a apoiar a instauração de um regime democrático. Tal como ocorreu após a Guerra do Paraguai, nossos militares da FEB, ao retornarem da Europa, onde foram sacrificadas 443 vidas, sentiram-se inconformados com sua posição subordinada na estrutura da máquina governamental. Acresça-se a isto o fato de que o governo norte-americano, servindo-se da recente ligação de seus generais com os comandantes das tropas da FEB na Itália, passou a pressionar o ditador a deixar o poder, alegando que a guerra contra as potências do Eixo Roma-Berlim-Tóquio fora desenvolvida em nome dos ideais democráticos.Na verdade, o que mais incomodava os Estados Unidos era o nacionalismo getulista em matéria de política econômica, fortemente contrário aos interesses das macro-empresas norte-americanas. Em 1938, foi criado o Conselho Nacional do Petróleo, sendo localizada pela primeira vez no ano seguinte, na Bahia, uma reserva do óleo. O cartel internacional do petróleo, com forte apoio norte-americano, desenvolveu desde logo forte pressão sobre o governo brasileiro para impedir a exploração do combustível, o que realmente aconteceu. Terminada a guerra, Getúlio, que acabara de receber total apoio de Luis Carlos Prestes, foi afinal deposto pelos generais Góis Monteiro e Eurico Gaspar Dutra em 29 de outubro de 1945. Conservou, no entanto, seus direitos políticos e, sobretudo, imenso apoio popular. Nessa condição, aproveitando-se das disposições da lei eleitoral, que permitia candidaturas individuais em mais de um Estado, foi eleito deputado federal por 7 Estados e senador por São Paulo e Rio Grande do Sul. Optou pela cadeira de senador do Estado gaúcho. Lançando mão de uma argúcia política jamais igualada entre nós, Getúlio criou dois partidos políticos, o PSD e o PTB; o primeiro reunindo os grandes líderes ruralistas e os novos empresários industriais, e o segundo como porta-voz da massa trabalhadora urbana, enquadrada pelos sindicatos, desde sempre getulistas. Ou seja, como disse ferinamente seu grande opositor, Carlos Lacerda, enquanto o PSD criava a miséria, o PTB explorava suas consequências. O maquiavelismo do grande lider populista não se limitou, porém, a isso. Abertas as eleições para a presidência da República, Getúlio apoiou a candidatura do General Dutra, que o depusera em 1945. Afastou, com isso, toda oposição militar ao processo eleitoral, além de tranqüilizar o grande empresariado, inquieto com a livre atuação dos militantes comunistas. O governo do (já então) Marechal Dutra representou a primeira grande experiência de liberalismo capitalista no Brasil, especialmente em matéria de política cambial, movimentação internacional de capitais e comércio exterior. Conquistou, com isso, o apoio integral do grande empresariado, nacional e estrangeiro. No campo propriamente político, Dutra deu inteira satisfação aos Estados Unidos, ao apoiar abertamente o processo judicial que conduziu à cassação do registro do Partido Comunista, em 1947.Ao voltar legitimamente à presidência da República pela via eleitoral em 1951, Getúlio Vargas pôs fim à orientação liberal privatista do seu antecessor, suscitando com isso a oposição do empresariado à sua linha de governo. Logo após a posse, foi criada, junto à Secretaria da Presidência, uma Assessoria Econômica, composta de competentes administradores públicos de orientação nacionalista. Esse órgão exerceu na prática, pela primeira vez em nosso pais, as funções de planejamento governamental, dando especial atenção à política de investimentos na infra-estrutura econômica. Da Assessoria Econômica presidencial saíram, entre outros, os projetos de criação da Petrobrás, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, do Fundo Rodoviário Nacional e da Eletrobrás. Estava-se, porém, naquele momento, em pleno conflito da chamada Guerra Fria, o confronto não bélico entre os Estados Unidos e seus aliados, de um lado, e a União Soviética e seus satélites, de outro. A corporação militar encontrava-se à época fundamente dividida entre oficiais nacionalistas, favoráveis especificamente ao monopólio estatal de exploração do petróleo, e oficiais treinados e doutrinados pelos norte-americanos, que advogavam a livre iniciativa econômica do setor privado, ainda que estrangeiro.Estes últimos acabaram afinal por prevalecer e, estimulados pelo principal partido da oposição, a União Democrática Nacional – UDN,[12]aderiram abertamente à campanha de críticas a Getúlio, acusando-o de ser o chefe de uma massa de subversivos e corruptos; ou seja, exatamente o mote utilizado dez anos depois para justificar o golpe que deu origem ao regime empresarial-militar. Em fevereiro de 1954, o chamado “manifesto dos coronéis”, reivindicando uma ampliação dos recursos orçamentários destinados ao Exército e protestando contra o aumento do salário mínimo em 100%, forçou Getúlio Vargas a exonerar João Goulart, Ministro do Trabalho, e o General Ciro Espírito Santo Cardoso, Ministro da Guerra. Na madrugada do dia 5 de agosto, o líder udenista Carlos Lacerda e seu guarda-costas, o major da Aeronáutica Rubens Florentino Vaz, sofreram no Rio de Janeiro um atentado a bala, que feriu Lacerda e matou o major Vaz. Imediatamente, os oficiais mais graduados daquela Arma reuniram-se em comissão de inquérito no aeroporto do Galeão (a chamada “República do Galeão”), e poucos dias depois obtiveram a confissão de membros da guarda pessoal do Presidente Getúlio Vargas de que o atentado fora por eles planejado e executado. A partir de então, os oficiais superiores do Exército e da Marinha manifestaram-se solidários com a Aeronáutica e passaram a exigir a renúncia de Getúlio. Buscou-se, sem êxito, até o dia 23 uma fórmula de conciliação. No dia seguinte, pela manhã, recebendo do irmão, Benjamin Vargas, a informação de que o oficialato das três Armas exigia sua renúncia imediata da presidência da República, Getúlio suicidou-se, provocando em todo o país intensa revolta popular. O suicídio de Getúlio foi, na verdade, um golpe de mestre, que adiou por dez anos a mudança do regime político.f) O período pós-Vargas Embora derrotadas pelo inesperado golpe do suicídio, as Forças Armadas permaneceram em estado de constante agitação.Em 11 de novembro de 1955, o então Ministro da Guerra, General Henrique Teixeira Lott, decidiu prevenir um golpe de Estado em preparação para impedir a posse do Presidente da República regularmente eleito, Juscelino Kubitschek de Oliveira. O presidente em exercício, Carlos Luz, foi deposto e o Vice-Presidente Café Filho, que sucedera Getúlio e se afastara da presidência por razões de saúde, impedido de voltar ao poder. Uma vez empossado, Juscelino tomou a resolução de organizar o indispensável apoio militar em torno do seu governo. Como resumiu Maria Victoria de Mesquita Benevides,[13] a organização desse apoio fez-se de três maneiras: 1) a atribuição ao ministro da guerra, General Lott, de um papel preponderante na manutenção da ordem interna e da disciplina militar; 2) o atendimento das reivindicações dos militares, quanto a vencimentos, equipamentos e promoções, aliado ao apoio das Forças Armadas à política desenvolvimentista do governo; 3) a crescente participação dos militares no exercício das funções governamentais.Apesar desse empenho em articular seu governo com os interesses das Forças Armadas, o governo Kubitschek não logrou suprimir a hostilidade da corporação militar. Em 1956 e 1959, por exemplo, oficiais da Aeronáutica declararam-se em estado de insurreição contra o presidente, respectivamente em Jacareacanga (PA) e Aragarças (GO).Graças, porém, às suas iniciativas ousadas, como a construção de Brasília e a criação de grandes facilidades para a instalação de uma indústria automobilística no território nacional, Juscelino conquistou integral apoio do empresariado. Em janeiro de 1959, um fato relevante mudou o cenário político de toda a América Latina: um grupo de revolucionários cubanos, sob a liderança de Fidel Castro, tomou o poder na ilha, instaurando um regime comunista. As eleições para a sucessão de Juscelino Kubitschek voltaram a trazer grande insatisfação no seio das Forças Armadas. Candidato da coligação partidária governista PSD-PTB, o já então Marechal Lott foi derrotado por Janio Quadros, candidato da oposição. No campo da política externa, o governo de Janio foi marcado pelo conflito aberto com os Estados Unidos. A abertura do comércio exterior aos países socialistas e, sobretudo, a condecoração de Che Guevara com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, suscitaram a aberta hostilidade dos oficiais militares anticomunistas ao seu governo. Após a renúncia de Janio em 25 de agosto de 1961, os ministros militares, Marechal Odílio Denis, Almirante Sílvio Heck e Brigadeiro Gabriel Grün Moss, declararam-se contrários à posse do Vice-Presidente João Goulart, que se encontrava ausente do país em viagem oficial. Imediatamente, o Governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, levantou-se contra os ministros militares, obtendo o apoio do comando do III Exército, sediado em Porto Alegre.O confronto acabou sendo resolvido por meio de uma transação conciliatória: os ministros militares aceitaram a investidura de João Goulart como Presidente da República, contanto que se adotasse o sistema parlamentar de governo; o que foi feito pelo Congresso Nacional ao votar a emenda constitucional nº 4, de 2 de setembro de 1961. Dita emenda previa, em seu art. 25, que a lei “poderá dispor sobre a realização de plebiscito que decida da manutenção do sistema parlamentar ou volta ao sistema presidencial, devendo, em tal hipótese, fazer-se a consulta plebiscitária nove meses antes do termo do atual período presidencial”. Realizado o plebiscito, uma ampla maioria optou pelo retorno ao sistema presidencial de governo. O Congresso Nacional, dando cumprimento à vontade popular, aprovou a emenda constitucional nº 6, de 23 de janeiro de 1963. Em 12 setembro de 1963, centenas de sargentos, fuzileiros e soldados da Aeronáutica e da Marinha de Guerra sublevaram-se em Brasília, ocupando na madrugada importantes centros administrativos. O motivo do levante foi a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal, que confirmava a inelegibilidade das pessoas enumeradas no art. 132, parágrafo único da Constituição de 1946 (praças de pré, suboficiais, subtenentes, sargentos e alunos das escolas militares de ensino superior). Chegamos, assim, seis meses depois, ao golpe de Estado que pôs fim ao regime constitucional, e instaurou a dominação militar-empresarial durante mais de vinte anos. IIO Golpe Militar de 1964 e a Instauração do Regime AutoritárioOrigens do golpeNa gênese do golpe de Estado de 31 de março de 1964, encontramos a profunda cisão lavrada entre os dois grupos que sempre compuseram a oligarquia brasileira: os agentes políticos e a classe dos grandes proprietários e empresários.Até então, os conflitos entre ambos eram sempre resolvidos por meio de arranjos conciliatórios, segundo a velha tradição brasileira. Nos últimos anos do regime constitucional de 1946, porém, essa possibilidade de conciliação tornou-se cada vez mais reduzida. A principal razão para tanto foi o agravamento do confronto político entre esquerda e direita no mundo todo, no contexto da Guerra Fria e em especial, na América Latina, com a Revolução Cubana. Deve-se notar, aliás, que naquela época boa parte das nossas classes médias havia abandonado sua tradicional colocação à direita do espectro político, passando a apoiar as chamadas “reformas de base” do governo João Goulart: a reforma agrária, a bancária, a tributária e a política de repúdio ao capital estrangeiro.Era natural, nessas circunstâncias, que os grandes proprietários e empresários, nacionais e estrangeiros, temessem pelo seu futuro em nosso país e se voltassem, agora decididamente, para o lado das Forças Armadas, a fim de que estas depusessem os governantes em exercício, substituindo-os por outros, associados aos potentados privados, segundo a velha herança histórica. Uma vez perpetrado o golpe de estado, manifestaram-se desde logo a favor dele a Igreja Católica[14]e várias entidades de prestígio da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil.O que o empresariado não levou em conta, todavia, era o fato de que a corporação militar amargurava, desde a proclamação da República, uma série de tentativas mal sucedidas para livrar-se da subordinação ao poder civil. Não seria justamente naquele momento, quando chamadas a salvar o grande empresariado do perigo esquerdista, que as Forças Armadas iriam depor os governantes em exercício e voltar em seguida à caserna.Na preparação do golpe, o governo norte-americano teve uma atuação decisiva. Já em 1949, um grupo de altos oficiais do Exército Brasileiro, entre os quais o general Cordeiro de Farias, influenciados pelos Estados Unidos, criou, nos moldes do National War College norte-americano, o Instituto de Altos Estudos de Política, Defesa e Estratégia, a seguir denominado Escola Superior de Guerra. Com o aprofundamento da chamada Guerra Fria e, sobretudo, logo após a tomada do poder em Cuba por Fidel Castro, esse instituto de ensino passou a formar a oficialidade brasileira para impedir a assunção do poder pelos comunistas; assim compreendidos todos os agentes políticos que, embora não filiados ao PCB, manifestassem, de alguma forma, oposição aos Estados Unidos. Pode-se afirmar que todos os oficiais militares que participaram do golpe de 1964 foram alunos da Escola Superior de Guerra. Os cursos lá administrados, aliás, não eram reservados apenas aos militares, mas abertos também a políticos e empresários de destaque.De 1961 a 1966, atuou como embaixador norte-americano no Brasil Lincoln Gordon, que já em 1960 havia colaborado na implantação da Aliança para o Progresso, programa de ajuda oferecido pelos Estados Unidos aos países da América Latina, a fim de evitar que eles seguissem o caminho revolucionário de Cuba. Na preparação do golpe, Gordon coordenou a criação no Brasil de entidades de propaganda política, como o IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática e o IPES – Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais. Sabe-se, aliás, por uma gravação depois divulgada, que já em 30 de julho de 1962 Lincoln Gordon discutiu com o presidente Kennedy, na Casa Branca, o gasto de US$ 8 milhões para “expulsar do poder, se necessário”, o presidente João Goulart.Como arma decisiva, o governo norte-americano – ao que parece a pedido dos militares brasileiros golpistas – desencadeou em março de 1964 aOperação Brother Sam, consistente em uma força-tarefa naval composta de um porta-aviões, quatro destróieres e navios-tanques para exercícios ostensivos na costa sul do Brasil, além de cento e dez toneladas de munição. A aliança das Forças Armadas com os detentores do poder econômico privadoAo assumirem o comando do Estado, os chefes militares não hesitaram, ao longo dos anos, em mutilar o Congresso Nacional e o Judiciário: 281 parlamentares foram cassados e três ministros do Supremo Tribunal Federal aposentados compulsoriamente. Os governantes militares fizeram questão de submeter à sua dominação absoluta, durante as duas décadas do regime, o conjunto dos integrantes do poder civil, como uma espécie de desforra pela longa série de frustrações políticas por eles, homens de farda, sofridas desde o final do século XIX. É preciso reconhecer que a grande maioria dos agentes públicos, poupados pela repressão instaurada após o golpe, colaborou desonrosamente no funcionamento deste.O novo regime político fundou-se na aliança das Forças Armadas com os latifundiários e os grandes empresários, nacionais e estrangeiros. Esse consórcio político engendrou duas experiências pioneiras na América Latina: o terrorismo de Estado e o neoliberalismo capitalista. A partir do exemplo brasileiro, vários outros países latino-americanos adotaram nos anos seguintes, com explícito apoio dos Estados Unidos, regimes políticos semelhantes ao nosso.Um dos setores em que a colaboração do empresariado com a corporação militar mais se destacou foi o das comunicações de massa. As Forças Armadas e o grande empresariado necessitavam dispor de uma organização capaz de desenvolver, em todo o território nacional, a propaganda ideológica do regime autoritário, com a constante denúncia do perigo comunista e a difusão sistemática, embora sempre encoberta, dos méritos do sistema capitalista.Os chefes militares decidiram, para tanto, fixar sua escolha no Sistema Globo de Comunicações. Em 1969, ele possuia três emissoras (Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte). Quatro anos depois, em 1973, já contava com nada menos do que onze.A dominação empresarial do sistema de comunicações de massa continuou a subsistir, uma vez encerrado o regime autoritário, e persiste até hoje. A Constituição Federal de 1988 dispõe em seu art. 220, § 5º que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. Mas até o momento em que escrevo estas linhas – mais de um quarto de século após promulgada a Constituição em vigor – esse dispositivo constitucional, como vários outros do mesmo capítulo, permanece ineficaz por falta de regulamentação legal.[15]O casamento entre a corporação militar e o empresariado continuou inabalado, enquanto subsistiram grupos de oposição decididos a desenvolver, com ou sem apoio cubano, a luta armada contra o regime autoritário.No Brasil, os grandes empresários não hesitaram em financiar a instalação de aparelhos de terror estatal. No segundo semestre de 1969, por exemplo, o II Exército, com sede em São Paulo, lançou a Operação Bandeirante– embrião do futuro DOI-CODI (Destacamento de Operações Internas e Centro de Operações de Defesa Interna) – destinada a dizimar os principais opositores ao regime.[16]Reunido com banqueiros paulistas no segundo semestre daquele ano, o então ministro da economia Delfim Neto pediu e obteve sua contribuição financeira, alegando que as Forças Armadas não tinham equipamento nem verbas para enfrentar a “subversão”. Ao mesmo tempo, a Federação das Indústrias de São Paulo – FIESP convidou as empresas que a integravam a colaborar no empreendimento. Assim, enquanto a Ford e a Volkswagen forneciam automóveis, a Ultragás emprestava caminhões e a Supergel abastecia a carceragem militar com refeições congeladas. A quebra de confiança do empresariado no poder militarA lua de mel entre os grandes empresários e as Forças Armadas não durou muito tempo, porém. Em 12 de dezembro de 1968, exatamente na véspera do lançamento do Ato Institucional nº 5, que suspendeu o habeas-corpus nos casos de crimes políticos e contra a segurança nacional, o chefe da Polícia Federal impediu a publicação, no jornal superconservador O Estado de São Paulo, do editorial em que o diretor Júlio de Mesquita Filho condenava o “artificialismo institucional, que pela pressão das armas foi o País obrigado a aceitar”.Alguns anos mais tarde, quando se verificou que todos os grupos engajados na luta armada contra o regime haviam sido exterminados, os empresários começaram a manifestar sua irritação com a permanência dos militares no comando do Estado Brasileiro. Tanto mais que os homens de farda deixaram-se seduzir pelas vantagens econômicas particulares desfrutadas no comando do Estado, tais como o exercício de cargos de administração altamente remunerados em empresas estatais, várias delas criadas a partir do golpe de 1964.[17]Em 1974, um dos grandes sacerdotes do credo liberal, Eugênio Gudin, declarou publicamente que “o capitalismo brasileiro é mais controlado pelo Estado do que o de qualquer outro país, com exceção dos comunistas”. A seguir, em fevereiro de 1975, o jornal O Estado de São Paulopublicou uma série de nada menos do que onze reportagens sob o título Os caminhos da estatização, enquanto a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo divulgava um documento, intitulado O Processo de Estatização da Economia Brasileira: O Problema do Acesso aos Recursos para Investimentos.[18]A classe empresarial entendia, assim, haver chegado o momento de voltar a instalar no país o tradicional regime da falsa democracia representativa, em cuja fachada aparece o poder oficial atribuído a agentes políticos eleitos, enquanto por trás dela tem livre curso a dominação econômica, exercida pelos potentados privados.A pressão empresarial contra as Forças Armadas no comando do Estado coincidiu com a eleição à presidência dos Estados Unidos de Jimmy Carter, crítico implacável das violações de direitos humanos cometidas pelo regime militar brasileiro. Em entrevista a um periódico norte-americano, ele chegou a afirmar: “Quando Kissinger [Secretário de Estado no governo Richard Nixon] diz, como fez há pouco, que o Brasil tem um tipo de governo compatível com o nosso, bem, aí está o tipo de coisa que nós queremos mudar. O Brasil não tem um governo democrático. É uma ditadura militar. Em muitos aspectos é altamente repressiva para os presos políticos.”[19] Por sua vez, no seio do episcopado brasileiro – embora vinculado, como de costume, aos detentores do poder supremo – destacaram-se as figuras exponenciais de D. Helder Câmara e de D. Paulo Evaristo Arns, para denunciar sem eufemismos, tanto aqui como no exterior, as atrocidades praticadas contra presos políticos.O regime militar entrava, assim, em sua fase de declínio inelutável, havendo perdido o apoio dos grupos que, tradicionalmente, compõem a estrutura do poder entre nós.A fase final do regimeTudo parecia encaminhar-se para a “distensão lenta, gradual e segura”, como pregava o General Golbery do Couto e Silva, não fora o fato de restar irresolvida a questão das atrocidades cometidas pelos agentes militares e policiais, no quadro do terrorismo de Estado.Conforme dados oficiais da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada pela Lei nº 9.140, de 1995, foram comprovados, até fevereiro de 2014, 362 (trezentos e sessenta e dois) casos de opositores políticos assassinados ou desaparecidos durante o regime militar.Já a Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, no relatório intitulado Direito à Memória e à Verdade, publicado em 2007, afirmou que tivemos não menos de 475 (quatrocentos e setenta e cinco) mortos e desaparecidos políticos durante aquele período. Calcula-se, ademais, que 50.000 pessoas foram presas por razões políticas, sendo a maior parte delas torturadas, algumas até a morte. O governo militar chegou mesmo a aparelhar, em Petrópolis, uma casa onde pelo menos 19 pessoas foram executadas, sendo seus corpos incinerados a fim de não deixar vestígios.[20]Em momento algum de nossa vida de país independente, os governantes, quer no Império, quer na República, chegaram a cometer tão repugnantes atrocidades.A pressão do empresariado para que os chefes militares deixassem o poder foi reforçada com a redução significativa da taxa de crescimento econômico do país, a partir do final do governo Geisel. Mas a corporação fardada hesitava em deixar o comando do Estado, procurando a todo custo uma garantia de que, quando isso ocorresse, os agentes policiais e militares responsáveis pelos atos de criminalidade violenta contra opositores ao regime não seriam punidos. Essa solução contava com o apoio decidido do grande empresariado, quando mais não fosse porque alguns de seus líderes, como assinalado acima, foram co-autores dos crimes de terrorismo de Estado, havendo financiado a operação do sistema repressivo.Por sugestão dos políticos colaboradores do regime, os chefes militares decidiram afinal embarcar no movimento já iniciado de anistia aos presos e exilados políticos, de modo a estendê-la aos autores de crimes de terrorismo de Estado.Em junho de 1979, o general-presidente Figueiredo apresentou ao Congresso Nacional um projeto, convertido em 28 de agosto na Lei nº 6.683. Ela concedeu anistia “a todos quantos [...] cometeram crimes políticos ou conexos com estes”; assim considerados “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. Lançando mão de cavilosa astúcia, os redatores da lei, ao invés de designarem precisamente os demais crimes abrangidos pela anistia, além dos delitos políticos propriamente ditos, preferiram utilizar a expressão técnica “crimes conexos”. Ora, ela é totalmente inepta no caso; pois são considerados como tais tão-só os delitos com comunhão de intuitos ou objetivos; e ninguém em são juízo pode afirmar que os opositores ao regime militar e os agentes estatais que os torturaram e mataram tivessem agido com objetivos comuns.Irresignado com essa solerte velhacaria, sugeri em 2008 ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil que ajuizasse, em relação a essa lei, uma argüição de descumprimento de preceito fundamental perante o Supremo Tribunal Federal. A ação foi proposta, pedindo-se ao tribunal que interpretasse o texto legal de acordo com a Constituição que entrou em vigor em 1988, em cujo art. 5º, inciso LXIII dispõe-se que o crime de tortura é insuscetível de graça ou anistia; sendo incontroverso que toda lei contrária ao texto ou ao espírito de uma Constituição nova considera-se tacitamente revogada por esta. Pediu-se, ademais, que a lei de anistia fosse interpretada à luz dos princípios e normas do sistema internacional de direitos humanos.Em abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal julgou por maioria improcedente a ação proposta pela OAB. Desse acórdão foi interposto recurso de embargos declaratórios, pois o tribunal deixou de considerar o fato de que vários dos crimes ditos conexos, cometidos por agentes do regime militar – como, por exemplo, o seqüestro ou a ocultação de cadáver – são qualificados como permanentes ou continuados; o que significa que ainda não se consideram consumados e, portanto, não foram abrangidos pela lei de anistia, dado que esta declarou não aplicar-se aos crimes cuja consumação é posterior a 15 de agosto de 1979.Seis meses depois desse julgamento, mais exatamente em 24 de novembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, por unanimidade, condenou o Estado Brasileiro, ao julgar o Caso Gomes Lund e outros v. Brasil (“Guerrilha do Araguaia”). Nessa decisão, declarou a Corte: “As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana [sobre Direitos Humanos], carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.” Dois foram os fundamentos para tal decisão.Em primeiro lugar, o fato de que as gravíssimas violações de direitos humanos, praticadas durante o terrorismo de Estado do nosso regime empresarial-militar, constituíram crimes contra a humanidade; ou seja, crimes nos quais é negada às vítimas a condição de ser humano.Em duas Resoluções formuladas em 1946, a Assembléia Geral das Nações Unidas considerou que a conceituação tipológica de tais delitos representa um princípio de direito internacional.Essa mesma qualificação foi dada pela Corte Internacional de Justiça às disposições da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, cujos artigos III e V estatuem que “todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, e que “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.”Ora, os princípios, como assinalado pela doutrina contemporânea, situam-se no mais elevado grau do sistema normativo. Eles podem, por isso mesmo, deixar de ser expressos em textos de direito positivo, como as Constituições, as leis ou os tratados internacionais.O segundo fundamento da decisão condenatória do Estado Brasileiro no processo Gomes Lund e outros v. Brasil (“Guerrilha do Araguaia”), foi o fato de que a Lei nº 6.683, de 1979, representou, na verdade, uma auto-anistia, inadmissível no sistema internacional de direitos humanos. Como salientou a referida Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a responsabilidade pelo cometimento de graves violações de direitos humanos não pode ser reduzida ou suprimida por nenhum Estado, menos ainda mediante o procedimento de uma auto-anistia decretada pelos governantes responsáveis, pois trata-se de matéria que transcende a soberania estatal.Pois bem, no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da argüição de descumprimento de preceito fundamental nº 153, proposta pelo Conselho Federal da OAB, o ministro relator e outro que o acompanhou afirmaram que a Lei nº 6.683 não poderia ser concebida como auto-anistia, mas sim como uma anistia bilateral entre governantes e governados. Ou seja, segundo essa original interpretação, torturadores e torturados, reunidos em uma espécie de contrato particular de intercâmbio de prestações, teriam resolvido anistiar-se reciprocamente...Frise-se, desde logo, a repulsiva imoralidade de um pacto dessa natureza, se é que ele realmente existiu: o respeito mais elementar à dignidade humana impede que a impunidade dos autores de crimes hediondos ou contra a humanidade seja objeto de negociação pelos próprios interessados.Na verdade, o propalado "acordo de anistia” dos crimes contra a humanidade, praticados pelos agentes da repressão, não passou de uma encoberta conciliação oligárquica, na linha de nossa mais longeva tradição. A validade de qualquer pacto ou acordo supõe a existência de partes legitimadas a conclui-lo. Se havia à época, de um lado, chefes militares detentores do poder supremo, quem estaria do outro lado? Porventura, as vítimas ainda vivas e os familiares de mortos pela repressão militar foram chamados a negociar esse acordo? O povo brasileiro, declarado solenemente como titular da soberania, foi convocado a referendá-lo? O mais escandaloso de toda essa tese do acordo político é que, após a promulgação da lei de anistia, certos agentes militares continuaram a desenvolver impunemente sua atividade terrorista. O Ministério Público Militar apurou que, entre 1979 e 1981, houve 40 atentados a bomba, praticados por um grupo de oficiais militares reunidos em uma organização terrorista. Foi preciso, no entanto, aguardar até fevereiro de 2014, ou seja, trinta e três anos depois do último atentado, para que fosse apresentada denúncia criminal contra os integrantes dessa quadrilha por homicídio doloso, associação criminosa armada e transporte de explosivos.É deplorável constatar que o nosso país é o único na América Latina a continuar sustentando a validade de uma auto-anistia decretada pelos militares que deixaram o poder. Na Argentina, no Chile, no Uruguai, no Peru, na Colômbia e recentemente na Guatemala, o Poder Judiciário decidiu pela flagrante inconstitucionalidade desse remendo institucional.O caso do regime pós-militar argentino é paradigmático a esse respeito e nos cobre de vergonha. A Suprema Corte de Justiça do país julgou inconstitucional, em 2005, a anistia dos crimes cometidos pelos agentes estatais contra os opositores políticos aos governos militares, iniciando-se desde então os consequentes processos penais. Pois bem, até fevereiro de 2014, nada menos do que 370 (trezentos e setenta) criminosos dos dois regimes militares argentinos (1966-1973 e 1973-1983) foram condenados à pena de prisão; inclusive dois ex-presidentes da República, que amargaram a prisão perpétua, sendo que um deles faleceu no cárcere. A persecução penal estendeu-se até mesmo a ex-magistrados, considerados co-autores de tais crimes.No Brasil, bem ao contrário, até hoje nem um só autor de crime praticado no quadro do terrorismo de Estado do regime empresarial-militar foi condenado pela Justiça. Passados mais de três anos da prolação da sentença condenatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Estado Brasileiro ainda não cumpriu nenhum dos seus doze pontos conclusivos, em flagrante violação da Constituição Federal e do sistema internacional de direitos humanos. De minha parte, há pelo menos três anos tenho envidado esforços no sentido de que essa grave omissão de nossos Poderes Públicos seja levada a juízo no Brasil e denunciada perante as instâncias internacionais, a fim de que fique bem marcada a responsabilidade do Estado Brasileiro. Conclusão A votação da lei de anistia em 1979 representou, na verdade, a conclusão de um pacto oculto entre as Forças Armadas e ambos os grupos que sempre exerceram conjuntamente a soberania entre nós – os agentes políticos e os potentados econômicos privados –, com o objetivo de devolver aos dois últimos o comando supremo do Estado, que os militares haviam arrebatado em 1964. Nesse episódio, à semelhança de tantos outros em nossa História, o povo foi posto de lado, como se nada tivesse a ver com isso. A Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988, seguindo as que a antecederam, proclama solenemente que “todo poder emana do povo” (art. 1º, parágrafo único). Chega mesmo a declarar que o povo exerce seu poder, não apenas por meio de representantes eleitos, mas diretamente; isto é, mediante plebiscitos e referendos (art. 14). Tais declarações constitucionais – é lamentável dizê-lo – são meras figuras de retórica.Sem dúvida, os cidadãos brasileiros votam regularmente em eleições. O conjunto dos eleitos, no entanto, sempre ficou muito longe de defender os verdadeiros interesses da maioria do eleitorado, pertencente aos estratos pobres da população. O que os mal chamados representantes do povo defendem, isto sim, são os interesses da minoria proprietária e empresária, a qual fornece, por meio de doações, nada menos que dois terços das receitas dos principais partidos políticos. Para se ter uma ideia da falsidade de nossa democracia representativa, basta assinalar um só fato: enquanto cerca de 40.000 produtores agrícolas, os quais exploram 50% das áreas cultiváveis do país, elegem de 120 a 140 deputados federais, os componentes das 4 a 6 milhões de famílias que praticam a agricultura familiar são representados no Congresso Nacional por no máximo 12 deputados.Quanto às instituições da democracia direta – grande novidade do texto constitucional de 1988 –, elas só existem no papel. O art. 49, inciso XV da Constituição dispõe que “é da competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar referendo e convocar plebiscito”. Ou seja, o povo soberano somente poderá tomar diretamente decisões políticas, quando autorizado pelos seus representantes. Trata-se, sem dúvida, de uma original modalidade de mandato...Enquanto persistir essa triste realidade, não ficará afastada a possibilidade de voltarem a ocorrer prolongados desmandos políticos, como o provocado pelo golpe de Estado de 1964.Felizmente, a consciência pública começa aos poucos a se dar conta de que a única via de solução para esse impasse consiste em instituir no país um regime político de efetiva soberania popular, no qual haja a supremacia constante do bem comum do povo (a res publica romana) sobre todo e qualquer interesse particular, com controles permanentes sobre o exercício do poder em todos os níveis. Em suma, a criação de um autêntico Estado de Direito, Republicano e Democrático.Para alcançar esse objetivo, o caminho é longo e penoso. Mas o que importa é começar desde logo a dar os primeiros passos, no sentido da defesa intransigente da dignidade do povo brasileiro. “Se as coisas são inatingíveis... ora!Não é motivo para não querê-las...Que tristes os caminhos, se não foraA presença distante das estrelas!”[21]*Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra[1]La dynamique du capitalisme, Éditions Flammarion, 2008, p. 68.[2]Cf. José Murilo de Carvalho, I A Construção da Ordem, II Teatro de Sombras, Rio de Janeiro (Editora UFRJ – Relume Dumará), 2ª ed., p. 212.[3]Vejam-se Auguste de Saint-Hilaire, Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, Editora da Universidade de São Paulo e Livraria Itatiaia Editora Ltda., 1975, p. 157; John Luccock, Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil, Editora da Universidade de São Paulo e Livraria Itatiaia Editora Ltda., 1975, p. 321; Charles Darwin, O Diário do Beagle, Editora UFPR, 2006, p. 100.[4]Cf., principalmente, Caio Prado Jr., Formação do Brasil Contemporâneo, cit., pp. 15 e ss.; Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso, 2ª ed., São Paulo (Companhia Editora Nacional e Editora da Universidade de São Paulo), Coleção Brasiliana – vol, 333, 1969, pp. 318 e ss.; Raymundo Faoro, Os Donos do Poder, 1ª edição, 1958; 3ª edição, Editora Globo, 2001, pp. 45 e ss.[5]Os Donos do Poder, cit.[6]História de Portugal, 8ª ed., Lisboa (Bertrand), t. I, p. 99.[7]Cultura e Opulência do Brasil, Editora Itatiaia Limitada e Editora da Universidade de São Paulo, 1982, pág. 75.[8] Cf. Stuart B. Schwartz, Sovereignty and Society in Colonial Brazil – The High Court of Bahia and its Judges 1609-1751, University of California Press, 1973, capítulo XIII (The Brazilianization of Bureaucracy).[9]Para maiores informações sobre o assunto, cf. Caio Prado Jr., Formação do Brasil Contemporâneo, 2011 (Companhia das Letras), pp. 329 e ss.[10]A Bahia no Século XVIII, vol. I (Livro I), Editora Itapuã, 1969, pp. 129/130.[11]De acordo com o disposto no art. 90 da Constituição imperial de 1824, “as nomeações dos Deputados e Senadores para a Assembleia Geral, e dos Membros dos Conselhos Gerais das Províncias, serão feitas por Eleições indiretas, elegendo a massa dos Cidadãos ativos em Assembleias Paroquiais os Eleitores de Província, e estes os Representantes da Nação e Província.”[12]Leia-se, sobre esse partido, a monografia de Maria Victoria de Mesquita Benevides, A UDN e o Udenismo – Ambigüidades do Liberalismo Brasileiro (1945-1965), Paz e Terra, 1981.[13]O governo Kubitschek – Desenvolvimento Econômico e Estabilidade Política, Paz e Terra, 1976, p. 149.[14] Em declaração de 29 de maio de 1964, os bispos brasileiros afirmaram que, vendo “a marcha acelerada do comunismo para a conquista do poder, as forças armadas acudiram em tempo, e evitaram que se consumasse a implantação do regime bolchevista em nossa terra”. Atendendo, no entanto, à preocupação da minoria episcopal quanto ao viés autoritário do regime castrense, a declaração advertiu: “Que os acusados tenham o sagrado direito de defesa e não se transformem em objeto de ódio ou de vindita.” [15]Inconformado com essa vergonhosa submissão do Poder Legislativo aos potentados privados do setor de comunicação social, consegui convencer em 2011 um partido político (PSOL) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Comunicação e Publicidade – Contcop a ingressarem com ações diretas de inconstitucionalidade por omissão no Supremo Tribunal Federal (ADO nº 10 e 11).[16] Cf. Elio Gaspari, A Ditadura Escancarada, 2002, Companhia das Letras, pp. 59 e ss.[17]Confiram-se os dados referidos por Elio Gaspari (A Ditadura Encurralada, 2004, Companhia das Letras, pág. 54): “Em 1962 só doze das trinta maiores empresas pertenciam ao Estado. Em 1971 elas eram dezessete. No final do delfinato [período de atuação de Antonio Delfim Neto como ministro dos governos militares] o Estado detinha 45,8% do patrimônio líquido das 5257 principais empresas não agrícolas. Em 1972, durante as grandes festas do Milagre [o período de crescimento médio anual de 10% da economia brasileira], o Estado era dono de 46 das cem maiores empresas não financeiras do Brasil, e de nove das cem maiores empresas manufatureiras (contra sete em 66). No delfinato a participação do setor público na indústria passara de 8% em 1966 para 15% em 72”.[18]Apud Elio Gaspari, A Ditadura Encurralada, cit., pp. 59 e ss.[19] Citado por Elio Gaspari, A Ditadura Encurralada, cit., p. 373.[20] Tive a honra de ser advogado da única sobrevivente da Casa da Morte de Petrópolis, Inês Etienne Romeu, em ação declaratória proposta contra a União Federal em 1999, pelo seqüestro, cárcere privado e torturas, cometidos contra ela.[21] Mário Quintana, Espelho Mágico.

Em Defesa do Direito de Greve dos Trabalhadores Garis: o encontro do Carnaval com sua história

Jorge Luiz Souto Maior(*)1. O contexto históricoA ideia de um país do Carnaval surge, na década de 30, com o propósito varguista de construir uma identidade nacional, buscando enaltecer o que o brasileiro tinha de próprio e positivo, deixando de revelar, no entanto, o objetivo em torno da formatação de uma sociedade capitalista, que pressupunha a constituição de uma nova classe operária com esse brasileiro, um sujeito naturalmente ordeiro e pacífico, e que, com a evolução dos tempos, embora ainda festivo e alegre, se apresentava como disciplinado e trabalhador, uma espécie de malandro regenerado, que portava virtudes religiosas e propensão ao casamento, pronto, portanto, para se integrar ao projeto de enriquecimento da Nação, contrariamente aos operários estrangeiros, que portavam ideias perniciosas à ordem brasileira.O Carnaval, como veículo de aproximação com o povo, seria apropriado para que se fizesse um elogio de valores que interessavam ao governo.Mas, como observa Eliana de Freitas Dutra, “Ainda assim, o carnaval popular seguiu sua trilha de riso, deboche e alegria na animada capital da República. Tributário de outras festas populares, como a Festa da Penha, o Carnaval conservou a herança dos ritmos trazidos da África pelos escravos, levados para essa festa popular religiosa. Os sambas de roda vindos da Bahia, tendo sobrevivido nos terreiros de samba, também migraram para o Carnaval, que ocupava locais como a Praça Onze, onde se divertiam as gentes dos subúrbios e desfilavam os blocos de sujos, os mascarados e os zé-pereiras, com seus tambores e bombos.”Mesmo com toda propaganda, a música de boa parte de sambistas continuou se desenvolvendo, isso porque estava envolto em um dado cultural mais profundo, tendo sido integrado ao cenário das cidades, ecoando, também, o grito de liberdade dos ex-escravos. “A musicalidade circunscrita ao latifúndio – em si, expressão acabada de um documento de barbárie –, ao se libertar com a Abolição, invade a cidade: um grito ecoa pela Nação, animando a festa (carnaval), embriagando a atmosfera urbana com uma música popular envolvente, de grande ressonância nas diversas nervuras da sociedade.”No samba, os protagonistas, vítimas da divisão escravista do trabalho, repudiam o trabalho explorado, promovendo uma inversão, onde “o operário é a principal personagem à sombra, ofuscado pela ruidosa e alegre consagração da figura do malandro.”O Carnaval, assim, é uma festa que impõe a desordem num ambiente em que a ordem segrega. É a busca de outra ordem, outra harmonia, o que foi difundido, magistralmente, por Noel Rosa, seguindo a trilha traçada por João da Baiana, Donga, Sinhô, Caninha, Heitor dos Prazeres, Pixinguinha, sendo acompanhado no nordeste por Jackson do Pandeiro, em São Paulo, por Adoniram Barbosa e, no Rio, por Moreira da Silva, introdutor do breque, “um dos recursos mais maliciosos da canção brasileira, portador de distanciamento irônico” e que proclamou: “Estou cansado dessa vida de otário/Afinal o meu salário já não chega para mim”.Noel Rosa, que assumiu a postura de vida boêmia, percebeu bem a supressão do humano pelo trabalho fabril, que se procurava então estimular, como revelado em Três Apitos, de 1933:Quando o apito da fábrica de tecidosVem ferir os meus ouvidosEu me lembro de vocêMas você andaSem dúvida bem zangadaOu está interessadaEm fingir que não me vêVocê que atende ao apito de uma chaminé de barroPorque não atende ao gritoTão aflitoDa buzina do meu carroVocê no invernoSem meias vai pro trabalhoNão faz fé no agasalhoNem no frio você crêMas você é mesmo artigo que não se imitaQuando a fábrica apitaFaz reclame de vocêNos meus olhos você lêQue eu sofro cruelmenteCom ciúmes do gerenteImpertinenteQue dá ordens a vocêSou do sereno poeta muito soturnoVou virar guarda-noturnoE você sabe porqueMas você não sabeQue enquanto você faz panoFaço junto ao pianoEstes versos pra vocêO problema é que na relação simbiótica entre sambistas e governo este aprendeu a se valer do “jogo de cintura” para dissimular, propositalmente, a realidade, apropriando-se da cultura da malandragem. Ou seja, promovendo aquilo que se poderia chamar de uma “malandragem oficial” e ao longo dos anos, submetendo o malandro do povo ao estágio extremo da necessidade e da marginalidade, impondo-lhe não apenas a miséria, mas também, repressão institucionalizada, que se intensificou no período da ditadura civil-militar de 1964 em diante, e acabou por manter-se como a única malandragem possível no cenário nacional, como denunciado por Chico Buarque, em 1977-1978, na música, Homenagem ao malandro, feita para a sua peça, Ópera do Malandro:Eu fui fazer um samba em homenagem À nata da malandragem Que conheço de outros carnavaisEu fui à Lapa e perdi a viagem Que aquela tal malandragem Não existe maisAgora já não é normal O que dá de malandro regular, profissional Malandro com aparato de malandro oficial Malandro candidato a malandro federal Malandro com retrato na coluna social Malandro com contrato, com gravata e capital Que nunca se dá malMas o malandro pra valer - não espalha Aposentou a navalha Tem mulher e filho e tralha e talDizem as más línguas que ele até trabalha Mora lá longe e chacoalha Num trem da Central Em suma, o Carnaval se institucionalizou e mais tarde passou a ser objeto importante da lógica da produção capitalista e a classe operária brasileira, voltada a um trabalho cujo proveito não lhe permite concreta ascensão social, foi forjada e expulsa do domínio ideológico das festas populares.Tudo isso se fez, no entanto, dentro da característica da cultura do disfarce, que restou, concretamente, como o caldo cultural do período. A institucionalização estatal da malandragem, além disso, foi incorporada pela classe dominante, fazendo com que as relações sociais se desenvolvessem na perspectiva da dissimulação. É comum, pois, no percurso histórico, verificar a classe dominante proferindo discursos sobre questões sociais, partindo de seu modo de ver o mundo, mas fazendo-o de tal forma que pareça estar, meramente, reproduzindo os interesses da classe dominada. E, não raro, utilizando-se dos meios de comunicação em massa, faz com que essa sua racionalidade seja posta nas falas dos trabalhadores e excluídos em geral. É assim, por exemplo, que se tenta fazer crer que os direitos sociais são prejudiciais aos seus titulares, por serem artificiais, já que a natureza das coisas é determinada pelas possibilidades econômicas, que não podem ser alteradas já que o “status quo” precisa ser preservado, e que, de fato, deixar de aplicar os direitos é um benefício que se faz em prol do bem-estar dos trabalhadores. Utilizam, pois, da estratégia básica da malandragem, que é se apropriar da dialética entre ordem e desordem, pervertendo a regra do jogo e alterando até mesmo a perspectiva do outro.O capitalismo amadureceu no Brasil por esses fatores, tendo sido criado um exército de mão-de-obra para satisfazer as necessidades da reprodução do capital, atendendo, inclusive, interesses econômicos internacionais, mas sem permitir a percepção dessa mudança, mantendo-se a visão do Brasil como o país da natureza abundante, onde tudo que se planta dá, que não está integrado por classes, que conta com um povo coeso e harmônico, de convivência pacífica, numa lógica corporativa, mesmo que não exista e se leve adiante um projeto de sociedade, imperando, em concreto, a ideologia do individualismo e do liberalismo. Um país que se apresenta formado por pessoas pacíficas, ordeiras, tementes a Deus, felizes e irreverentes, mas que, em concreto, se desenvolve por intermédio de separação de classes com profunda desigualdade, que reverbera valores como o racismo e o machismo, e que se mantém por meio da violência institucionalizada, tratando como desajustados, marginais, os que tentam relevar e superar as injustiças sociais e as dissimulações em que a “ordem” se funda. Um país no qual a ordem jurídica, que garante valores como a dignidade e a justiça social, chegando ao ponto de vincular o direito de propriedade ao cumprimento de sua função social, é apresentada como obra-prima da racionalidade, mas, que, nem de longe, enfrenta o desafio de atingir, em concreto, a realidade. As leis trabalhistas, por exemplo, foram criadas, mas nunca com o propósito real de serem aplicadas...A violência da preservação das desigualdades se produz, repetidas vezes, por formas veladas, tentando fazer crer que toda busca de alterar a realidade social representa a instalação do caos, uma forma de quebrar a harmonia entre as classes, fazendo-se supor a felicidade de quem está sendo explorado e para quem, inclusive, faz bem continuar sendo explorado, mesmo com supressão de direitos.O ataque recorrente que se faz à legislação trabalhista se insere neste contexto. Ora, os ataques partem exatamente daqueles que mais se beneficiam da legislação em questão, eis que serve para manter sob controle a classe operária, evidenciando, pois, uma atitude dissimulada, esperta, para se opor, de antemão, a possíveis reivindicações dos trabalhadores por melhores condições de trabalho, constituindo ao mesmo tempo, de forma até contraditória, a falência entre nós de uma racionalidade liberal, deixando transparecer, mesmo sem querer, o resquício escravista e a lógica oligárquica. É como se dissessem: “Direito ao vagabundo, prá quê?”2. O fato e o direitoE eis que, em março de 2014, trabalhadores brasileiros, na condição mesma de trabalhadores, garis, resolvem se apresentar na festa do Carnaval e o fazem da maneira que podem, fazendo greve.E o que se viu em reação? Bom o que se viu foi o reflexo de toda essa história da institucionalização esperta da exclusão.Anunciada a intenção dos garis em fazer greve, para auferir melhores condições de trabalho, o sindicato e o empregador se anteciparam e fizeram um acordo, em 03 de março. Esse acordo, segundo afirmam os garis, foi bem aquém das pretensões da categoria. Os garis resolveram, então, deliberar pela greve e tiveram que fazê-lo sem a presença do sindicato, o qual já havia se posicionado sobre o tema.A partir daí o que se viu foi a utilização de todo o aparato estatal para destruir os trabalhadores, até o ponto de alguns deles terem sido chamados de “marginais e delinqüentes” pelo prefeito da cidade do Rio de Janeiro.Ora, enquanto os garis se submetem a trabalhar, realizando uma atividade extremamente dura, durante várias horas por dia, ganhando R$803,00 por mês, chacoalhando nos trens da Central, são considerados cidadãos ordeiros, pacíficos, virtuosos. Alguns desses, inclusive, como se anunciou, trabalham como gari há 30 (trinta) anos. Mas, se resolvem se valer da ocasião do advento do Carnaval para pressionar o empregador, visando mudar um pouco a sua “sorte” na vida, são espertalhões, “chantagistas”, como afirmou o presidente da COMLURB.Os garis, então, ao se revelarem como trabalhadores, com consciência de classe, deixando de ser figuras alegóricas, espécies de balões de ensaio para estudos antropológicos, tiveram a oportunidade de perceber a forma concreta como o Estado, na qualidade de empregador, se relaciona com trabalhadores.O Estado se recusou a conversar e impôs aos garis, por efeito de uma estratégia jurídica, a volta ao trabalho. Com a recusa, tratou, imediatamente, de “dispensar”, “mandar embora”, os garis, fazendo-o por meio de mensagem pelo celular. A tecnologia a serviço da perversidade. E foi além. Foram utilizados dispositivos, em desuso, do Código Penal, pertinentes aos crimes contra a organização de trabalho, instituídos, não por acaso, durante o Estado Novo, para prender dirigentes sindicais que estavam tentando se opor que colegas furassem a greve. Com relação à ação dos garis trabalhadores o Estado agiu rapidamente, mostrou eficiência, utilizando-se dos instrumentos e instituições jurídicas à sua disposição para a retomada da ordem, chegando a conduzir trabalhadores à prisão, sob a pecha de “marginais”. Mas, esse mesmo Estado não foi eficiente para, primeiro, negociar de boa-fé com os garis e não consta que tenha demonstrado a mesma eficiência quando os direitos dos trabalhadores, em geral, deixam de ser respeitados por alguns empregadores, que insistem em se valer da ilicitude para frustrar a concorrência e majorarem, indevidamente, os seus lucros.No mesmo caderno do Jornal que traz a notícia da greve dos garis, pondo em destaque um grande foto do lixo nas ruas e a prisão dos “marginais”, há uma nota, pequena, que informa: “90 mil crianças estão à espera de vaga em creche em SP”. Claro que se trata de outro Estado da Federação. O que se está dizendo, e os exemplos seriam inúmeros para ilustração, é que a eficiência do Estado para reprimir o cidadão que luta por direitos, visando à melhoria de sua condição social, é inversamente proporcional quando o assunto é a concretização dos direitos sociais assegurados, constitucionalmente, a esses mesmos cidadãos.E, juridicamente falando, está tudo errado. Primeiro, o acordo, para ter validade jurídica precisava ter sido submetido à assembleia dos trabalhadores, já que o preceito democrático é o que rege, fundamentalmente, nosso Estado de Direito. Essa, ademais, é a previsão expressa do artigo 612, da CLT: “Os sindicatos só poderão celebrar Convenções ou Acordos Coletivos de Trabalho, por deliberação de Assembleia Geral especialmente convocada para esse fim, consoante o disposto nos respectivos Estatutos, dependendo a validade da mesma do comparecimento e votação, em primeira convocação, de 2/3 dos associados da entidade, se se tratar de Convenção, e dos interessados, no caso de Acordo, e, em segunda, de 1/3 dos mesmos.”No caso da greve, ainda que dependa do sindicato para ser deflagrada, não se pode negá-la como fato social, respaldado pelo direito, quando haja distensão notória entre os trabalhadores e a direção do sindicato, até porque é dever das entidades de representação, dado o preceito democrático, convocar assembleias para deliberações, sendo que a greve, nos termos da lei, concretamente, não está condicionada ao direcionamento da diretoria e sim à vontade da categoria expressa em assembleia geral, “que definirá as reivindicações da categoria e deliberará sobre a paralisação coletiva da prestação de serviços”, sendo certo também que, por ilação lógica, somente a assembleia pode decidir pelo fim da greve (art. 4º., da Lei n. 7.783/89).O acordo feito pela direção do sindicato não vincula, portanto, a categoria. E, vale reforçar: ainda que a greve se exerça por meio do sindicato, o direito de greve não pertence ao sindicato, como revela, expressamente, o artigo 9º., da CF, reproduzido, ipsis literis, no art. 1º., da Lei n. 7.783/89: “É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.” (grifou-se)Ao que consta, assembleia dos trabalhadores, mesmo não tendo sido chamada pelo sindicato, rejeitou o acordo e deliberou pela greve, não havendo, portanto, ilegalidade alguma no ato dos trabalhadores de deixarem de comparecer ao trabalho depois disso, pois essa é, de fato, a essência da greve, qual seja, a paralisação do trabalho.Desse modo, a atitude do prefeito do município do Rio de Janeiro ao determinar a “dispensa” de trabalhadores, fazendo-o ainda da forma vexatória como o fez, ou seja, por envio de mensagem pelo celular, configura uma flagrante ilegalidade, além de ser uma agressão à condição humana e jurídica dos trabalhadores, atitude que, adotando a própria lógica argumentativa trazida à tona pelo prefeito, pode ser enquadrada como ato de “marginal ou delinqüente”, vez que em desrespeito à ordem jurídica.Verdade que há uma decisão judicial, declarando a ilegalidade da greve e determinando a imediata suspensão do movimento, mas o que consta da decisão é uma penalidade pecuniária. Ou seja, a determinação de suspensão da greve “sob pena de multa diária no caso de descumprimento”.A jurisprudência trabalhista admite a dispensa por justa causa no caso de participação em greve declarada abusiva ou ilegal, mas esse efeito, conforme prevê essa mesma jurisprudência, depende da individualização da conduta, exigindo-se uma participação ativa e a prática de atos que possam, em si, quebrar, de forma indelével, o vínculo de boa-fé, extrapolando, pois, a própria greve, uma vez que a ordem jurídica internacional é bastante rígida quanto à rejeição de qualquer prática do empregador que possa se aproximar de uma discriminação sindical. Essa noção está muito clara no entendimento do TST, no sentido de que: “A simples adesão ao movimento paredista não constitui falta grave, porquanto somente atos de violência desencadeados por força desta paralisação conduzem ao reconhecimento da justa causa” (RR 546287/ 99, Relator desig. Ronaldo José Lopes Leal) e de forma ainda menos restritiva no STF: “A simples adesão à greve não constitui falta grave” (Súmula 316).Pela simples ausência ao trabalho, no caso da greve declarada ilegal e, assim mesmo, somente depois de transitada em julgado a decisão, o empregador, portanto, poderia, no máximo, efetuar o desconto dos salários, sendo que uma justa causa somente adviria pelo abandono do emprego, que exige um completo desinteresse pela continuidade no trabalho (art. 482, da CLT), do que não se trata, evidentemente.O empregador não pode, simplesmente, recusar a dinâmica dialética e coletiva que se produz na base da categoria dos trabalhadores, efetuando a dispensa de trabalhadores, com ou sem justa causa, em ato de represália ou com o propósito de desmantelar e amedrontar a classe trabalhadora. Oportuno lembrar que a Convenção 98 da OIT, ratificada pelo Brasil, dispõe que “os trabalhadores deverão gozar de proteção adequada contra quaisquer atos atentatórios à liberdade sindical em matéria de emprego”, além da condenação do Brasil junto ao Comitê de Liberdade Sindical, ocorrida em 2009, em função das dispensas arbitrárias feitas pelos governos do Rio de Janeiro e de São Paulo por ocasião de greves dos trabalhadores metroviários (Caso nº 2.646). A prática em questão não é apenas ilegal, do ponto de vista das normas de proteção do direito de organização sindical dos trabalhadores e do exercício do direito de greve, mas também uma ofensa à condição humana dos trabalhadores. Neste sentido, impõe-se a imediata reintegração desses trabalhadores, ilegalmente dispensados, sem prejuízo da possibilidade de buscarem, judicialmente, uma indenização pelo dano moral experimentado. O que não apagará, de todo modo, mais um caso de violência institucionalizada contra a classe trabalhadora, que cumpre, portanto, deixar consignada.Reconhecida a ilegalidade do ato cometido pelo prefeito da cidade do Rio de Janeiro, que atingiu, também, a mesma esfera dos crimes contra a organização do trabalho, as perguntas que se devem fazer os trabalhadores são: por que, afinal, a polícia não vai lá prender o prefeito, se ele cometeu o mesmo crime que acusam ter cometido os três garis? Que folia é essa? Indagações que, aliás, fazem lembrar a perplexidade exposta na música, Pelo Telefone, de 1917, atribuída à Donga:O chefe da políciaPelo telefoneManda me avisarQue na CariocaTem uma roleta Para se jogarNo caso específico dos garis, a reflexão, que passa pelo aspecto do reconhecimento de que a greve tem algo de Carnaval, por representar a “desordem” numa ordem que oprime (e talvez por isso o riso de Renato Luiz Lourenço, o “Sorriso”, não tenha sido tão verdadeiro quanto agora), prossiga com uma bela conversa com Drummond:Amigo lixeiro, mais paciência. Você não pode fazer greve. Não lhe falaram isto, pela voz do seu prudente sindicato? Não sabe que sua pá de lixo é essencial a segurança nacional?A lei o diz (decreto-lei que nem sei se pode assim chamar-se, em todo caso papel forte, papel assustador). Tome cuidado, lixeiro camarada, e pegue a pá, me remova depressa este monturo que ofende a minha vista e o meu olfato.Você já pensou que descalabro, que injustiça ao nosso status ipanêmico, lebloniano, sanconrádico, barramárico, se as calçadas da Vieira Souto e outras conspícuas vias de alto coturno continuarem repletas de pacotes, latões e sacos plásticos (estes, embora azuis), anunciando uma outra e feia festa: a da decomposição mor das coisas do nosso tempo, orgulhoso de técnica e de cleaning?Ah, que feio, meu querido, essa irmanar de ruas, avenidas, becos, bulevares, vielas e betesgas e tatatá do nosso Rio tão turístico e tão compartimentado socialmente, na mesma chave de perfume intenso que Lanvin jamais assinaria!Veja você, meu caro irrefletido: a Rua Cata-Piolho, em Deus-me-livre, equiparada à Atlântica Avenida (ou esta àquela) por idêntico cheiro e as mesmas moscas sartrianamente varejando, os restos tão diversos uns dos outros, como se até nos restos não houvesse a diferença que vai do lixo ao luxo!Há lixo e lixo, meu lixeiro. O lixo comercial é bem distinto do lixo residencial, e este, complexo, oferece os mais vários atrativos a quem sequer tem lixo a jogar fora. Ouço falar que tudo se resume em você ganhar um pouco mais de mínimos salários. Ora essa, rapaz: já não lhe basta ser o confiscável serviçal a que o Rio confere a alta missão de sumir com seus podres, contribuindo para que nossa imagem se redobre de graças mil sob este céu de anil?Vamos, aperte mais o cinto, se o tiver (barbante mesmo serve) e pense na cidade, nos seus mitos que cumpre manter asseados e luzidos.Não me faça mais greve, irmão-lixeiro. Eu sei que há pouco pão e muita pá, e nem sempre ou jamais se encontram dólares, jóias, letras de câmbio e outros milagres no aterro sanitário.E daí? Você tem a ginga, o molejo necessários para tirar de letra um samba caprichado naqueles comerciais de televisão, e ganhar com isto o seu cachê fazendo frente ao torniquete da inflação.Pelo que, prezadíssimo lixeiro, estamos conversados e entendidos: você já sabe que é essencial à segurança nacional e, por que não, à segurança multinacional.Brasil, 06 de março de 2014.

Violência silenciosa do Estado (Social) e o grito das manifestações de junho

Jorge Luiz Souto Maior1. O GolpeEm 1º. de abril de 1964, o golpe militar, impulsionado pelo medo de uma reforma social e patrocinado por grupos empresariais estrangeiros, com eco em parte da classe empresarial brasileira, que, naquele instante, ainda não se conformava com o advento de uma legislação trabalhista no Brasil, derrubou o governo democrático e instaurou uma ditadura, que duraria até março de 1985.Dia desses, estudando o período, consultei o manancial da Revista LTr, curioso para saber o que diziam a respeito os juristas trabalhistas na época.A edição de mar/abr, de 1964, da Revista, traz as seguintes discussões: Publicação das Súmulas do STF sobre direito do trabalho; os artigos: “Previdência Social” (Orlando Gomes e Élson Gottschalk), “Despedida de dirigente sindical” (Alcides de Mendonça Lima), “Presença obrigatória do advogado na Justiça do Trabalho” (Ruy de Azevedo Sodré), “Alta clínica em ambiente do trabalho” (José Barros Azevedo); e Jurisprudência sobre: adicional de insalubridade, equiparação salarial; recurso de revista; auxílio-doença etc...O número seguinte, mai/jun-64, traz a publicação da Lei de greve, n. 4.330/64, sem considerações críticas e artigos dos temas típicos trabalhistas e jurisprudência, prosseguindo no mesmo tom nas demais edições.Esta passividade, em termos trabalhistas, talvez se explique pelo natural temor da repressão ou pela declaração proferida pelo Comando Supremo da Revolução, logo após a tomada do poder, nos seguintes termos: “O Comando Supremo da Revolução, tendo tomado conhecimento de que indivíduos ligados ao peleguismo e que infestam os meios sindicais estão desenvolvendo campanhas e boatos para provocar inquietações nos meios operários, vem uma vez por todas esclarecer os seguintes pontos: 1 – A Revolução vitoriosa levada a cabo pelas Fôrças Armadas, com apoio do povo, considera irreversíveis as conquistas sociais legítimas contidas na legislação trabalhista em vigor; 2 – Os trabalhadores continuarão em pleno gozo de seus direitos, agora mais do que antes, porque estão livres da influência político-partidária; 3 – A Justiça do Trabalho permanece em pleno funcionamento em sua missão de defesa dos justos interesses e de harmonizar as divergências entre empregados e empregadores; 4 – O Comando Supremo da Revolução está certo de que os trabalhadores brasileiros saberão não dar ouvidos a estes boatos, desprezando os elementos perturbadores, saberão cumprir seus deveres e obrigações, inseparáveis que são dos direitos constantes da legislação trabalhista brasileira’.”2 Entretanto, apesar dessa declaração, a política econômica do governo se pautou pelo “arrocho salarial”, nos termos do Decreto-lei n. 15, de julho de 1966, baixado com base no AI n. 02.A respeito dessa questão específica, o que se extrai de números da Revista referida são dois artigos, (edição de jul/ago de 1966, pp. 352-357) e (edição de set/out de 1967, pp. 525/530), defendendo a constitucionalidade do Decreto, que previa que aumentos salariais somente poderiam ocorrer após um ano do último acordo ou dissídio coletivo e que as empresas em dificuldade financeira poderiam recorrer à Justiça do Trabalho (perante às Juntas de Conciliação), para requerem a suspensão da aplicação do acordo ou decisão normativa.Em algumas obras jurídicas trabalhistas da época, a exposição histórica do Direito do Trabalho parecia negligenciar o fato de que se vivia em plena ditadura, preferindo-se tecer críticas à outra ditadura, a de Vargas. Antonio Lamarca, por exemplo, em seu livro, Curso Expositivo de Direito do Trabalho, RT, São Paulo, de 1972, após fazer severa crítica à ditadura de Vargas, assim se posicionava sobre a história do Direito do Trabalho iniciada com a “Revolução” Militar:Em 31 de março de 1964, nova Revolução sacudiu o gigante: o regime representativo sofreu novo abalo; baixaram-se Atos Institucionais, em substituição a vários dispositivos da Constituição. Os direitos dos trabalhadores foram assegurados. Por isso é que, como dissemos, achamos, data venia, arbitrária a divisão feita por BARRETO PRADO. A Revolução de 1964 desfraldou uma bandeira contra a corrupção e subversão; mas os direitos de nossos trabalhadores foram salvaguardados. Nesta fase derradeira, regulamentou-se o direito de greve (Lei n. 4.330, de 1o.6.1964), estabeleceram-se diversas medidas de controle salarial, para coadjuvar o combate à inflação galopante, e regulamentaram-se numerosas profissões. (p. 23)Mais abaixo arrematava o mesmo autor:A Segunda Guerra Mundial forneceu-nos os fundamentos de uma sólida indústria de transformação: estamos, hoje em dia, emergindo do escravizante monopólio do café e preparamo-nos, confiantes, para dar um salto por cima do Futuro, recuperando o tempo perdido. “Ninguém segura este país” constitui um sloganque pode ministrar-nos o até agora ausente orgulho nacional. Possivelmente a próxima centúria nos apanhe liderando as nações de língua neo-latina, nos termos econômicos, político e social. Temos tudo para sermos grandes. (p. 23)Na obra de Mozart Victor Russomano, Curso de Direito do Trabalho José Konfino Editor, Rio de Janeiro, de 1972, que na época ocupava o cargo de Vice-Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, no levantamento histórico do Direito do Trabalho, há destaque à proliferação de leis trabalhistas do período de Vargas, especialmente, a partir da Carta de 37, como uma característica dos regimes “nazi-fascistas”. Em seguida, é feita uma menção à “redemocratização” do país, com a Constituição de 1946, não se proferindo uma só palavra sobre a ditadura militar. Do período posterior a 64, lembra-se apenas da Constituição de 1967 e do Decreto-Lei n. 229, de 28 de fevereiro de 1967 (pp. 21-23).Parte da produção jurídica trabalhista da época, portanto, acaba por negligenciar o fato de que se vivia sob o comando de uma ditadura, que aniquilava o Estado Democrático de Direito e que impunha diretrizes à relações de trabalho baseadas em Atos Institucionais. Como conseqüência desta situação, não se vê nenhum embate mais profundo sobre a função do direito do trabalho e suas relações com os ideais de justiça social, naquele tempo de arrocho salarial e de repressão da atividade sindical.Mas, as discussões trabalhistas começam a ficar um pouco mais calorosas com a apresentação, pelo governo, em 1966, do projeto de criação do FGTS.Denunciando o desmantelamento do direito trabalhista que o FGTS representava, destaca-se contundente crítica de Armando Cassimiro Costa, em parecer elaborado em 10 de maio de 1966, nos seguintes termos:Ainda recentemente no I Congresso Iberoamericano de Derecho del Trabajo, “entre as conclusões aprovadas pela respectiva comissão, destacamos a de que a estabilidade deve ser consagrada como regra, ficando a despedida (sem justa causa) como exceção”. E mais “De um modo geral, reconheceu-se a finalidade social do instituto: garantir o direito ao trabalho, evitando o desemprego” (José Marins Catharino, in LTr 29/533). A mutilação que o Governo brasileiro propõe para o instituto em causa é, pois, um desmentido à conclusão a que chegaram os juristas iberoamericanos. E note-se que, atualmente, no Brasil, quem impõe as leis não é mais o homem do direito, afeito à técnica e à ciência jurídica, mas o economista, o “o homo oeconomicus” (pp. 120-121) “O mal não está na estabilidade. Está nos que não a compreendem. Entre estes se enfilera, agora, o Governo Federal. Como disse o Prof. Cesarino Júnior na entrevista já citada, é preceiso não confundir indenização com estabilidade: substituir uma coisa pela outra seria violentar a própria natureza do contrato individual de trabalho. Enfim, o remédio está na fiscalização das leis trabalhistas – omissão do próprio Governo – que agora se volta contra o instituto, cometendo dupla falha.” (LTr, mar/abr 1966, n. 30, p. 121).Sobressaem, também, no mesmo sentido, o artigo de Aluysio Sampaio (Juiz do Trabalho), com o título, “Rescisão do contrato de trabalho: estabilidade, com indenização, ou fundo de garantia”, LTr, jul/ago, 1967, n. 31, pp. 387-437, e a obra de José Martins Catharino, LTr, São Paulo, 1966.Merece relevo, ainda, já em 1970, a obra de Cesarino Júnior, Direito Social Brasileiro, onde o autor firma forte oposição ao período posterior a 1964, referindo-se a ele como período de “atividade revisionista negativa”, em virtude do “arrocho salarial” imposto pelas novas leis de política salarial e a Lei n. 5.107/66, que criara o FGTS (p. 88).Lembrando do compromisso assumido pelos revolucionários, de que não atingiriam os direitos dos trabalhadores, assim se posicionou Cesarino:Tal pronunciamento deu a entender que nada se faria no sentido de impor uma carga exagerada aos hipossuficientes em matéria de reformas sociais. Ocorre, porém, que duas leis de caráter nitidamente tecnocrata foram impostas aos trabalhadores. Referimo-nos a toda legislação concernente ao chamado “arrocho salarial” e à lei que criou o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.3Também Mozart Victor Russomano, na mesma obra acima mencionada, na parte que diz respeito à estabilidade no emprego e ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, acaba deixando de lado a sua aparente parcialidade, para atacar frontalmente o FGTS, denominando-o como um “duro golpe desfechado contra a estabilidade” (p. 245).Em sua defesa da estabilidade, aliás, Russomano, denuncia que a política econômica da época estava atendendo interesses de grupos econômicos nacionais e estrangeiros:A princípio, os partidários da abolição da estabilidade tiveram os seus esforços barrados por uma política nacional de declarada proteção ao trabalhador, desenvolvida por um governo que buscava apoio, em última análise, no sindicalismo nacional.Essa fase do processo brasileiro foi encerrada e, de imediato, instituiu-se no País um governo central forte, atuante, distanciado das reivindicações sindicalistas e que – tendo absorvido o Poder Legislativo – não encontrou barreiras políticas para pôr em execução a idéia insuflada, de modo todo especial, por grupos econômicos nacionais e estrangeiros, que formavam os redutos mais poderosos contra a estabilidade, por verem nela, inclusive, um empecilho aos seus investimentos.Na campanha que então se realizou contra a estabilidade, foram recapitulados todos os notórios defeitos do sistema brasileiro. Mas, não se cogitou de corrigi-los. Tratou-se, sim, de reformular o direito anterior, invocando-se as conveniências da política econômica, inclusive, a necessidade de atração, para o território nacional, de capitais privados estrangeiros. Silenciava-se, contudo, sobre os numerosos exemplos do Direito Comparado, que assinalam o progressivo aumento do número de nações que consagram a estabilidade, com nuanças inevitáveis, oriundas das condições do lugar e da época, especialmente a partir da promulgação da Lei de 1951, da República Federal da Alemanha.(....)Esse caminho promissor não seduziu os legisladores do período imediatamente posterior à Revolução de 1964. Naquela época, vivíamos uma fase difícil da vida nacional, sacudida nas suas mais sólidas estruturas pela inflação em alto ritmo. O Poder Público chegou, em estilos duros, a medidas enérgicas para contenção do custo de vida. A política econômica e, mais particularmente, a política salarial – pela primeira vez, na História do Brasil – reprimiram a reivindicação de novos direitos articulada pelos trabalhadores e, inclusive, chegaram ao extremo de forçar o retrocesso de certas normas, entre as quais estão as relativas à estabilidade....pela primeira vez, também, na crônica nacional, apesar da implantação no País de regime político rígido e poderoso, fomos testemunhas de um belo movimento sindical. Os trabalhadores reagiram, com valentia, contra essa flagrante subtração de seus direitos tradicionais, conquistados após mais de trinta anos de lutas penosas, e obtiveram, através de suas principais associações de classe, que aquela campanha alcançasse repercussão nacional. Ao lado deles, encontravam-se os juslaboralistas. Com raras exceções, os professores universitários de Direito do Trabalho de todo o Brasil compreenderam a importância daquele momento. Com a serenidade própria do cientista, eles souberam defender o que era inalienável na regulamentação do trabalho. Seus instrumentos foram a cátedra, a imprensa e o livro.Não faltaram, é verdade, as defesas do FGTS e os ataques à estabilidade. Neste sentido, Octavio Bueno Magano, em artigo publicado na edição da LTr, de mai/jun de 1966 (“Revisão da estabilidade”, pp. 273-283), assim se pronunciara:A maioria das críticas feitas ao Projeto não se dirigem propriamente a ele resolvendo-se, ao contrário, numa apologia sentimental da estabilidade, ou na condenação de sua supressão, que nele absolutamente não se preconiza. Essa falta de objetividade atraiçoa, em muitos casos, o propósito de atingir, por razões políticas, os que o apadrinham e não o que nele se contém.(....)Num país com o Brasil, o grande objetivo a ser alcançado é o da maximização da taxa de desenvolvimento. Só o desenvolvimento econômico poderá propiciar efetiva melhoria das condições de vida da população.Na perseguição de tal objetivo, há dois instrumentos fundamentais: a poupançae a produtividade.(....)No Projeto em análise estão presentes os referidos instrumentos de progresso: a poupançae a produtividade. (....) A conversão do Projetoem lei será, pois, um fator de desenvolvimento econômico e social, a ser por todos desejado.De todo modo, com exceção dessa discussão um pouco mais calorosa a respeito da estabilidade e do FGTS, o fato é que vivíamos sob uma ditadura, que impunha reformas na Constituição por meio de Atos Institucionais e nenhum questionamento mais direto se fazia sobre isto (pelo menos nas obras e textos consultados). Aliás, muito ao contrário o que resta deste período é uma concordância expressa com a quebra da ordem jurídica havida, com a edição do Enunciado n. 150, do Eg. TST, em 1982, que assim preconizou: “Falece competência à Justiça do Trabalho para determinar a reintegração ou a indenização de empregado demitido com base nos atos institucionais.”2. A Situação atualPor que falo disso? Porque certamente ficarão para a história os anais desse Congresso de Direito Previdência (que se perfaz em concomitância com outro, o de Direito do Trabalho), realizado em junho de 2013 em local muito próximo da Avenida Paulista, e algum dia alguém, um “pesquisador chato”, vai levantar o que se discutiu aqui enquanto o país passava por esse momento de extrema agitação com as manifestações pelas ruas, um momento que se pode até identificar como revolucionário, por diversos aspectos.Isso porque, primeiro, nunca antes na história desse país se viu mobilização popular igual. Nem a de 1968, ou a de 1992, tiveram o mesmo alcance e a mesma complexidade. As presentes manifestações atingiram um leque enorme de reivindicações, fazendo com que as pessoas, notadamente, os jovens, tivessem maior percepção da vida política e democrática. Segundo, trouxeram uma revalorização da rua. O espaço público foi retomado e o convívio humano, que estava atropelado pelo individualismo, foi, de certo modo, recuperado. E terceiro, revitalizou-se a vida política, sobretudo diante da compreensão de que a luta nas ruas pode mesmo produzir resultados concretos.Assim, não seria apropriado que nos silenciássemos a respeito, até porque a matéria aqui posta em discussão, o direito previdenciário, está essencialmente ligada à temática das ruas, como procurarei demonstrar.3. As reivindicações da rua batem à portaNão há, no instante em que se realiza este Congresso, manifestantes aí fora, cobrando-nos ostensivamente, mas o grito que vem sendo dado deve ser considerado.Se olharmos atentamente – e estive em três das manifestações chamadas pelo Movimento Passe Livre (as que se iniciaram no Largo da Batata, na Pç. da Sé e na Av. Paulista) – as reivindicações têm, no geral, um ponto de identidade: o reforço da ideia de Estado. Mas, não o Estado policial, o Estado Liberal burguês, que intervém na realidade social apenas para preservar as desigualdades e para punir penalmente os “desajustados”. O que se requer nas ruas é o Estado Social: os manifestantes querem transporte gratuito; educação e saúde pública de qualidade; além de moralidade administrativa, contra a corrupção, que não se desvincula do objeto Estado Social, pois para a execução das atividades públicas é preciso dinheiro e o furto do dinheiro público é, sem a menor dúvida, o maior crime que se pode cometer contra o Estado Social.O mundo verifica um abalo geral do capitalismo e, de modo geral, os movimentos espontâneos de estudantes pelo mundo afora tratam da discussão do capitalismo, senão expressamente direcionando-se na direção do socialismo – embora essa pauta também se ponha –, ao menos na perspectiva da contraposição às concepções liberais ou, mais propriamente, neoliberais, preconizando maior intervenção do Estado (Social) na economia, por meio da promoção dos direitos sociais, que têm sido negligenciados desde o final do século passado. Querem uma sociedade melhor, para todos, e não ausência de interferência para demonstrarem sua competência e vencerem a concorrência...Mesmo os jovens da classe média sem orientação política definida, que se integraram ao movimento iniciado pelo MPL, movimento composto, originariamente, por jovens de esquerda, foram para as ruas defender os mesmos propósitos, ainda que, em determinado momento, as pautas tenham se tornado confusas em virtude das tentativas de atração do fato para um debate político eleitoral limitado aos interesses de dois Partidos.De todo modo, na essência e em resumo, o que se viu nas ruas brasileiras, de forma incontestável, foi o sepultamento do neoliberalismo, pondo-se na ordem do dia a discussão de um novo modelo de sociedade, pautado pela busca da efetividade do Estado Social, um Estado que possa garantir aos cidadãos seus direitos mínimos de cidadania.4. A violência como origem das revoltasO início das mobilizações atuais se deu com o Movimento Passe Livre, que, ademais, fez aquilo que já vinha fazendo há algum tempo, desde 2006: revoltar-se quando um aumento das passagens era anunciado.Vale reparar, portanto, que a revolta é uma reação a uma violência. Uma violência que não se apresenta fisicamente, mas que existe para quem a sofre. O problema para a vítima é que a reação da revolta, às vezes materializada em ato coletivo, é muito mais facilmente visualizada.No caso da revolta pelo aumento das passagens onde está, de fato, a violência? A violência está configurada no ato de aumentar o preço de um serviço público, que deveria ser gratuito, sem demonstração alguma das contas que justificam o aumento. E a violência ainda é maior quando se recorda que quem se utiliza do transporte pública são, principalmente, as pessoas que, por causa de uma política urbana segregadora e de uma política econômica excludente, foram expulsas para as periferias das cidades.Bom, mais essas violências já estavam aí e o Movimento Passe Livre já havia se manifestado antes e não se chegou das outras vezes ao ponto a que se chegou agora, no que se refere ao tamanho das mobilizações.Então a que se indagar: Por que desta vez a situação chegou ao ponto a que chegou? Teriam as violências contra as pessoas aumentado?As respostas não são simples. Acho que, no geral, os problemas de estagnação do modelo de sociedade aumentaram, multiplicando as insatisfações e as frustrações pessoais. Mas, mais relevante do que isso talvez tenha sido o aumento da percepção das violências, o que foi favorecido pelo acesso à informação. Essa percepção impulsionou as revoltas, as quais, por sua vez, foram alimentadas pela maior facilidade de expressão e de programação de reações coletivas nas redes sociais.Quando o mesmo fato, que já tinha ocorrido outras vezes, voltou à cena em um contexto distinto, mais propício ao esclarecimento e à produção e propagação do conhecimento, as revoltas foram maiores e a utilização dos antigos mecanismos de contenção não funcionaram. Aliás, muito pelo contrário, acabaram potencializando as manifestações. Quando o Prefeito da cidade de São Paulo e o Governador do estado de São Paulo, lá de Paris, não deram atenção ao movimento do Passe Livre, chamando os integrantes de vândalos e baderneiros, incentivando a repressão policial e, pior ainda, quando tentaram justificar a ação da polícia, negligenciando a violência explicitamente cometida, a mobilização, fruto da percepção da violência, tanto implícita quanto explícita, adquiriu ares de revolta e tomou as ruas, incendiada pelo poder de comunicação da internet. Milhares de pessoas saíram às ruas e sentindo o conforto e a força da ação coletiva, adicionada pelo recuo das autoridades e a sensação do funcionamento das instituições democráticas, viram a oportunidade de expressar várias de suas angústias, que, no geral, como dito, estavam ligadas às frustrações decorrentes da estagnação do capitalismo, gerando os reclamos pelos direitos sociais.Fato é que esse grito de insatisfação, não demorará muito, se voltará ao Judiciário e, em especial, àqueles que lidam com os direitos sociais por excelência: o Direito do Trabalho e o Direito da Seguridade Social. E esta será, como as demais, uma mobilização fundada na percepção da violência já sofrida.É momento, pois, de visualização das diversas formas de violências que estão subjacentes nos conflitos que são trazidos ao Judiciário.Se pensarmos bem, os processos judiciais refletem uma situação de violência, qual seja, o fato de uma pessoa (ou empresa, ou o próprio Estado) não ter respeitado um direito alheio – ao menos na visão do autor. Mas, há se perceber que também há uma violência institucional, que se perfaz com a demora no andamento do processo e, pior, com a negação do direito por conta de vícios formais ou má apreciação da prova.A enorme quantidade de processos que correm no Judiciário é significativo, ademais, do grande desajuste de uma sociedade que se acostumou com a violência e que, pela sensação de impunidade, convive com ela, promiscuamente, na condição de vítima e protagonista.Para se ter uma noção do tamanho do problema, refletido em números, no que se refere às questões trabalhistas especificamente, em cinco anos, de 2006 a 2011, a Justiça do Trabalho, reconhecendo violações de direitos, devolveu mais de R$56 bilhões aos reclamantes – trabalhadores em sua grande maioria. “Só em 2011, foram quase R$15 bilhões – ou 90% de todo o repasse feito pelo governo federal no ano passado no Programa Bolsa Família, que atende a 13 milhões de famílias em todo o país”.Em 2011, a Justiça do Trabalho recebeu 2,1milhões de novos processos. São reclamações de todo tipo, que revelam diversas formas de violência: não pagamento de horas extras, sem formulação de cartões de ponto; ausência de registro; ausência de pagamento de verbas rescisórias, sobretudo em terceirizações etc.As violências podem ser explícitas. Segundo números extraídos das ações decorrentes de acidentes do trabalho, 2,8 mil trabalhadores morreram em 2011. Mas, torna-se mais grave quando é desconsiderada, isto é, quando o próprio Direito diz que ela não ocorreu, negando aos parentes da vítima qualquer reparação, sob o argumento de que a trabalhador morto na execução do trabalho cometeu um ato inseguro, inclusive porque, ademais, “viver é muito perigoso”.Outro dia, assisti a um julgamento no qual a empresa tentava sustentar sua irresponsabilidade pela morte do trabalhador, sob o argumento de culpa exclusiva da vítima, afirmando que este se “distraiu” e que se assim não tivesse agido nada teria sofrido já que a atividade era plenamente segura e sem riscos. A atividade era a lenhador. O trabalhador cortava árvores e uma delas caiu em sua cabeça. Ora, mesmo se considerando a hipótese de que o trabalhador pudesse ter se distraído, a distração não pode custar a vida e, ademais, é exatamente porque se perdeu a vida, por uma distração (se é que houve!), que a atividade era de extremo risco, saltando aos olhos a responsabilidade da empresa pelo ocorrido.Mas, não basta gerar a violência do acidente. Ainda tem que se cometer a violência de não assumir, espontaneamente, a responsabilidade, forçando as vítimas a ingressarem com ações no Judiciário, penalizando toda a sociedade com o inegável custo da Instituição, e, para completar, ainda acusar, expressamente, o trabalhador de seu o culpado pelo fato.Não falta muito e ainda vão pedir ressarcimento da vítima do acidente ou de seus sucessores pelos danos causados às máquinas ou à imagem da empresa em razão da acusação de ser responsável por um acidente do trabalho com relação ao qual apenas o trabalhador concorreu...Falando de direito previdenciário, foram distribuídas, em 2010, às Varas da Justiça Federal, na cidade de São Paulo, 16.924 ações, e 39.396, nos Juizados Especiais do Estado. Nestes, nos Juizados Especiais, em matéria previdenciária, foram distribuídas, em 2010, no Estado de São Paulo, 128.644 ações4.Em todo país, visualizando os dados de 2011 e considerando os processos então em curso, o INSS apresentava-se como réu em 5,8 milhões de ações, que tiveram origem, sobretudo, com a regra a alta programada. Segundo estimativa do Sindicato Nacional dos Aposen­­tados e Pensionistas da Força Sin­­dical (Sindinap) entre 50% e 70% desses processos previdenciários são motivados por problemas com os auxílios, entre eles o auxílio-doença5.Conforme noticia o CNJ6, os setores públicos da esfera federal e dos estados foram responsáveis por 39,26% dos processos que chegaram à Justiça de primeiro grau e aos Juizados Especiais entre janeiro e outubro do ano passado. O Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) ocupa o primeiro lugar no rankingdas organizações públicas e privadas com mais processos no Judiciário Trabalhista, Federal e dos estados. O órgão respondeu por 4,38% das ações que ingressaram nesses três ramos da Justiça nos 10 primeiros meses do ano passado, sendo que no que se refere, especificamente, à Justiça Federal, esse percentual é de 34% (de ações no primeiro grau) e 79% (nos juizados especiais).Lembre-se que no caso dos direitos previdenciários, o segurado, primeiro, precisa passar pela via administrativa junto ao órgão previdenciário, que adota uma postura de resistência à pretensão do segurado, submetendo-o a mais uma violência.Muitas pessoas devem ter exemplos concretos do que estou falando, mas o relato de um fato parece conveniente. Outro dia, no corredor da Faculdade, um aluno pediu-me uma ajuda para o caso que havia ocorrido com a empregada doméstica que trabalha em sua residência. Ela tinha ido ao INSS, para requerer um benefício, mas lhe foi negado, sob o argumento de que não havia cumprido a carência necessária. Ocorre que o próprio documento expedido pelo INSS, que o aluno trazia em mão, apontava que o tempo de contribuição reconhecido no documento era superior ao tempo de carência exigido e quando ele falou isso para o atendente do INSS, pois foi até lá para uma espécie de assessoria jurídica, recebeu como resposta que nada poderia ser feito porque não havia como alterar a resposta dada pelo sistema...O INSS, além disso, tende a adotar interpretação jurídica menos favorável ao segurado, como se dá, por exemplo, com a atividade de eletricitário, não reconhecida pelo INSS como especial, mesmo que a jurisprudência acene em sentido contrário, sendo que a mesma situação se passa com os níveis de ruído para concessão da aposentadoria especial, indo o INSS ao ponto de questionar, mediante incidente junto ao STJ, decisão da Turma Nacional de Uniformização (TNU) dos Juizados Especiais Federais, que foi contrária ao que acredita ser o seu interesse: dificultar a vida do segurado.O INSS também não reconhece a autoridade das sentenças trabalhistas que declaram que a atividade exercida pelo trabalhador era insalubre, o que repercute no direito à aposentadoria especial, ou mesmo que declara a existência do vínculo de emprego, o que tem efeito na contagem do tempo de contribuição para efeito de aposentadoria, ou mesmo a que fixa nova base salarial ao trabalhador, decorrente da verificação da existência de pagamento “por fora” ou em função da integração à base remuneratória de parcelas não adimplidas, como horas extras, o que implica modificação na base de cálculo do salário-de-contribuição, para fins de majoração do valor do benefício, mesmo que da sentença decorra, na lide trabalhista, o pagamento, para o INSS, da contribuição social correspondente e que isso se faça por intermédio da guia adequada, com incidência de juros, da multa e da correção monetária, forçando o trabalhador, que já sofreu as violências da desconsideração, pelo particular, de seu direito, e da necessidade de buscar o Judiciário trabalhista para recuperá-los, a novamente ter que se valer da via judicial, desta feita na Justiça Federal.Ou seja, mesmo com uma sentença judicial nas mãos, que reconhece a situação fático-jurídica, o trabalhador se vê diante de nova violência cometida pelo INSS.Lembre-se, a propósito, do quanto foi desesperador para o segurado, a institucionalização da alta programada, que durou cerca de 06 anos, pela qual o INSS já estipulava, com base no laudo médico pericial, em que dia o segurado iria recuperar sua saúde, suspendendo, automaticamente, o pagamento do benefício e fazendo com o que o segurado, seguindo o percurso já narrado, tivesse que “procurar os seus direitos”.Negado administrativamente o benefício, o segurado deve se valer da ação judicial, que, em geral, para avaliação do pedido formulado, requer a realização de uma perícia (alguns poucos juízes aceitam os atestados médicos particulares trazidos pela parte). Mas, nas Varas não há perito oficial e o juiz deve nomear algum médico, que é um médico da atividade privada, que, por mais que se diga o contrário, não é da “confiança” do juiz e, em geral, esse perito raciocina com a lógica privada, favorecendo à avaliação da improcedência do pedido.Considerando, ainda, a “natural” demora da prestação jurisdicional e a aversão à concessão de tutela antecipada em matéria previdenciária, o resultado é que a situação processual do segurado, no geral, não é nenhum pouco confortável e acaba se constituindo em mais uma violência.O INSS, pautado pela necessidade de informatização, está se burocratizando ainda mais por meio da racionalização econômica e, assim, tem entendido que precisa dar lucro e para tanto a não concessão de benefícios transforma-se em um objetivo.E o mesmo, cabe frisar, está se passando com o Judiciário na implementação das metas decorrentes da gestão estratégica. Nesta lógica, quanto menos durar o processo mais eficiente o Judiciário será, pouco importando se para isso tenha que se sacrificar o direito. Como diz um amigo advogado, é possível perceber nos últimos tempos a difusão da teoria da improcedência, pois um processo sem condenação não gera atos em execução. Foi assim, ademais, que, na Justiça do Trabalho, na fase de execução, a prescrição intercorrente foi desenterrada...Essa situação revela-se ainda mais grave quando percebemos que no caso do conflito previdenciário, no pólo passivo, ou seja, o pretenso agressor é o INSS, isto é, o Estado, gerando uma contradição insuportável, sobretudo no presente momento, pois o Estado reclamado nas ruas é a quem cumpre efetivar os direitos sociais.Dia desses recebemos um professor alemão na Faculdade de Direito da USP, Wolfgang Däubler, e quando, após sua palestra, lhe indaguei como eles resolviam os problemas do precatório, ele não entendeu a pergunta e tive que ser auxiliado, na formulação da questão, pelas demais pessoas que estavam presentes ao evento. Quando ele entendeu, ficou horrorizado e respondeu com uma indagação exclamativa: “Mas, como assim: o Estado não cumpre o direito que ele próprio cria? Na Alemanha isso não acontece.”Ficamos todos quietos, para não aprofundar a vergonha, vez que se levássemos a questão adiante teríamos que lhe dizer que por aqui não só o Estado assim age como os homens do direito acham normal que isso ocorre e mesmo as estruturas jurídicas, da forma como são aplicadas, servem como uma espécie de incentivo institucionalizado para que o Estado não cumpra o direito em detrimento do cidadão, conferindo-lhe “prerrogativas” processuais: juros reduzidos, prazos em dobro, isenção de custas e o próprio precatório, que, em verdade, serve de freio à obrigação do pagamento.De fato, é inconcebível que os administradores da coisa pública não tenham compromisso com os direitos sociais e transformem o Estado em um dos maiores, senão o maior, litigante da realidade jurídica nacional.É preciso, portanto, reconhecer que existe um estágio de violência institucionalizada, representada pelo desrespeito aos direitos sociais, da qual participa o próprio Estado como agente, tendo como vítima principalmente o cidadão mais pobre, que, neste sentido, é tratado como um inimigo, o que é inconcebível, ainda mais dentro da lógica jurídico-política de um Estado Social.Vale reparar que, de forma totalmente incoerente, essa preocupação econômica, que justifica as supressões de direitos, não se vê, na mesma intensidade, com relação à arrecadação, o que representa mais uma violência aos titulares de direitos sociais, pois a efetividade destes direitos, notadamente dos previdenciários, dependem de custeio.Falando da realidade da Justiça do Trabalho, que conheço melhor, são freqüentes os acordos, nos quais não há reconhecimento de vínculo empregatício, mesmo quando não se tem dúvida nenhuma que este existiu, e discriminação de parcelas que compõem o acordo como sendo, unicamente, indenizatórias, tudo com a finalidade de evitar a obrigação quanto aos recolhimentos previdenciários e tributário. Essa tem sido uma grande violência que se comete com o patrimônio do trabalhador, representando, ainda, um incentivo à violação de direitos e uma espécie de punição aos empregadores que respeitam a ordem jurídica, vez que representa uma vantagem econômica indevida aos concorrentes destes.É interessante, ademais, ver até a total incoerência das atitudes de um empregador que, não tendo cumprido as obrigações decorrentes do direito social, chega a sugerir, em audiência, como estratégia para concluir o acordo, que o reclamante receba seguro-desemprego, mesmo que não tenha havido o recolhimento do respectivo custeio, qual seja, o depósito do FGTS. E o pior é que o juiz aceita, expedindo Alvará para o pagamento do benefício. O Estado Social é violentado pelo próprio Estado...Para se ter uma ideia até onde a coisa vai, em 2011 a Procuradoria Geral da União encaminhou à Corregedoria do Tribunal um Pedido de Providências, no qual reclamava do fato de eu estar intimando a Procuradoria local do INSS para se manifestar em processos cujos acordos não ultrapassavam a R$10.000,00, apoiando-se nos termos uma Portaria, a de n. 176, de 19/02/2010, do Ministério da Fazenda, segundo a qual o INSS não deve verificar a regularidade dos recolhimentos previdenciários em processos finalizados com acordos até o valor indicado (atualmente, pela Portaria n. 435, de 08/09/11, do Ministério da Fazenda, o patamar da não manifestação aumentou, passando para as situações em que o valor da contribuição, ela própria, for igual ou inferior a R$10.000,00). Não obstante, pareceu-me – e ainda me parece – essencial que o INSS estivesse atento à existência de processos repetitivos de algumas empresas, com valores inferiores ao mínimo fixado, nos quais se podia constatar uma prática de sonegação que se perfaz pela discriminação das parcelas do acordo como sendo unicamente indenizatórias. Aliás, dado o teor da referida Portaria (piorado na Portaria posterior), muitos juízes, sem a obrigatoriedade de manifestação do INSS em processos cujas contribuições sociais devidas estão no parâmetro referido, sequer têm executado as contribuições sociais, o que lhes permite encerrar mais rapidamente os processos e melhor o dado estatístico referente ao tempo de tramitação dos processos, até porque o que sai nos relatórios do Judiciário, que se tornam públicos, é a comparação entre as Varas, apontando quais foram mais céleres e quais foram mais lentas...A ausência de uma consciência em torno de um compromisso social é enorme. Veja, por exemplo, a que fins o dinheiro do FGTS tem servido. Em Jundiaí/SP, vi, outro dia, uma grande placa indicando que a obra de ampliação de uma avenida, no centro da cidade (para alimentar a lógica do automóvel), estava sendo financiada pelo FGTS. Anunciou-se, meses depois da reforma, que na tal avenida seria construído um shoppping, que já está pronto...Tratando da violência do Estado, não posso, por fim, deixar de falar da terceirização no setor público, que é uma afronta à Constituição, desprezando a exigência do concurso público, favorecendo ao desvio do dinheiro público e provocando uma segregação odiosa no ambiente de trabalho dos entes administrativos. Violência está que só tem feito aumentar nos últimos anos, tanto que agora o ente público sequer quer ser responsável subsidiário pelas agressões de direitos sofridas por essas pessoas dentro de seus estabelecimentos e na execução dos serviços que o Estado é obrigado a prestar aos cidadãos.5. O Momento: grito e efeitoComo o povo nas ruas pede eficiência do Estado Social no que se refere à efetividade dos direitos sociais, é momento, primeiro, de compreender que as estruturas jurídicas, no modo como têm funcionado, são parte do problema. E, segundo, até como consequência, é crucial entender o papel que cumpre aos homens do Direito neste contexto, dando respostas concretas aos anseios da população.Não cabe mais negar benefícios por rigor excessivo nas provas e para a concessão de tutelas antecipadas. É preciso compreender, também, que há uma doença social, fruto da grande desigualdade vivida, que muitas vezes reflete de forma não muito precisa sobre o trabalhador, como, ademais, se demonstrou nas mobilizações, onde o corpo da sociedade não sabia expressar precisamente o local da dor, mas que doía, doía, e ainda dói.Conforme enuncia recente decisão do STJ, a doença do ser humano é antes de tudo um “fenômeno social”.Do ponto de vista específico dos acidentes do trabalho, para fins de reparação pela via da responsabilidade civil, é preciso afastar, com urgência, a violência da consideração teórica da responsabilidade subjetiva, que atrai, inclusive, uma violência ainda maior que é a avaliação da culpa da vítima, vista sob os pontos de vista da negligência, imperícia ou imprudência. Ora, como dizia Joaquim Pimenta, analisado a questão sob a égide da lei de 1919:Nos acidentes de trabalho não se leva mais em conta a imprudência ou a negligência da vítima; uma e outra resultam de fatores psicológicos que as tornam frequentes e inevitáveis, como a fadiga, o automatismo psíquico pela continuidade de execução do serviço, até mesmo a capacidade técnica do trabalhador, que o familiariza e o faz cada vez mais desatento com o perigo.7É extremante agressivo, em audiência, diante de um trabalhador que perdeu parte do braço em uma prensa, investigar o que ele fez de errado para que o fato ocorresse, como forma, inclusive, de excluir qualquer responsabilidade da empresa e concluir que ele foi o único responsável pela perda sofrida.Num contexto mais amplo, cumpre eliminar as vantagens econômicas de quem se vale da prática de agressões reincidentes aos direitos sociais, coibindo-se, sobretudo, as táticas de não recolhimento das contribuições sociais. Além disso, é essencial que se permita aos trabalhadores o exercício pleno do direito de greve, livre da opressão conservadora do interdito proibitório, que não tem qualquer relação com o antagonismo entre trabalho e capital. Sobretudo, é essencial não permitir a sonegação das contribuições sociais, que integram o patrimônio da classe trabalhadora, e das obrigações tributárias, vez que ambas compõem a fonte necessária para a efetivação dos direitos sociais.Tudo isso é importante, mas, talvez, o efeito mais relevante da situação vivida no país para o Direito seja o da necessidade de assumir que se atingiu, enfim, o limiar da superação do Direito Liberal, passando-se à consagração e à efetivação do Direito Social. A ordem jurídica brasileira – e internacional – já estava, é verdade, pautada pela lógica do Direito Social, mas as mudanças necessárias neste momento são: o reconhecimento expresso disso e a compreensão do que representa uma ordem jurídica social.O fato é que visualizar o Direito dentro da lógica social é muito diverso de entender o Direito no contexto de uma concepção liberal. A mudança se dá, sobretudo, no método que fornece a racionalidade para a compreensão dos problemas sociais, refletindo na formulação das estruturas do Direito e na forma da aplicação de suas normas.Os postulados básicos de um direito na ordem liberal8são: a) a preocupação com o próximo decorre de um dever moral: tornar esse dever em uma obrigação jurídica elimina a moral que deve existir como essência da coesão social; b) todo direito obrigacional emana de um contrato: a sociedade não deve obrigação a seus membros; só se reclama um direito em face de outro com quem se vincule pela via de um contrato; c) a desigualdade social é conseqüência da economia (e a igualdade, também): quando o direito procura diminuir a desigualdade, acaba acirrando a guerra entre ricos e pobres (ricos, obrigados à benevolência, buscam eliminar o peso do custo de tal obrigação; pobres, com direitos, tornam-se violentos); d) a fraternidade é um conceito vago que não pode ser definido em termos obrigacionais; e) o direito só tem sentido para constituir a liberdade nas relações intersubjetivas, pressupondo a igualdade (a ordem jurídica tem a função de impedir os obstáculos à liberdade); f) o direito não pode obrigar alguém a fazer o bem a outra pessoa; g) “em uma sociedade constituída segundo o princípio da liberdade, a pobreza não fornece direitos, ela confere deveres”9.O Direito Social, que resulta da busca de uma nova racionalidade para os problemas do mundo, verificados no período de formação do capitalismo, enquanto regido pelo Direito Liberal e mais recentemente pela influência neoliberal, consagra os objetivos da justiça social, da efetivação da democracia, e da internacionalização das normas, que são vistos como condições para a paz mundial. No Direito Social impera a concepção de um regramento que tem por conseqüência a melhoria da posição econômica e social de todos e a preservação da dignidade do sentido da elevação da condição humana.A racionalidade imposta pelo Direito Social permite visualizar as angústias, as dificuldades e as restrições que atingem todas as pessoas que integram a sociedade, sobretudo, as que são mais vulneráveis economicamente, e assumir uma postura para efetivar uma defesa concreta dos valores humanos.O Direito Social, que tem por base a visualização do outro, buscando pelo espírito de solidariedade, a elevação da condição humana, integrando o homem, sem distinções, ao todo social, está mais afeito aos dilemas postos pela efetivação dos denominados direitos fundamentais (vida, saúde, trabalho, lazer, intimidade, privacidade, liberdade de expressão, de crença religiosa etc.), que o Direito Liberal, voltado para a individualidade egoísta desvinculada de qualquer interesse social.Não há como não extrair da raiz do Direito Social, portanto, a compreensão de que o seu significado concreto está vinculado ao propósito de construir, continuamente, de forma evolutiva, a justiça social, para que a atração do sentido do justo para o direito não represente, meramente, a legitimação de situações injustas.O Direito Social estabelece um limite ao interesse econômico, tomando como postulado a necessária proteção do ser humano. Não se trata de uma proteção submetida a uma condição imposta pelo modelo econômico. Trata-se de uma proteção que expõe o sistema econômico a um teste de validade.É neste sentido, aliás, que o Direito Social depende da vivência concreta da democracia política para que as pessoas excluídas do sistema econômico, ou incluídas numa lógica de exploração, possam se organizar para questionar, criticamente, a realidade, expondo publicamente os seus problemas, e reivindicando as soluções necessárias. É assim, por conseguinte, que os movimentos sociais são acolhidos pelo Direito de forma a tornar juridicamente válida e, portanto, legítima, a sua manifestação e o seu inconformismo diante da injustiça identificada, sendo, portanto, um método apenas do Direito Liberal, já superado, a “criminalização” dos movimentos sociais.O Direito Social, de forma muito clara, confere valor jurídico ao “grito dos excluídos” ou para utilizar expressão de nosso mestre, Anníbal Fernandes, o Direito Social apresenta-se como o “guia dos aflitos”.Essa mudança metodológica no Direito é primordial até para lhe preservar a legitimidade, afinal, como dito, a partir da verificação do conteúdo das manifestações de junho, os titulares de direitos sociais já possuem a percepção das violências que vêm sofrendo ao longo dos anos e querem respostas efetivas. Trazem como lema, inclusive, a fala esclarecedora de Bertold Brecht: "Dizem violentas as águas dos rios que tudo arrastam, mas não dizem violentas as margens que as oprimem."Carlos Drummond de Andrade, em momento marcado pelas guerras mundiais, reconhecendo sua limitação, mas, ao mesmo tempo, compreendendo o seu papel como escritor, decretou: “Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”. O jurista, tendo ciência da história que deu ensejo ao Direito Social e verificando a realidade que bate à porta, talvez tenha, enfim, que assumir: “tenho em minhas mãos as armas contra o sofrimento do mundo”.As pessoas estão nas ruas – sabe-se lá por mais quanto tempo e até que limite –, expressando sua reivindicação por direitos sociais, como forma de tentar uma saída para uma sociedade à beira do caos. O que mais será preciso acontecer, para que os homens do Direito as escutem?A resposta, meu amigo, como diria Bob Dylan “está soprando no vento”...São Paulo, 26 de junho de 2013.(*)Conferência de encerramento do 32º. Congresso Brasileiro de Direito Previdenciário, promovido pela LTr, realizado em São Paulo, nos dias 24 a 26 de junho/2013.1. Juiz do Trabalho. Professor livre-docente da Faculdade de Direito USP.2. Apud Cesarino Jr, Direito Social, 1970, p. 88.3. Direito Social, 1970, p. 88.4. Fonte:http://www.trf3.jus.br/trf3r/index.php?id=1107.5.http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1109360&tit=INSS-e-reu-em-58-milhoes-de-acoes6.http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/21877:orgaos-federais-e-estaduais-lideram-100-maiores-litigantes-da-justica7. PIMENTA, Joaquim. Sociologia jurídica do trabalho (estudos). Coleção de Direito do Trabalho, organizada por Dorval de Lacerda e Evaristo de Moraes Filho. São Paulo: Max Limonad, 1944, p. 158.8EWALD, François. Histoire de l’Etat Providence: les origines de la solidarité. Paris: Grasset, 1996, pp. 23 e ss.9EWALD, François. Ob. cit., p. 35.(*) Conferência de encerramento do 32º. Congresso Brasileiro de Direito Previdenciário, promovido pela LTr, realizado em São Paulo, nos dias 24 a 26 de junho/2013.1. Juiz do Trabalho. Professor livre-docente da Faculdade de Direito USP.2. Apud Cesarino Jr, Direito Social, 1970, p. 88.3. Direito Social, 1970, p. 88. Fonte: http://www.trf3.jus.br/trf3r/index.php?id=1107.5. http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1109360&tit=INSS-e-reu-em-58-milhoes-de-acoes6. http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/21877:orgaos-federais-e-estaduais-lideram-100-maiores-litigantes-da-justica7. PIMENTA, Joaquim. Sociologia jurídica do trabalho (estudos). Coleção de Direito do Trabalho, organizada por Dorval de Lacerda e Evaristo de Moraes Filho. São Paulo: Max Limonad, 1944, p. 158.8. EWALD, François. Histoire de l’Etat Providence: les origines de la solidarité. Paris: Grasset, 1996, pp. 23 e ss.9. EWALD, François. Ob. cit., p. 35.

Vencendo o terrorismo do medo: a hora da política

Jorge Luiz Souto Maior (*)Quando se anunciava que um Partido dos Trabalhadores poderia chegar ao poder, difundiu-se a figura do medo. Medo da reforma agrária, medo da reforma urbana, medo do “comunismo”, enfim. Para tanto chegou-se até mesmo, em uma ocasião, a expor a vida privada do candidato Lula, para prejudicá-lo perante à opinião pública e, em outra, a colocar uma camiseta do PT em um seqüestrador, que fora preso dias antes da eleição, difundindo-se a imagem.Aliás, cabe lembrar que foi essa tática do medo do “comunismo” que nos conduziu à ditadura de Vargas, de 37 a 45, e a 21 anos de ditadura militar.Pois bem, o que se percebe agora é a utilização da mesma tática, de forma invertida. Vê-se a difusão entre a esquerda da ideia de um medo quanto à mobilização que está nas ruas. “É coisa da direita”, se diz. Diz-se, também, que o movimento foi invadido por “mauricinhos” e que a mobilização está sendo conduzida por setores poderosos da mídia, para desestabilizar o governo Dilma ou até para apoiar um golpe militar. E o que mais se escuta de pessoas bastante esclarecidas é: “estou com medo”.Tenta-se, com isso, tirar as pessoas das ruas, sobretudo as que iniciaram o movimento e que possuem uma orientação política de esquerda, tomando-as, inclusive, como responsáveis pelo eventual avanço reacionário da direita no cenário das ruas.Do ponto de vista da intelectualidade, quanto às pessoas que estão nas ruas, embora constitua uma coletividade cada vez mais complexa, tenta-se difundir a ideia de que se trata de um movimento uníssono, composto de jovens de classe média, despolitizados, que estão servindo de massa de manobra aos interesses de uma direita golpista, ou que professam, por convicção, valores reacionários de direita.Essa simplificação não corresponde à realidade verificada nas ruas, até porque o movimento está ganhando as periferias da cidade, com pautas mais concretas e emergenciais.No que se refere aos movimentos mais centrais, digamos assim, e considerando, sobretudo, aqueles que se iniciaram, sucessivamente, no Largo da Batata, na Praça da Sé e na av. Paulista, o que se percebeu, até a última quinta-feira, foi a exposição de um número muito grande de reivindicações. Mas, ainda que se pudesse verificar, a presença de muitas pessoas intolerantes e, notoriamente, querendo insuflar uma pauta de oposição direta ao governo, não há como dizer que o movimento, na sua maioria, estivesse ligado a esse propósito. Havia um pouco de tudo e é impossível quantificar, com precisão, quantas pessoas tinham tal ou qual orientação política. Abstraindo as diferenças, o que se via, no geral, era um desejo de expressar um grito de insatisfação contra 500 anos de desmandos, o que se verberava, muitas vezes, sem organização ou coerência. Vi algumas pessoas que gritavam frases que eram politicamente contrárias entre si.Mas, como dito por Boechat, seria demais exigir dessas pessoas que tivessem propostas prontas e acabadas para resolver os problemas do país, pois, no geral, saíram de suas casas, abruptamente, motivadas por um sentimento de solidariedade com relação aos jovens que lutavam por uma pauta específica, a redução da tarifa, e que foram vítimas de forte violência policial.O aumento das reivindicações acabou sendo proporcional ao aumento da sensação de força que se atingiu com o crescimento das fileiras, sendo que a ampliação da pauta foi ditada pelo próprio MPL. Foi quando se disse: “não é só por R$0,20”, “queremos saúde e educação públicas de qualidade”.Claro que a partir de então se estabeleceu uma luta pelo domínio ideológico da massa nas ruas. Mas isso, ao contrário do que se faz supor, foi percebido pelas pessoas que foram para as ruas. A mudança de perspectiva da grande mídia também foi percebida. Em certo modo, da percepção da utilização de sua presença na rua para dividendos políticos de partidos revelados e não revelados foi que surgiu um dos grandes lemas da experiência vivida, qual seja, o grito “sem partido”, que acabou se constituindo, igualmente, um dos grandes problemas dos atos.Mas, não me parece, observando “in locco” as manifestações, que esse grito representasse, naquele contexto e naquele instante, uma censura ditatorial a qualquer partido especificamente ou a negação da importância de sua existência, embora, claro, daí decorra o risco da fala poder servir à completa despolitização e, consequentemente, à formação de regimes ditatoriais, que, historicamente, cooptaram as massas com o discurso do nacionalismo e, pior ainda, com propósitos xenófobos. De todo modo, vale lembrar que o grosso dos manifestantes era de jovens e a sensação que se passava era a de que não queriam servir a finalidades políticas ainda não muito bem compreendidas por eles. Penso que havia um desejo enorme de, simplesmente, exercer uma liberdade de expressão, em prol de mudanças, embora houvesse, por certo, muitos propósitos reacionários se consideramos a construção histórica dos últimos anos. Mas havia, também, e em grande número, jovens com extrema consciência política de esquerda, coisa que, ademais, há uns 10 (dez) anos era impensável.Talvez, também, quisessem alcançar alguma unidade, fora das disputas partidárias, para possibilitar que o movimento crescesse ainda mais. Lembre-se que o MPL, que convocou as manifestações, foi constituído como uma entidade apartidária (embora não anti-partidos) e até então não havia se expressado, claramente, como um movimento de esquerda.Cumpre entender que não estou defendendo isso. Não tenho dúvida da relevância dos partidos para a vida política e democrática de um país. Tento apenas entender um fato que presenciei, o que está, portanto, alheio ao meu desejo.Relevante, ainda, extrair alguma conclusão a respeito. Ao contrário de criar uma aversão ao movimento, compete aos partidos escutarem a mensagem que estavam, enfim, sendo transmitidas nas ruas. Há de se destacar, por certo, o problema de que muitas daquelas pessoas (não todas, evidentemente), que preconizavam democracia, não foram suficientemente democráticas para ouvir os partidos e mesmo não foram capazes de reconhecer que os partidos socialistas, que caminhavam ao seu lado, apoiando as causas, sempre estiveram, historicamente, presentes nas lutas por mudanças na sociedade. Mas, também não se pode deixar de identificar que a tentativa abrupta e sem qualquer estratégia ou explicação lógica do Partido dos Trabalhadores, do governo, de entrar em um movimento que trazia pautas de pressão sobre o governo, foi um grande erro e mais ainda foi equivocado os partidos socialistas se unirem ao PT, naquele momento, por conta de uma causa comum, a da defesa da participação dos partidos no ato, portando suas bandeiras. Isso gerou uma espécie de irritação generalizada, que provocou nos mais exaltados, uns ligados a movimentos ultradireitistas, uma reação violenta (que não se justifica, de modo algum, obviamente), provocando um marco trágico na manifestação, que foi a expulsão, pela força, de todas as pessoas que portavam bandeiras de partidos e daquelas que, como eu, caminhavam ao seu lado.Mas, não é irrelevante notar que o grupo dos anarquistas, que não era pequeno, continuou na avenida e sem ser hostilizado manteve-se gritando palavras de ordem, denunciado o caráter elitista, racista e violento (contra os pobres) de nossa sociedade.O problema maior foi o de que mesmo antes do crescimento das mobilizações houve uma partidarização das análises, que, por mais paradoxal que possa parecer, retirou o caráter mais politizado das reivindicações, que, no geral, questionavam, naquele instante mais diretamente, o modelo de sociedade em que vivemos, o capitalismo. O mundo verifica um abalo geral do capitalismo e, de modo geral, os movimentos espontâneos de estudantes pelo mundo afora tratam da discussão do capitalismo, senão expressamente direcionando-se na direção do socialismo – embora essa pauta também se ponha –, ao menos na perspectiva da contraposição às concepções liberais ou, mais propriamente, neoliberais, preconizando maior intervenção do Estado (Social) na economia, por meio da promoção dos direitos sociais, que têm sido negligenciados desde o final do século passado.Mesmo os tais “mauricinhos” – deixando claro que não gosto da expressão –, que depois se integraram ao movimento, foram para as ruas defender saúde pública, educação pública e transporte gratuito (ao menos mais barato). Até mesmo a discussão em torno da corrupção, embora servisse ao enfrentamento eleitoral contra o governo, se bem compreendida, não está desvinculada do debate acerca do modelo de sociedade, pois para a execução das atividades públicas é preciso dinheiro e o furto do dinheiro público é, sem a menor dúvida, o maior crime que se pode cometer contra o Estado Social. Haver-se-ia, pois, de acoplar a essa reivindicação uma discussão mais concreta, e politizada, da necessidade do Estado em coibir a sonegação, sobretudo diante de uma realidade em que é cada vez mais comum a prática de transformar empregados em “PJs”, para não pagar contribuições previdenciárias (sociais) e impostos – e vários dos estudantes e profissionais nas ruas são vítimas dessa supressão reiterada de direitos –, demonstrando o quanto isso constitui igual crime contra o Estado Social.Na mesma linha, dever-se-ia aproveitar o momento para desenvolver senso crítico à transmissão vertical e horizontal da produção das grandes empresas para pequenas empresas, pois isso dificulta a responsabilização daquelas com relação às obrigações sociais, uma discussão que atrai a compreensão em torno da necessidade do fim da terceirização, que implica, além disso, segregação, invisibilidade, precarização e alto custo social com benefícios previdenciários, decorrentes da insegurança no trabalho.Seria oportuno, ainda, trazer à baila a discussão em torno da tributação das grandes fortunas, buscando um sistema tributário mais justo, pois no geral, no Brasil, quem ganha menos paga mais.Aliás, na linha da mobilização contra a PEC 37, poder-se-ia realçar a relevância da atuação do Ministério Público Federal para coibir os crimes contra a ordem econômica, advindo especialmente da prática de falências fraudulentas, seguidas da “limpeza” dos bens do empreendimento, deixando em situação de penúria os trabalhadores, da constituição de empresas com capital estrangeiro, que se instauram no Brasil, exploram o trabalho dos empregados e depois somem sem deixar vestígios, prejudicando as empresas nacionais, e da constituição de empresas descapitalizadas ou cujo capital está em paraísos fiscais, atuando no mercado sem conferir garantias reais para efetivação das obrigações sociais, também em detrimento da concorrência. Da mesma forma, valeria ressaltar a importância da fiscalização do Ministério Público do Trabalho e do próprio Ministério do Trabalho e Emprego, para verificação da regularidade trabalhista, buscando, de uma vez, a extinção do trabalho em condições análogas a de escravo, a preservação da saúde no ambiente de trabalho e a efetiva coerção ao descumprimento reiterado da legislação trabalhista, também utilizado como mecanismo de obtenção de vantagem econômica frente à concorrência.Lembre-se, ainda, que, na origem, esse era um movimento de jovens e os jovens estão motivados por uma preocupação estrutural, na medida em que pelo mundo afora – e eles têm notícia disso – percebe-se a estagnação de um modelo de sociedade que não os acolhe, principalmente aqueles que se preparam intelectualmente. Para esses jovens da classe média a frustração é muito grande. Assumindo desde muito cedo a lógica capitalista, vêem-se colocados em boas escolas onde “estudar para passar no vestibular”, superando a concorrência, é palavra de ordem. Nestas instituições o ensino é forte e consistente. Aprendem muito e sobretudo estão muito bem informados, dadas as facilidades da internet. Quando entram na Faculdade, na enorme maioria dos cursos, chocam-se com o despreparo dos professores e a desorganização. Na esfera pública isso se dá por conta do descuido de décadas – desde a era militar – com o ensino público superior (nas esferas federais e estaduais) e no setor privado por conta da consideração das entidades de se constituírem uma empresa para dar lucro. Vários anos de rigor acadêmico e muita disciplina de vida ficam sem sentido e muitos, muitos mesmo, descambam para uma libertação quase desesperada, com envolvimento com drogas e em baladas sem fim. E a frustração aumenta ainda mais quando veem os seus amigos mais velhos, que já passaram por isso, não alcançarem bons empregos ou mesmo emprego algum.Claro que, no Brasil, pode-se ver o acréscimo desse problema com o incremento de algumas políticas de atração de jovens das classes economicamente mais baixas para as universidades e mesmo pela adoção, ainda que em pequena escala, das cotas sociais e raciais. Mas, primeiro a dificuldade da inserção dos jovens ao mercado de trabalho transcende essas iniciativas, constituindo um problema mundial; segundo, não há uma revolta contra essa inclusão, até porque está em conformidade com a própria pauta da defesa da melhoria dos serviços públicos; terceiro, essa inclusão está muito aquém do necessário e sabe-se bem é inevitável; e, quarto, o problema da frustração pelo desemprego atinge, principalmente, os que foram incluídos nas universidades por tais políticas, que não abalaram, vale lembrar, a lógica privada de ensino.Fato é que de repente, tendo conhecimento do que já estava acontecendo no mundo, com reações estudantis contra um sistema que não lhes confere oportunidades e que lhes engana, mas também por conta de um sentimento de solidariedade, que é o que também inspira os integrantes do MPL, esses jovens se viram chamados para uma reação nas ruas – não falo aqui da grande parcela de jovens politizada e engajada com as causas sociais de forma convicta que já estava nas ruas e que também se integrava ao movimento. Para os jovens referidos, os denominados jovens despolitizados da classe média, foi a oportunidade de soltarem um grito de insatisfação contra tudo que entendiam os estava reprimindo e negando-lhes um futuro e de experimentarem a vida política, exprimindo, também, certa solidariedade.Esses jovens foram impelidos para as ruas, encontrando-se com a vida política na sua essência, e em vez de terem sido acolhidos pela intelectualidade política, com aproveitamento de sua energia renovadora, foram acusados de “mauricinhos”, direitistas, massa de manobra de um golpe em gestação por conta do medo do que sua energia pudesse provocar em termos da instabilidade do governo. Foram chamados para as ruas, por um movimento com discurso de esquerda, cerraram fileiras com as causas sociais, depois foram convidados a se calar!!! Esse, me parece, foi um grande erro de percepção e de estratégia, até porque carregado de um conceito preconcebido. Não considero que seja correto afirmar, ademais, que a classe média seja, em si, uma classe homogênea, com inspiração necessariamente conservadora ou alheia aos problemas sociais. A maioria dos militantes e teóricos que se dizem de esquerda que conheço pertencem à classe média e, no geral, não me relaciono com pessoas da classe média que sejam reacionárias e retrógradas.Vale compreender que o que estava pautado até então não erauma discussão “difusa”, como se disseminou. A disseminação dessa ideia se deu em virtude da partidarização do debate, atendendo, inclusive, a um interesse recíproco de conservadorismo. Ambas, direita e governo pautaram a discussão numa perspectiva conservadora, ou seja, sem permitir um debate concreto acerca do modelo de sociedade capitalista, embora a pauta de reivindicações trouxesse, intrinsecamente, tal discussão. O que se tinha era – e ainda é – um enfrentamento generalizado do modelo de sociedade, com o conseqüente abalo direto da concepção neoliberal. Mas, o terrorismo do medo, do golpe de direita e da revolução comunista, instaurado, portanto, por todos os lados, impediu essa discussão, e tudo virou um embate por dividendos políticos deste ou daquele partido.Claro que veículos de difusão nas redes sociais chamaram muitos desses jovens para as ruas por conta de preocupações pretensamente neutras, mas que serviriam para desestabilizar o governo, tendo sido esse chamado acompanhado, estrategicamente, pela alteração do comportamento da grande mídia sobre o assunto: os “baderneiros” passaram a ser denominados de “manifestantes”. É interessante, aliás, ver como a cobertura da mídia que antes sempre mostrava os efeitos trágicos no trânsito e o “desespero” das pessoas que estavam sendo impedidas de chegar em casa por causa das manifestações, o que é uma tradição em todas as greves de trabalhadores, mudou de uma hora para outra para uma fala em torno da democracia, da liberdade de expressão, divulgando imagens de pessoas felizes e contentes com as “passeatas”, inclusive de quem estava sendo atingido por elas.É evidente, portanto, que o movimento cresceu por uma tentativa de guinada a temas desprovidos de conteúdo, incentivados pela grande mídia, para desarticular o discurso de esquerda e, por tabela, para abalar a força do governo federal, retirando, inclusive, o foco das administrações municipal e estadual. Mas, as coisas não estiveram sob seu completo domínio – tanto que o movimento nas ruas continuou hostil às emissoras de TV – e a intenção não era, claramente, de golpe, mas de dividendo eleitoral, tanto que se tentou manter sob controle as manifestações, procurando-se deixar claro a todo instante que elas deveriam ser pacíficas. O grito “sem violência” servia tanto contra a ação da polícia quanto contra a ação dos manifestantes, sendo acompanhado do “sem vandalismo”. O fato é que, parece-me, esses jovens possuem um conhecimento que impede que sejam tratados como mera massa de manobra e possuem uma consciência social bem maior do que se imagina.Todavia, com medo do que estava acontecendo, a reação dos partidos de esquerda passou a ser voltada, exclusivamente à preservação da estabilidade do governo, com atração, inclusive, dos partidos de esquerda de oposição ao governo. Interessante verificar que as explicações para o momento e a forma de conduzi-lo, advindas da esquerda e da direita, caminharam-se para o centro, como já ocorrera, ademais, por ocasião do anúncio da redução da tarifa, feito de forma conjunta pelo prefeito e o governador de São Paulo. As explicações de parte da intelectualidade governista sobre os movimentos foram exatamente as mesmas que eram difundidas na mídia, a qual era acusada por aquela de estar instigando um golpe de direita. Governo e grande mídia disseram, de forma uníssona, que os movimentos traziam uma pauta “difusa”, incompreensível.Os teóricos governistas e da direita disseram a mesma coisa, querendo dominar o movimento, mas numa perspectiva conservadora do modelo de sociedade que aí está, destacando, unicamente, alguns pequenos problemas, numa perspectiva pontual.Assim, enquanto o mundo tem se permitido um debate aberto sobre o capitalismo, visando sua superação ou, ao menos, sua remodelação completa, para dar um sentido renovado à condição humana, a mediocridade da partidarização despolitizada, impulsionada pelo terrorismo do medo, aqui esse debate foi negado, sendo que, de certo modo, foi aquém da energia que estava nas ruas. Embora houvesse, certamente, muita força retrógrada atuando, a maioria das reivindicações tinha uma conotação social.Mas, o que se difundiu, estrategicamente, foi uma visão de que não era o povo que estava nas ruas e quando as manifestações atingiram a periferia e esta não atendeu ao chamado midiático de que fosse “limpinha”, pacífica, novamente impôs-se uma análise conservadora, que interessou de parte a parte. A primeira reação foi negar caráter político ao fato, tratando-o como mera obra de vândalos, bandidos e criminosos (sendo forçoso reconhecer que propósitos meramente criminosos estavam infiltrados em parte desses manifestantes, mas isso também se deu em todas manifestações). Depois, de forma mais elaborada, se disse que a reação nas periferias foi um efeito da política inclusiva do PT, que permitiu a essas pessoas o contato com bens de consumo primários e elas, agora, queriam mais. Mais do quê? Mais consumo. Mais do capitalismo! Salvavam-se, assim, o governo, dito de esquerda, e a direita, pois, ao mesmo tempo vangloriavam as ações do governo e faziam uma apologia do capitalismo. Não se disse que a ação violenta nas periferias era uma reação na mesma proporção da violência que essas pessoas sofreram ao longo de décadas, no que se refere à falência dos serviços públicos, exatamente, com saúde, educação, moradia e transporte, sem falar da violência policial, da percepção da injustiça social e do conhecimento da impunidade com relação aos denominados crimes do colarinho branco.No discurso da Presidente Dilma, a tentativa de equilíbrio, voltada à conciliação dos interesses conservadores, restou muito clara. No que tange às manifestações pacíficas, com conteúdo “difuso”, propôs-se instaurar mecanismos de diálogo para soluções futuras (sabe-se lá para quando), ouvindo-se todos os setores da sociedade. Com relação à reação vinda da periferia, o tema foi tratado apenas como “quebra-quebra”, que deve merecer a ação enérgica de repressão das forças do Estado.O que acontecerá agora que o Movimento Passe Livre está chamando novas manifestações, mas desta feita na periferia? Parece-me que o Movimento vai se reencontrar com sua origem e os discursos golpistas contra a mobilização terão que buscar outra lógica ou terão, enfim, que reconhecer que há no Brasil uma força efetiva à esquerda, bem além do parâmetro burocratizado, permitindo um real debate por efetivas mudanças.Por enquanto o legado que o terrorismo do medo deixa é o de que devemos ter medo da democracia, medo de buscar mudanças concretas, medo da política, medo de fazer manifestações, a não ser que sejam com poucas pessoas, conhecidas e com carteirinha do partido. Acho, ainda, que o terrorismo do medo foi provocado por desconfiança com relação à inteligência, o senso crítico, a consciência social, o espírito de solidariedade e a capacidade da juventude de assimilar informações e de realizar correlações, abandonando-se, inclusive, o desafio de conquistar os corações e mentes desses jovens. Essa desconfiança, ademais, se estendeu à população brasileira em geral. A classe trabalhadora, aliás, há muito vem sendo vítima dessa tática do medo, pois foi convencida de que não pode radicalizar suas pautas, para não gerar o risco de enfrentamento do poder econômico com o governo que, afinal, pertence aos trabalhadores, como se diz, provocando com isso até o acolhimento de pautas de redução de direitos.Mas, mesmo reconhecendo a complexidade em que se transformou o movimento, não se pode, simplesmente, querer calar as ruas e menos ainda diminuir a importância de seu grito, que, ademais, continuará ecoando queiramos, ou não, dessa forma ou de outra, agora ou depois, pois a sensação da cidadania experimentada foi um caminho sem volta. Essa vitória do movimento em torno da consciência da força da mobilização não será perdida, por mais que não se queira destacá-la.É hora, ademais, de produzirmos lógicas racionais que vislumbrem a complexidade do mundo e respeitem a nova inteligência humana.Não é possível que o Brasil continue como está, e mesmo não se pode acatar a irracionalidade de afirmar que tudo é culpa do PT e que o PSDB tem a solução. Mas, também não se pode ter o medo de que as mazelas sejam expressas, pois só assim, exercendo com plenitude a democracia é que se pode produzir alguma racionalidade para a superação, por meio das instituições democráticas, da realidade presente, que tem raiz em passado longínquo, vale lembrar. A leitura marxista da história exige, ademais, a produção do conhecimento científico, a busca da verdade, superando as versões falseadas dos fatos, postas para atender interesses não revelados, de qualquer natureza, sendo que uma forma básica para se identificar a cientificidade do debate é a demonstração de coerência e correspondência.A política dentro dos partidos é relevante, mas não se faz política apenas dentro dos partidos. A política se faz, também, por reações espontâneas nas ruas, que, posteriormente, vão se articulando. O próprio PT surgiu assim. Ou alguém vai dizer que as mobilizações dos sindicatos na década de 70, lideradas pelo ex-Presidente Lula, não foram políticas porque não tinham partido? Além disso, a política não pode ser alheia à ciência e esta, para exercer o seu papel, não pode ser atrelada aos limites de interesses eleitorais, ditados pelo medo dos dividendos que uma verdade possa conferir ao adversário político.É momento, pois, de superar a ignorância, alimentada pelo medo, e as formas fingidas de se posicionar. Penso que ainda veremos grandes mudanças no mundo, que serão necessárias e inevitáveis diante do estágio de estagnação do modelo capitalista de produção, mas não considero que um modelo socialista possa ser imposto, ditatorialmente, às pessoas, com supressão da liberdade e da lógica democrática e mais ainda a partir de uma construção ideológica que despreze a realidade. As experiências históricas neste sentido foram fracassadas e, ademais, não se pode pensar uma sociedade socialista sem o conjunto das pessoas e menos ainda com pessoas impregnadas pela lógica capitalista, lembrando sempre que o capitalismo é um modo de ser da sociedade, não apenas um modelo de produção. Além disso, o que está em jogo não é o dividendo eleitoral ou acadêmico que uma ou outra ideia possa ter para esta ou aquela pessoa ou algum partido político. O que se discute é, na essência, a condição humana e quais são os arranjos sociais que possam favorecer à valorização de um ser humano menos egoísta, não consumista, mais solidário, mais culto, mais humano, enfim, com permissivo real à efetivação dos preceitos da liberdade e da igualdade.A juventude que foi às ruas, ainda que boa parte dela tenha sido impulsionada por um apelo apartidário e despolitizado, está na base material dessas discussões e tem total condição de compreender as questões acima tratadas e, de forma surpreendente para muitos, possui propostas que vão muito além daquelas a que tem chegado a esquerda burocratizada. Há que se ouvir a juventude, sempre. Dizem que um problema de a esquerda de não se integrar com coragem ao movimento das ruas é o de que esses jovens tendam aos quadros do raciocínio reacionário e retrógrado. Acredito que o maior risco é o da percepção por parte desses jovens da inconsistência teórica e prática de alguns dos considerados partidos de esquerda, abrindo-se o espaço para o novo, e não o de que se disponham a lutar por valores conservadores, que desprezam, no mínimo, a crítica ao neoliberalismo, pois estão sendo assolados por seus efeitos.Não é possível saber, para onde estamos caminhando, mas o mundo não está parado e já se moveu. O Brasil não será mais o mesmo. As mobilizações sociais na luta por serviços públicos adquiriram em curtíssimo tempo, tão curto que pode ser apontado como um corte revolucionário, o senso comum, ainda que ditado por uma mídia comprometida com propósito político diverso, de que se trata de manifestações políticas legítimas, superando-se o tradicional e reacionário paradigma do direito de ir e vir. Esta revolução foi uma vitória incomensurável para os movimentos sociais e para a classe trabalhadora em geral.Carrego o otimismo de que estamos dando um passo decisivo adiante. Ao menos por enquanto, é possível professar que há um reclamo geral para a construção de um mundo no qual se possa dizer, com fundamento teórico, o que se pensa, com respeito às posições contrárias, com exigência apenas do apelo à racionalidade e o requisito de que a ideia defendida sirva ao conjunto da humanidade.Não se deve deixar-se derrotar pelo terrorismo do medo, sendo, ademais, relevante exaltar as vitórias já conquistadas pelas manifestações, atribuindo os méritos a todos que delas participaram e não a uma elite política e intelectual, pois do contrário restará a sensação de que a luta nas ruas, pelos riscos que gera, não vale a pena, amordaçando e burocratizando a ação política, recriminando os valiosos integrantes do MPL e propugnando que a política só pode ser feita em campos limitados, sob o controle dos ajustes conciliados, com o pretexto de se preservar a governabilidade. Lembre-se que "Tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado" é uma concepção fascista, uma forma indireta de negar a política dos movimentos sociais espontâneos e a relevância dos partidos. E vale avaliar em que medida a vinculação dos sindicatos à base aliada do governo nos últimos anos provocou desmobilização e perda da capacidade de organização da classe trabalhadora que, inclusive, na visão do terrorismo do medo, estaria levando um banho de um “bando de jovens despolitizados”, que se organizaram, sem qualquer teorização, a partir de um único chamado na rede social – o que não me parece ter ocorrido desse modo tão simplista, como demonstrado.Pessoalmente, não quero conviver, silenciosamente, com o engodo, em uma sociedade que se diz social-democrata, mas que preserva interesses econômicos de grande conglomerados econômicos, que enuncia um enorme quadro de direitos sociais e não os aplica, que institui Comissões da Verdade, mas que não quer, de fato, que a verdade seja revelada, que cria uma Comissão de Direitos Humanos e a faz presidir por uma pessoa que não tem noção do que sejam os Direitos Humanos e que se apresenta, na realidade, com profundas injustiças sociais.Não sei qual é a verdade. Tenho mais dúvidas do que respostas. Mas, não podemos ter medo de buscar a verdade e as manifestações nas ruas, com toda sua complexidade, servem, sobretudo, para nos ajudar nesta busca. A população está redescobrindo o espaço público e este é um ato essencial até mesmo para redescobrir a política e o convívio humano, que, nas passeatas, retirando os atos mais exaltados de alguns, chega a emocionar.Cumpre às instituições, sobretudo aos partidos, compreenderem o alcance das mobilizações e estabelecerem diretrizes concretas para efetivarem, com urgência, seriedade e verdade, as reivindicações levadas às ruas, que não são despropositadas, vez que estão, a maior parte delas, consagradas na Constituição de 1988, que foi, vale lembrar, o pacto social já realizado – e até hoje não cumprido, sobretudo no aspecto dos direitos sociais – para superar o momento de crise instaurado no início da década de 80, quando a democracia começava a florir e as pessoas, da mesma forma como agora, cansadas das mentiras de um governo que prometia “tudo pelo social”, mas que nada fazia de concreto neste sentido, foram às ruas em passeatas, chegando mesmo a promover alguns saques.Devemos aprender com a história e não podemos ter medo da democracia. Não devemos ter medo das contrariedades manifestadas, que constituem, ademais, a matéria-prima da produção da inteligência. Quando alguém vai às ruas com placas de reivindicações, às vezes contraditórias e confusas, não está participando de um golpe. No ano passado vários estudantes da USP que ocuparam as ruas de São Paulo com os lemas “Fora PM”, “Fora Rodas”, “Fora Alckmin”, queriam que os preceitos democráticos fossem respeitados. Estas são formas de expressão naturais do panfleto das ruas, que traduzem um sentimento, que devem ser assimiladas pela democracia e avaliadas intelectual e culturalmente, seguido da reflexão sobre as razões da insatisfação. O grito tinha, em si, a razão de ser contra os resquícios da ditadura que ainda regem aquela entidade, gerando falência dos mecanismos de diálogo e uma atitude intolerante com relação às contestações, atingindo, sobretudo, a ação sindical, intolerância esta que foi reforçada com o apelo à violência da repressão policial, que é mais grave ainda em se tratando de um ambiente acadêmico propício à formação e à difusão de ideias.Há de se perceber, por oportuno, o grande avanço do momento presente, pois quando a repressão na USP ocorreu houve uma rejeição generalizada tanto por esta mesma parcela da população que está nas ruas quanto por aqueles que hoje acusam a existência de um golpe articulado. E, queiramos ou não, o momento presente deve trazer os legados de que as manifestações políticas não serão mais reprimidas com violência policial e de que o ambiente escolar não é lugar para atuação articulada e ostensiva da Polícia Militar.O que se verifica concretamente das manifestações presentes, ademais, é que não há uma contrariedade tão grande assim entre a maioria das reivindicações. Por mais que se tente alimentar o medo em torno do reacionarismo ou golpismo de parte dos manifestantes ou que possa partir da leitura que se faça do movimento, a quase totalidade das reivindicações refere-se mesmo a direitos sociais, do que não se desvinculam, de certo modo, também as pretensões que giram em torno da corrupção e da moralidade administrativa, pois o furto do dinheiro público e o seu desvio para atender interesses privados, somados à sonegação, em última análise, são o que dificulta a promoção dos direitos sociais: saúde, educação, transporte e moradia, e enfraquece o Estado, na qualidade de garantidor da efetividade dos direitos trabalhistas e previdenciários.Como já disse, é impossível prever o alcance das manifestações e não se pode negar a tentativa de desvirtuá-las para outras pautas, mas que ainda assim são importantes para o Brasil se conhecer. No mínimo, não se pode perder o momento para conduzir o governo a uma pauta verdadeiramente social, pois este é o menor alcance da maior parte das reivindicações que está nas ruas. Mas, deve-se fazê-lo com rapidez porque estes jovens insatisfeitos representam a sociedade do “click”, da mensagem “on line”, e não querem mais a lógica antiga da formação de comissões que conduzem a lugar nenhum. Seria, ademais, um efeito muito ruim abdicar do papel de auxiliar na conscientização dessa energia política e social revelada, em forma de explosão, por essa juventude, que está contagiando toda a sociedade, uma sociedade que ao se revelar, da forma como tem feito, contra a corrupção e em favor dos direitos sociais, parece estar disposta, enfim, também, a rever seus maiores problemas que são a desigualdade social, o racismo, o machismo, o preconceito, a segregação, a intolerância e a rejeição aos movimentos sociais e às mobilizações dos trabalhadores. Ao menos essa sociedade precisa ser desafiada a enfrentar esses problemas. Estão pedindo providências do governo, então é o caso de verificar o quanto todos estão dispostos a contribuir para que se efetivem as soluções.No que me concerne, até porque devo isso a meus alunos, como forma de demonstrar coerência, concluo dizendo que o terrorismo do medo do mal maior, ou a lógica da acomodação ao mal menor, não vai me obstruir a mente, deixando claro que não tenho medo da direita que se manifesta. Não tenho medo mais da mídia que tenta manipular, pois diante do poder de informação da internet a mentira sempre se revela. Tenho medo da direita que não se apresenta, assim como tenho medo da esquerda que se omite ou que se diz ser o que de fato não é. Tenho medo da ignorância, traduzida pela negação das investigações científicas. Não tenho medo do grito. Tenho medo do silêncio, pois é nele que se operam as tratativas, as negociatas e os conchavos. E devemos todos ter medo mesmo é do silêncio que se tenta impor a quem pretende e tem alguma coisa a falar!São Paulo, 23 de junho de 2013.(*) Professor livre-docente do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP.

O Caso Rio Branco

Jorge Luiz Souto Maior(*)Permitam-me meter a colher nesse assunto que veio a público na última semana, envolvendo o uso de câmeras em salas de aula no Colégio Rio Branco, em São Paulo, pois o caso extrapolou os limites do interesse localizado, vez que envolve a construção de valores que devem nortear toda a sociedade.Para bom entendimento, insta deixar claro desde já que sou completamente contrário à iniciativa do colégio, apoiando, integralmente, a insurgência dos alunos e repudiando, por conseqüência, a punição que lhes fora dada pela diretoria, conforme os argumentos que seguem.Uma linha de defesa da adoção das câmeras foi a inexistência de lei que proibisse a conduta. Neste aspecto, vale destacar, primeiramente, a incoerência da projeção racional de natureza liberal, na qual se inspiram os defensores da ideia. Propugnam, a todo instante, a não-intervenção do Estado nas relações sociais, mas só conseguem pautar seus atos e pensamentos dentro dos padrões delimitados pela lei. Sustentam que o Estado, sobretudo quando se volta à imposição da solidariedade, não deve intervir na atividade social, mas quando lhes interessa só sabem dizer o que é certo ou errado em conformidade com as leis estatais.Em segundo lugar, cabe esclarecer que o Direito é um conjunto normativo complexo, que não está todo circunscrito nas leis. Dizer que só se deve ser obrigado a praticar um ato em decorrência de lei é o mesmo que dizer que tudo é permitido a não ser que esteja legalmente proibido. Mas, bem sabemos, os valores humanos são construídos pelo convívio social e na busca da compreensão do próprio sentido da condição humana. Assim, há sentimentos morais, determinados pela compreensão filosófica do ser e da sua interligação com o outro, que não são, jamais, dependentes de leis estatais para existirem e para terem eficácia. Não fosse assim os grandes pensadores da história, que contribuíram para a elevação do ser humano, não teriam sido os filósofos e sim os legisladores.Aliás, o grande mérito dos juristas do século XX, depois de verificarem a ineficácia das leis para lidarem com os dilemas sociais, foi o de terem incorporado ao Direito essa concepção, antes adstrita ao denominado Direito Natural, de que os valores fundamentais do ser humano e da convivência pacífica não estão condicionados a uma lei para se considerarem jurídicos, com força obrigacional.O primeiro argumento a favor da colocação de câmeras é, portanto, juridicamente impróprio, sendo oportuno consignar que dentre os valores relevantes em jogo estão a confiança, a responsabilidade e o respeito recíproco, que se perdem quando impera a vigilância excessiva.Foi dito, ainda, que as câmeras cumpririam um papel importante de conferir segurança nas salas de aula. Mas, segurança para quem e em face de quem? A questão não foi bem esclarecida, mas se a segurança foi pensada em favor dos estudantes há de se indagar quem seriam os pretensos agressores? Os outros estudantes? Os professores? De um jeito ou de outro, a estratégia representaria transferir para as câmeras as funções de educar os alunos e de melhor preparar os profissionais.De fato, não há um aspecto relevante envolvendo a segurança e ainda que houvesse a questão que se coloca é o preço que se pagaria para obtê-la. Estou certo de que o preço é tão alto que chega mesmo a negar a razão de ser da instituição enquanto uma entidade voltada ao ensino, pois este se perfaz essencialmente pela transmissão de valores que possam consagrar a compreensão do respeito alheio. Vigiar e punir é função de um Estado policial com o qual convivemos somente em razão da falência das instituições democráticas e de um modelo de sociedade que, corroborando práticas supressivas da condição humana, se mostra incapaz de concretizar uma autêntica política de justiça social.Uma sala de aula é o ambiente da construção de valores e, no plano ideal, da produção de certa cumplicidade entre professores e alunos no que tange às deficiências de uns e de outros, pois, afinal, a sala de aula é local de aprendizado e o processo educacional, embora almeje os acertos pela aquisição do conhecimento, parte dos pressupostos dos erros e da ignorância. A sala de aula não é um palco teatral, onde se reproduz uma peça previamente ensaiada. É o espaço no qual as deficiências humanas se revelam e a inteligência é utilizada para superá-las, numa perspectiva progressiva. Pensar em uma intervenção ostensiva externa nesse ambiente, ainda que para fins restritos de uma pretensa segurança, inibe e restringe a livre atuação dos sujeitos envolvidos.As câmeras provocam, a um só tempo, desconfiança, inibição e repressão, que ferem de morte o processo educacional.Portanto, em nome da eficácia da ordem jurídica, pautada pelos Direitos Humanos, em respeito aos alunos e aos professores, em homenagem à relevância da instituição de ensino e para que a experiência não se reproduza em outros locais, espera-se uma reversão urgente da situação em comento.São Paulo, 30 de setembro de 2012.(*) Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP.

Moradores de Rua - a questão social bate à porta da Faculdade de Direito da USP

MORADORES DE RUAA questão social bate à porta da Faculdade de Direito da USPJorge Luiz Souto Maior(*)Na noite de 17/09/12, estudantes da Faculdade de Direito da USP protagonizaram um espetáculo de cidadania ao organizarem um ato, que se estendeu até a manhã do dia seguinte, em solidariedade aos moradores de rua que foram expulsos do entorno do prédio da Faculdade, por ação da Guarda Civil Metropolitana.Em apoio ao ato, cumpre consignar.O local destinado a uma instituição pública de ensino jurídico deve ser reservado à produção de conhecimentos voltados à compreensão dos problemas das relações humanas, buscando a normatividade necessária para a superação desses problemas, vislumbrados numa perspectiva evolutiva do sentido da condição humana.No Estado Democrático de Direito Social as instituições públicas e privadas, regidas pela ordem constitucional, devem funcionar em favor da construção da justiça social, ou seja, da eliminação das desigualdades econômicas, sociais, culturais e políticas, constituindo aparatos físicos e abstratos para a formulação de racionalidades e de práticas destinadas a conferir a todos os cidadãos uma existência digna e ao corpo da sociedade uma convivência solidária e pacífica.Assim, foi uma irracionalidade contrária aos projetos da construção de uma sociedade formada à luz do Direito Social a atitude de se utilizar a força do Estado para retirar das bordas de um prédio público, no qual se situa uma Faculdade de Direito, pessoas que foram alijadas das políticas públicas desse mesmo Estado e que encontraram naquele local uma forma precária de moradia, fazendo-o, inclusive, como ato político para transmitirem a mensagem da sua existência.Retirar os moradores do local, sem a formulação de um projeto mais amplo de compreensão e de superação das causas da exclusão, efetuando-se, por conseguinte, apenas um deslocamento de pessoas, trata-se de uma negativa do Estado em assumir sua responsabilidade perante o problema. A Faculdade, acatando pacificamente a situação, demonstrar-se-ia imprópria para a formulação de saberes jurídicos necessários ao enfrentamento da questão social.É preciso reverter essa situação, mas não para que volte ao que era, vez que isso representaria uma simples reivindicação em favor da persistência da injustiça social.Reivindicar a retomada da ocupação do espaço em questão pelos moradores de rua é um passo importante, mas é preciso ir além.Essencial que se passe ao momento da superação dos obstáculos físicos e mentais que separam as pessoas que estão dentro e fora do prédio. Relevante que não mais se tratem essas pessoas meramente pela fórmula abstrata e impessoal de “moradores de rua”, embora a expressão tenha forte e importante conotação política. Necessitamos conhecer quem são, de fato, essas pessoas. Qual sua história de vida? Que dilemas e angústias lhes afligem? Poderemos, então, formular saberes e desenvolver práticas solidárias válidas para o caso e para a constituição do sentido de cidadania, visualizando esses efeitos como expressão necessária da vivência jurídica.Nesse contexto, a iniciativa dos alunos da Faculdade ao tomarem para si a responsabilidade de enfrentamento do problema, não permitindo que a situação, que reflete mais uma forma de violência do Estado frente à questão social, ficasse despercebida ou que fosse vista como normal e necessária, merece aplausos. Em concreto, a sua atitude resgata a todos nós como seres humanos e restitui à instituição do Largo de São Francisco um pouco de dignidade!(*) Professor da Faculdade de Direito da USP, 49.

Vinte Anos da AJD

José Henrique Rodrigues TorresASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIAFESTA DE CELEBRAÇÃO DOS VINTE ANOS25 de novembro de 2011José Henrique Rodrigues TorresQueridos amigosQueridas amigasEmprestando um verso de NERUDA, eu posso dizer que HOJE “no coração estamos todos juntos”.E este momento de festa é o momento ideal para a lembrança de um significativo conto de Tolstoi:IVAN VASSÍLIEVITCH, durante uma grande festa, viveu uma paixão avassaladora e acreditou que o amor, como grande força apaziguadora do Universo, era capaz de tornar todo homem bom, justo e solidário.Mas, depois da festa, findos os acordes dos violinos, apagadas as luzes dos candelabros, finda a abastança do banquete, longe da beleza e da elegância dos dançarinos, e de seus sorrisos carinhosos, IVAN VASSÍLIEVITCH, ao assistir à tortura pública de um soldado desertor, promovida por um coronel que personificava a mais cruel e violenta tradição, foi tragado pela realidade e descobriu, na súplica desesperada daquele miserável, que era preciso resistir... e ele assumiu, a partir de então, a sua feição humana e percebeu que era imprescindível lutar contra as injustiças, contra a desigualdade e contra a violência e os abusos do poder.Meus queridos amigos,Minhas queridas amigas,Vamos curtir esta festa maravilhosa, vamos comemorar, vamos celebrar, vamos nos deliciar com estes momentos de alegria, luzes e sorrisos, mas, depois da festa, lembremo-nos disso, nós voltaremos a ouvir os gritos dos miseráveis, que depositam em nós a esperança frágil de um olhar desesperado.Depois da festa, a realidade nos espera ...Fernanda Menna Pinto Peres:“E bobeira é não viver a realidade”!Nós precisamos estar sempre prontos para ouvir a bulha de muitos MACUNAÍMAS e MACABEIAS dessa sociedade esmagada pelo arbítrio dos interesses privatistas e confusa diante da tradição positivista.Depois da festa, nós continuaremos a conviver com uma sociedade DIVIDIDA na dissimulação do real e, CARENTE, clamando pela GARANTIA material de seus DIREITOS.Kenarik Boujikian Felippe:“A gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte. A gente quer bebida. E quer fazer amor”Reno Viana Soares:“A gente não quer só dinheiro. A gente quer dinheiro e felicidade. A gente quer inteiro. E não pela metade...”Não nos esqueçamos, então, de que está a nos aguardar uma sociedade imersa em uma realidade que é um verdadeiro “MONUMENTO À NEGLIGÊNCIA SOCIAL”, como diz HOBSBAWN!Será impossível sair desta festa e deixar de ver as cidades em trapos, esmolando por dignidade, nas construções, com seus olhos embotados de cimento e lágrimas, nas fábricas, nos campos, nos cárceres, nas ocupações de terra, nas favelas, nos gráficos oficiais, nos lagos de Tântalo e nos brejos da cruz, onde crianças agradecem a Deus por esse chão pra dormir, pela certidão pra nascer e pela concessão pra sorrir.Interesses de classes dominam as relações sociais, MAS, enquanto isso, nosso sistema jurídico mascara contradições sociais profundas e antagonismos inconciliáveis, impondo-nos noções de igualdade entre classes, de unidade social, de identidade e de liberdade, onde na realidade só há divisão, ruptura, contradições, desigualdade, exclusão e opressão individual.Nossa sociedade continua dividida e marginalizada, MAS, enquanto isso,FACULDADES DE DIREITO e ESCOLAS DA MAGISTRATURA funcionam como meros centros de transmissão do conhecimento jurídico oficial, reproduzindo a “sabedoria codificada”, ensinando apenas a convivência “respeitosa” com as instituições, IMPINGINDO-NOS uma formação bibliográfica e legalista de um pragmatismo positivista e CONDUZINDO-NOS uma especialização fechada e formalista e, especialmente, ao imobilismo acrítico.Mas, nós, que aqui estamos, sabemos que não é possível sepultar o nosso ousio em manuais jurídicos e simplesmente acreditar no mito de uma sociedade sem fraturas.QUERIDOS e QUERIDAS CÚMPLICESNós sabemos que é preciso fazer do DIREITO um verdadeiro fator de TRANSFORMAÇÃO SOCIAL, com compromisso ético e político.Nós sabemos que é preciso deixar os gabinetes da solidão e a clausura dos alfarrábios, da jurisprudência, das doutrinas e dos códigos petrificados, para mergulhar de corpo e alma no mar picado da vida.O poeta RUI GUERRA tem razão:José Viana Ulisses Filho:“É preciso conter a mão cega e bruta, que empunha a espada da opressão e da exclusão, que corta, com a lâmina fria da insensibilidade, a carne viva dos injustiçados”Enfim, todos nós sabemos que é preciso fazer de nossas vidas uma constante e incansável conspiração contra o presente.E é isso exatamente o que hoje nos traz a este encontro e a esta celebração: nós aqui estamos para reafirmar o nosso compromisso de conspirar contra o presente.Conspiremos, meus amigos e amigas, contra este presente que está roubando o sorriso e a inocência das crianças descalças e famintas, que está calejando as mãos e consumindo a dignidade dos cidadãos e cidadãs sem-terra, sem-teto, sem-voz, sem-auto-estima, sem-saúde, sem-esperança, sem-cidadania, sem acesso à justiça, estigmatizados pela violência e encarcerados nas lágrimas da ignorância e da alienação:João Batista Damasceno:“É preciso sempre lembrar do provo oprimido nas filas, nas vilas, favelas, e da força da grana que ergue e destrói coisas belas”.Lembremo-nos, também, de GRACILIANO RAMOS e olhemos para as aves da arribação, sem acreditar, como supunha Fabiano, que são elas as responsáveis pela secura dos açudes e pelas misérias da vida.Meus queridos amigos, minhas queridas amigas,Esses VINTE ANOS nos ensinaram que É PRECISO CONSPIRAR E LUTAR!Lutemos pela IGUALDADE material, pois a formal não basta!Lutemos pelas GARANTIAS LIBERTADORAS.Conspiremos, enlouquecidos de esperança.Alessandro da Silva:E não “nada a temer, senão o correr da luta”.E, para lutar e entender o que é o direito, qual é a sua função, qual é o seu verdadeiro sentido, vivamos a aventura dos sentimentos, não sejamos CADÁVERES ADIADOS, como dizia FERNANDO PESSOA, lutemos com a bravura de DOM QUIXOTE, resistamos como resistiram nos sertões os apaixonados de CANUDOS, acreditemos nas feiticeiras de MACBETH, no amor de CAPITU e nos espectros de HAMLET, mas, sobretudo, vivamos o sonho real de MACONDO, porque a vida não foi feita para o direito: o direito é que foi feito para a vida.Ouçamos CASTRO ALVES:Luiza Barros Rozas:“Como o céu é do condor, a praça é do povo”.Lutemos, pois, pelo acesso do povo às praças, ao pão, às terras, às escolas, e especialmente à justiça ... mas, nessa conspiração, depois da festa, nessa luta, que continuará sendo certamente o nosso dia-a-dia, o dia-a-dia da AJD, jamais nos esqueçamos de ouvir Renato Russo:Dora Martins:“É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”.E é preciso colocar esse nosso amor a serviço da humanidade e daqueles que caminham ao nosso lado nas ruas sem calçadas, que dormem em casas sem paredes e sem tetos e que lavram a terra apenas com a semente da esperança.Rubens Roberto Rebelo Casara:Então, “é preciso ouvir Chico Buarque de Holanda: contra a fé, moléstia e crime: vá de Dorival Caymi”Meus queridos amigos,Minhas queridas amigas,Para terminar esta minha oração, e para que possamos voltar para a festa, eu lhes faço um pedido, em nome de todos os juízes e de todas as juízas que tanto lutaram e continuam lutando para escrever a história da AJD: se vocês realmente acreditam nessa sua luta, se vocês acreditam que podem transformar o mundo, se vocês querem prosseguir conspirando contra a injustiça e a desigualdade, FAÇAM O SOL SURGIR, neste momento, FAÇAM OS RAIOS DO SOL INVADIREM ESTE LUGAR, gritem, batam palmas, assobiem, mas façam a cortina da noite se afastar para que a luz do sol invada este lugar.Vamos, eu quero ouvi-los todos gritando, aplaudindo, assobiando PARA QUE O SOL ILUMINE ESTE LOCAL.(..................)Basta. Basta. Basta.Todos ouviram.Não fiquemos frustrados porque a escuridão da noite não se afastou.Não fiquemos tristes porque a luz do sol não iluminou este lugar.O que importa é que nós acreditamos !!!A nossa coragem basta.A nossa determinação é tudo.A nossa esperança vai transformar o mundo.Vamos continuar semeando sonhos e estrelas.E vamos caminhar de mãos dadas, pois, por onde vocês forem, eu quero ser seu par!Que viva a AJD até que se realize plenamente o sonho generoso do Milton Nascimento:TODOS:“Quero a liberdade,quero o vinho e o pãoQuero ser amizade,quero amor, prazerQuero nossa cidade sempre ensolarada.Os meninos e o povo no poder, eu quero verQUERO QUE A JUSTIÇA REINE EM MEU PAÍS”OBRIGADO.

Em Defesa dos Direitos Humanos

Jorge Luiz Souto Maior[1]É com pesar e grande apreensão que tivemos contato com o texto publicado na Revista Veja, edição n. 2246.Pesar pelo fato do texto desprezar o necessário conhecimento a respeito da Instituição que ataca, a qual tem prestado reconhecidos serviços, ao longo de vinte anos à defesa concreta – e não apenas teórica –, em prol da construção de uma autêntica democracia neste país. Apreensão porque o ataque feito, que parte da desinformação, representa uma afronta aos pilares dos Direitos Humanos. O articulista, sem a formação jurídica necessária, provavelmente de boa fé, portanto, fez uma grave inversão de valores, indo na mesma direção da estratégia utilizada para a implementação de um regime de ultra direita na Alemanha nazista. O nazismo, não se pode esquecer, foi um regime baseado na legalidade estrita. A constatação de que os horrores da guerra tiveram por base argumentos de legalidade motivou uma profunda alteração nas bases teóricas do Direito, que proporcionou o advento da concepção internacional dos Direitos Humanos, para o fim de fazer integrar aos ordenamentos nacionais as regras e princípios protetivos da condição humana fixados em Documentos Internacionais, ultrapassando, inclusive, a noção da soberania nacional.Vide, a respeito, a seguinte passagem de Flávia Piovesan[2]:A internacionalização dos direitos humanos constitui, assim, um movimento extremamente recente da história, que surgiu a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Apresentando o Estado como o grande violador de direitos humanos, a Era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e da descartabilidade da pessoa humana, o que resultou no extermínio de onze milhões de pessoas. O legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a condição de sujeito de direito, à pertinência a determinada raça – a raça pura ariana. No dizer de Ignacy Sachs, o século XX foi marcado por duas guerras mundiais e pelo horror absoluto do genocídio concebido como projeto político e industrial.No momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que cruelmente se abole o valor da pessoa humana, torna-se necessária a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável. A barbárie do totalitarismo significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da negação do valor da pessoa humana como valor fonte de direito. Diante dessa ruptura, emerge a necessidade de reconstruir os direitos humanos, como referencial e paradigma ético que aproxime o direito da moral. Nesse cenário, o maior direito passa a ser, adotando a terminologia de Hannah Arendt, o direito a ter direitos, ou seja, o direito a ser sujeito de direitos.Nesse contexto, desenha-se o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar sua reconstrução.Nasce ainda a certeza de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao âmbito reservado de um Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Sob esse prisma, a violação dos direitos humanos não pode ser concebida como questão doméstica do Estado, e sim como problema de relevância internacional, como legítima preocupação da comunidade internacional.A necessidade de uma ação internacional mais eficaz para a proteção dos direitos humanos impulsionou o processo de internacionalização desses direitos, culminando na criação da sistemática normativa de proteção internacional, que faz possível a responsabilização do Estado no domínio internacional quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na tarefa de proteger os direitos humanos.O processo de internacionalização dos direitos humanos – que, por sua vez, pressupõe a delimitação da soberania estatal – passa, assim, a ser uma importante resposta na busca da reconstrução de um novo paradigma, diante do repúdio internacional às atrocidades cometidas no holocausto.Explicam Richard Pierre Claude e Burns H. Weston: ‘Entretanto, foi apenas após a Segunda Guerra Mundial – com a ascensão e a decadência do Nazismo na Alemanha – que a doutrina da soberania estatal foi dramaticamente alterada. A doutrina em defesa de uma soberania ilimitada passou a ser crescentemente atacada, durante o século XX, em especial em face das conseqüências da revelação dos horrores e das atrocidades cometidas das conseqüências da revelação dos horrores e das atrocidades cometidas pelos nazistas contra os judeus durante a Segunda Guerra, o que fez com que muitos doutrinadores concluíssem que a soberania estatal não é um princípio absoluto, mas deve estar sujeita a certas limitações em prol dos direitos humanos. Os direitos humanos tornam-se uma legítima preocupação internacional com o fim da Segunda Guerra Mundial, com a criação das Nações Unidas, com a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembléia Geral da ONU, em 1948 e, como conseqüência, passam a ocupar um espaço central na agenda das instituições internacionais. No período do pós-guerra, os indivíduos tornam-se foco de atenção internacional. A estrutura do contemporâneo Direito Internacional dos Direitos Humanos começa a se consolidar. Não mais poder-se-ia afirmar, no fim do século XX, que o Estado pode tratar de seus cidadãos da forma que quiser, não sofrendo qualquer responsabilização na arena internacional. Não mais poder-se-ia afirmar no plano internacional that King can nowrong’.Nesse contexto, o Tribunal de Nuremberg, em 1945-1946, significou um poderoso impulso ao movimento de internacionalização dos direitos humanos. Ao final da Segunda Guerra e após intensos debates sobre o modo pelo qual se poderia responsabilizar os alemães pela guerra e pelos bárbaros abusos do período, os aliados chegaram a um consenso, com o Acordo de Londres de 1945, pelo qual ficava convocado um Tribunal Militar Internacional para julgar os criminosos de guerra.”Como explica a mesma autora[3]:“O significado do Tribunal de Nuremberg para o processo de internacionalização dos direitos humanos é duplo: não apenas consolida a idéia da necessária limitação da soberania nacional como reconhece que os indivíduos têm direitos protegidos pelo direito internacional. Testemunha-se, desse modo, mudança significativa nas relações interestatais, o que vem a sinalizar transformações na compreensão dos direitos humanos, que, a partir daí, não mais poderiam ficar confinados à exclusiva jurisdição doméstica. São lançados, assim, os mais decisivos passos para a internacionalização dos direitos humanos.”A eficácia da racionalidade que põe em primeiro plano a necessária defesa da condição humana passa, necessariamente, pela integração dos direitos e princípios postos internacionalmente às realidades internas. Como esclarece Antônio Augusto Cançado Trindade[4], “os próprios tratados de direitos humanos atribuem uma função capital à proteção por parte dos tribunais internos”.Conforme expressa o mesmo autor: “Tendo a si confiada a proteção primária dos direitos humanos, os tribunais internos têm, em contrapartida, que conhecer e interpretar as disposições pertinentes dos tratados de direitos humanos.”[5]É neste sentido, portanto, que “assume importância crucial a autonomia do Judiciário, a sua independência de qualquer tipo de influência executiva”[6].A independência dos juízes, para fazerem valer, concretamente, os princípios pertinentes aos Direitos Humanos, trata-se, portanto, de uma garantia do Estado de Direito. A independência do juiz, para dizer o Direito, é estabelecida pela própria ordem jurídica como forma de garantir ao cidadão que o Estado de Direito será respeitado.Como explicita Fábio Konder Comparato: “A independência funcional da magistratura, assim entendida, é uma garantia institucional do regime democrático. O conceito institucional foi elaborado pela doutrina publicista alemã à época da República de Weimar, para designar as fontes de organização dos Poderes Público, cuja função é assegurar o respeito aos direitos subjetivos fundamentais, declarados na Constituição.”[7]A grave inversão trazida no texto, portanto, é a de justificar que qualquer valor pode ser de Direito, mesmo que seja supressor da condição humana, apegando-se no argumento da legalidade estrita. Os juízes alemães, no julgamento de Nuremberg, foram condenados exatamente por adotarem a postura assumida pelo articulista do texto que se comenta. Mas, a sociedade brasileira (na qual se inclui o próprio articulista), pelo menos quanto a este aspecto, pode ficar tranqüila, pois há juízes no Brasil que não cederão a qualquer tipo de pressão e que continuarão a cumprir o seu dever, assumido perante a comunidade internacional, de fazer valer os princípios elencados nos Direitos Humanos, que foram a maior conquista da humanidade. Afinal, como há muito preconizado por Eduardo Couture: “Da dignidade do juiz depende a dignidade do Direito. O Direito valerá, em um país e em um momento históricos determinados, o que valham os juízes como homens. No dia em que os juízes tiverem medo, nenhum cidadão poderá dormir tranqüilo.” [1]. Professor Associado da Faculdade de Direito da USP. Juiz do Trabalho, titular da 3ª. Vara do Trabalho de Jundiaí./SP. Membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD.[2]. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 116- 118.[3]. Idem, p. 123.[4]. Prefácio da obra, Instrumentos Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1997, p. 24.[5]. Ob. cit., p. 24.[6]. Idem, p. 24-25.[7]. O Poder Judiciário no regime democrático. Revista Estudos Avançados, 18 (51), 2004, p. 152.

O Direito e a Política na USP – e fora dela – depois da irracionalidade

Jorge Luiz Souto Maior [1]O prédio da Reitoria da USP foi desocupado! E agora?Para a desocupação foram utilizados 400 homens, dois helicópteros, cavalaria e diversas viaturas. Um gasto considerável ainda mais para um Estado, como o de São Paulo, que deve cerca de R$20 bilhões em precatórios intermináveis, sendo que dos quais R$15 bilhões referem-se a precatórios alimentares, decorrentes de créditos trabalhistas e previdenciários.Após a expulsão de cerca de 70 (setenta) estudantes, sendo 25 (vinte e cinco) mulheres, restou a efetividade da posse mansa e tranqüila do prédio da Reitoria por parte da Administração da Universidade.Foi só isso e acabou?Nada disso. O fato representa muito mais e cumpre, por exercício da razão, trazer essas análises à tona.É evidente que a utilização de todo aquele aparato de poder não se destinou apenas ao efeito da mera desocupação, ou mesmo a eliminar de vez, ou ao menos inibir, a prática do uso da maconha na Universidade. A grandiosidade da operação, atendendo, de certo modo, a reclamos advindos de uma comoção social, proporcionada pela ingerência de parte da grande mídia, que também não mediu esforços e custos para difundir a idéia de que o prédio estava invadido (e não ocupado) por “maconheiros”, autênticos marginais, moleques sem limites, mimados etc, gerando uma onda assustadora de irracionalidades generalizantes, demonstra que se pretendia muito mais do que o efeito formal atingido.Aliás, a própria grandiosidade da manifestação inicial dos estudantes, diante da prisão de três alunos, demonstra, claramente, que havia muito mais em jogo. Estava instalada no local uma forte tensão fruto da falência das vias institucionais para conduzir reivindicações, que fora alimentada pela política de tolerância zero frente aos movimentos estudantis e trabalhistas e que se intensificou com a chegada da Polícia Militar no campus. Sob o mote de aumentar a segurança, a PM, que segue ordens superiores, acabou servindo para incriminar cinco servidores que se envolveram em movimento reivindicatório de natureza sindical e para a realização de sucessivas revistas em alunos, sobretudo daqueles que pudessem possuir orientação política contestatória, como se dá com alunos da FFLCH. Esse conflito latente é o que explica a reação dos alunos, que, por certo, não se mobilizariam do nada, para a defesa de algo que nunca esteve em pauta nos debates estudantis na USP, a liberalização do uso da maconha.O ponto a destacar neste texto, no entanto, que busca compreender a razão do vulto da operação realizada por ocasião da desocupação do prédio da Reitoria, é outro. Trata-se da dimensão da relação entre o direito e a política, entendida esta como o conjunto de ações que buscam a construção dos valores para o convívio social e aquele como a normatização, com conteúdo obrigacional, dos valores politicamente construídos.A questão é que embora apoiada em suposta pretensão de natureza jurídica, o ato da Administração da USP, de propor a ação de reintegração de posse, não decorreu da extrema necessidade de resgatar a legalidade, tratou-se, desde o início, de uma forma de judicialização da política, para, com a obtenção da liminar da Justiça, furtar-se ao diálogo para o qual fora chamada pela ação dos estudantes, tanto que se negava a avançar nas negociações políticas, precariamente instauradas, fixando a condição da desocupação, já determinada judicialmente.Além do mais, a ação policial que se seguiu não se prestou ao estrito cumprimento da ordem judicial, obviamente. Foi muito além disso e seguiu a linha do propósito inicial, qual seja, a da orientação política por parte do poder instituído no sentido de evitar contraposições de ideias.Ora, não é concebível acreditar que na autorização judicial do uso da força policial para a reintegração de posse estivesse embutida uma permissão para a operação que fora feita, o que a torna ilegítima mesmo na perspectiva do respeito à decisão judicial. E, ainda que estivesse assim amparada, o que se duvida, o fato é que o feito foi muito além do determinado, que seria, meramente, a desocupação do prédio.No ato policial de terça-feira, dia 8/11, justificado por alguns a partir do princípio da legalidade, foram cometidas diversas ilegalidades muito mais graves, aliás, do que o aludido esbulho possessório. Vários foram os direitos fundamentais desrespeitados. Estudantes, ainda que considerados “invasores” poderiam, no máximo, ser vistos como praticantes de um ilícito civil e jamais terem sua condição humana negada. Mas, não. Após serem ameaçados com armamento pesado, foram conduzidos, arbitrariamente, às Delegacias, onde se viram obrigados a prestar depoimentos a respeito, inclusive, de sua orientação política, para o necessário prosseguimento do caráter da ação, qual seja, a realização futura de uma perseguição política.Vários estudantes foram mantidos pela Polícia Militar em cárcere privado no prédio do CRUSP.Muitos estudantes, ainda, foram indiciados por dano ao patrimônio público, mesmo que não se tenha qualquer autoria comprovada do alegado ilícito. E uma Delegada declarou em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo: “todos são culpados”. Mas, quais são “todos”? Os que entraram lá nos diversos dias ou os que estavam dormindo lá no dia da desocupação? Não há crime sem lei que o defina e não há crime sem autoria determinada. É o que diz a lei. Mas, afinal, para quê respeitar a lei se o propósito é punir politicamente os estudantes, servindo a lei apenas como pretexto para tanto, não é mesmo?A força desproporcional utilizada – e esta desproporcionalidade é um fato que ninguém pode negar – pôs-se, assim, com o objetivo de impor o silêncio, de criar medos, de impedir futuras mobilizações políticas adversas, de construir padrões de conduta disciplinados para a não-contestação, de reforçar o império da tolerância zero, deixando claro que o debate político será sempre judicializado para a concreta criminalização daqueles que apresentem ideias contrárias ao comando central, como, aliás, vinha sendo realizado há algum tempo, sendo este um recado necessário para levar adiante, sem resistências, o propósito, já anunciado, de priorizar, no âmbito das políticas de atuação da Universidade, um ensino voltado a atender as expectativas de mercado.A operação policial, portanto, longe de ter sido feita para cumprimento de uma decisão judicial, prestou-se a aprofundar a política anti-democrática que estava instaurada no âmbito da Universidade no sentido da eliminação das atitudes de contestação, reivindicação e fiscalização feitas por parte dos estudantes e do sindicato dos trabalhadores em face das políticas privatizantes do ensino, anunciadas pela atual Direção da Universidade, e da forma como vem tratando as questões trabalhistas, com aprofundamento do processo de terceirização.O Judiciário, aliás, precisa começar a perceber que muitos segmentos da sociedade, que ostentam parcela do poder institucionalizado, estatal ou econômico, estão se valendo de uma pretensa defesa da legalidade, que lhes vale uma utilização desvirtuada de mecanismos processuais com o objetivo de fazer calar os seus interlocutores e, assim, frustrarem o diálogo.Essa percepção, aliás, já chegou de forma recorrente ao Judiciário trabalhista no que se refere aos interditos proibitórios em caso de piquetes de greves e está atingindo o Judiciário Civil, conforme verificado no processo nº 114.01.2011.011948-2, UNICAMP x DIRETÓRIO CENTRAL DOS ESTUDANTES / DCE – UNICAMP com trâmite na 1ª. Vara da Fazenda Pública de Campinas). Em caso semelhante ao do que ora se trata, o juiz Mauro Iuji Fukumoto, assim se pronunciou: “...de fato, ocupação de prédios públicos é, tradicionalmente, uma forma de protesto político, especialmente para o movimento estudantil, caracterizando-se, pois, como decorrência do direito à livre manifestação do pensamento (artigo 5º, IV, da Constituição Federal) e do direito à reunião e associação (incisos XVI e XVII do artigo 5º). Não se trata propriamente da figura do esbulho do Código Civil, pois não visa à futura aquisição da propriedade, ou à obtenção de qualquer outro proveito econômico. A situação em tela não se amolda à proteção possessória prevista nos artigos 920 e seguintes do Código de Processo Civil, especialmente aos critérios dos artigos 927 e 928 para a concessão da liminar. Inegável, por outro lado, que toda ocupação causa algum transtorno ao serviço público – se assim não fosse, pouca utilidade teria como forma de pressão. Há que se ponderar, dentro de um critério de razoabilidade, a importância do serviço público descontinuado pela ocupação, de um lado, e o resguardo dos direitos constitucionais supra mencionados, de outro.” Referindo-se, ainda, para o indeferimento da liminar requerida, à ausência de prejuízo para a sociedade em geral pela descontinuidade dos serviços realizados pela Administração da Universidade, o que, no caso da USP sequer ocorreu pois os serviços da Reitoria estavam sendo realizados em prédio diverso.O fato é que uma decisão judicial pode, concretamente, interferir no embate político, sendo, assim, ela própria, a decisão, uma manifestação com conteúdo político, até por ser, concretamente, um ato de escolha. Explica-se. Se o Direito é o conjunto normativo, com força obrigacional, que rege a vida em sociedade, decorrendo da ação política desenvolvida dialeticamente no percurso histórico, e sabendo-se que muitas vezes o transpasse do político para o direito se faz sem a necessária síntese, mas por meio da incorporação de contradições não superadas, o ato de interpretar e aplicar o conjunto normativo ao caso concreto, pois não há uma norma única que solucione, por si, os conflitos sociais, acaba sendo um exercício de escolha, que pressupõe não apenas o conhecimento do conjunto normativo, mas a necessária valoração do fato, compreendido a partir dos fenômenos históricos da construção da racionalidade humana.Esta avaliação, no entanto, não é completamente livre, pois há um método, um direcionamento principiológico que norteia a análise. A ciência do Direito não está na estipulação de sua organização, na sua consideração como ordenamento ou como sistema, e sim na fixação de um método pelo qual a partir do Direito se possa efetuar uma análise crítica da realidade e estimular práticas emancipatórias da condição humana.Na linha de favorecer o desenvolvimento de uma racionalidade jurídica de cunho verdadeiramente social, a Declaração Universal de 1948 vincula o uso darazão, que é a conquista maior do homem moderno, ao ato de agir, concretamente, com espírito de fraternidade com relação aos outros (art. 1º.). Além disso, proclama a obrigação do Estado na efetivação dos direitos e a necessidade de se atingir o progresso social e de alcançar a melhoria das condições de vida, garantindo-se a liberdade de opinião e de expressão (art. 19), assim como a liberdade de reunião e associação pacíficas (art. 20), para o efeito de buscar a efetivação dos direitos consagrados.O pretexto do respeito à legalidade estrita, especialmente, para proteger uma propriedade, que nunca esteve, de fato, ameaçada, não pode impor, portanto, sacrifícios a direitos fundamentais, nos quais se inclui a ação de natureza política, ainda mais quando o meio utilizado para o resgate da posse seja ofensivo ao direito à vida. Lembre-se que em nome da lei já se praticaram os mais variados males à condição humana.Na perspectiva da ponderação, critério essencial de aplicação do Direito no modelo em que princípios se integram ao conceito de normas jurídicas, é necessário sempre ver os atos a partir de seu maior conteúdo, avaliando a finalidade, o resultado, a motivação, o efeito lesivo e o sentido ético do comportamento. Uma manifestação política, como foi a dos estudantes, não pretendeu, em nenhum momento, como se sabe, afrontar a autoridade constitucional, nem defender qualquer interesse que fosse desprestigiado pela ordem jurídica. Uma ação política reivindicatória, como foi, visa, exatamente, conferir eficácia concreta ao preceito democrático, ainda que com sacrifício parcial e provisório de outros valores.No aspecto teórico do tema pertinente ao dano ao patrimônio público, se é que houve, pois os estudantes não o reconhecem, não se pode deixar de considerar os valores envolvidos. Não fosse assim, todos aqueles que picharam muros reivindicando as “Diretas Já” teriam que ser presos e pagar pelo prejuízo material causado e a ditadura ainda estaria por aí. E seria o caso, também, de levar à prisão, fichar e processar, os ardorosos torcedores brasileiros que pintam as ruas durante os jogos da Copa do Mundo de futebol.De todo modo, concordando-se, ou não, com o método adotado (e, pessoalmente, nunca concordei, como bem sabem os estudantes), ou mesmo rechaçando, no mérito, as suas demandas, o ato por eles cometido não se insere, de modo algum, na esfera do ilícito penal por se tratar de um ato, evidentemente, político, como, ademais, fora a própria reação contrária da Reitoria.Além disso, se a defesa da posse pode ser legal, nada justifica que a satisfação dessa legalidade conduza à supressão de vários outros direitos, sobretudo daqueles, considerados pela ordem jurídica, nacional e internacional, como fundamentais, como o direito à vida, à integridade moral, à liberdade de expressão etc., até porque se é a política que constrói o direito, o direito, uma vez construído, não pode se constituir em obstáculo à evolução da racionalidade humana proporcionada pela ação política, até porque a democracia está abarcada no próprio direito como preceito constitucional fundante.O princípio de que ninguém está acima da lei, ademais, serve para que o poder não se ponha sobre a lei em atos opressores da expressão político-democrática, pois como também consignado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, cumpre ao Estado de Direito respeitar o exercício da ação política de natureza reivindicatória, “para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão”.A demonstrar, ainda, a natureza política da conduta adotada no evento da USP, que se apresentou, gravemente, como repressora das aspirações democráticas, é o fato, sabido por todos, de que a defesa da legalidade não é o guia condutor de boa parte de sociedade, incluindo as instituições envolvidas.A mídia tem deixado claro o descalabro da corrupção que assola o país (um fato, aliás, que não vem de hoje), situação esta, aliás, que decorre da ilegalidade – no sentido mais amplo de contrariedade aos preceitos constitucionais – de “convênios” do Estado com ONGs. Mas, nenhuma força policial foi mobilizada, com batalhões e helicópteros, sobre a Esplanada dos Ministérios para resgatar o dinheiro público desviado e efetuar a prisão dos culpados. E, é claro, que muito mais grave do que a ocupação da Reitoria da USP é o furto do dinheiro público. Mas, é provável que se a população ocupasse um daqueles prédios para exigir a imediata devolução do dinheiro público, que faz falta para construções de hospitais e escolas, fosse reprimida por decisão judicial de reintegração de posse, criminalizada e presa. Então, todo mundo fica indignado, mas não luta. E, assim, o crime compensa.Não se viu, também, força policial alguma na USP para fazer valer os direitos dos trabalhadores terceirizados, que foram “furtados” em suas verbas rescisórias de natureza alimentar. Ninguém sabe. Ninguém viu. E esses trabalhadores estão, até hoje, enfrentando a via crucis de processos judiciais intermináveis, para conseguirem, ainda sem sucesso, a satisfação de seus direitos...Não se verificou, igualmente, mesma eficiência e idêntica comoção social a respeito da trágica situação de 270 (duzentos e setenta) servidores aposentados da USP que, no final de 2010, foram dispensados do emprego por comunicação virtual, embora estivessem prestando serviços relevantes à Universidade há vários e longos anos.Há incontáveis casos de desrespeito reiterado, reincidente, da legislação trabalhista, que se pratica, sobretudo, pelas próprias instituições estatais (o Estado, nas suas mais variadas formas de Administração, é um dos maiores acionados em toda estrutura judiciária brasileira) e não há, como fácil perceber, uma reação social organizada e indignada contra isso e mesmo forças do próprio poder direcionadas para assegurar a efetividade plena dos direitos sociais.A exploração do trabalho infantil, em profusão, não é novidade para ninguém, e as formas de correção desse crime contra a humanidade, quando se põem, são amenas e ineficazes. Os casos de exploração do trabalho em condições análogas às de escravos se repetem ao ponto de se conhecerem escravagistas reincidentes e ninguém nunca foi preso por esse crime ou pagou indenizações vultosas pelo seu cometimento. A empresa Zara, que se utilizava do trabalho de pessoas em condições análogas às de escravo, não foi punida. Não houve ação policial exemplar nas lojas da Zara para apreender os produtos do crime. Muito ao contrário, boa parte da população continua mantendo cheias as lojas da referida empresa.Nas usinas de Jirau e Santo Antônio, no Estado de Rondônia, enquanto 80.000 trabalhadores eram agredidos em seus direitos humanos, sobretudo por adoção da prática da terceirização, o poder estatal não apareceu por lá, mas diante do ato de revolta praticados pelos trabalhadores logo o governo federal se fez presente, enviando ao local 600 homens da Força Nacional de Segurança e policiais federais, tendo havido, segundo o meio sindical, vôos rasantes de aviões e helicópteros sobre os canteiros de obras para intimidar os trabalhadores, invasões de soldados nos acampamentos durante a madrugada, seguidas de agressões aos trabalhadores, tendo havido até disparos de armas de fogo, resultando na prisão de mais de 33 trabalhadores na hidrelétrica de Jirau e mais de 80 na de São Domingos (http://www.ligaoperaria.org.br/1/?p=737).Não é alvo, ainda, de reações indignadas, o sucateamento das instituições públicas (postos de saúde, hospitais, escolas e creches), para o favorecimento da mercantilização desses serviços, que são ligados, no entanto, a direitos fundamentais, constituindo, portanto, responsabilidades essenciais do Estado, numa concepção de Direito Social. Some-se a isso a ausência de políticas públicas de emprego, que conduz à falta de oportunidades para milhares de jovens, que se vêem conduzidos à delinqüência ou às drogas.O fato, portanto, é que o “caso USP” envolveu questões muito mais intrigadas que o mero resgate da legalidade. As estruturas de poder do Estado e da Universidade valeram-se de aparente pretensão judicial para suprimir a liberdade de expressão, para aniquilar a democracia, para coibir práticas políticas reivindicatórias futuras, numa perspectiva tal que acabou indo muito além dos limites físicos da Universidade.Não se pode esquecer que o mundo vive, no momento presente, uma onda de manifestações populares: nos Estados Unidos (em New York, Washington, Chicago e Wisconsin), na Europa (Roma, Berlim, Paris, Bruxelas, Madri, Londres e Atenas), no Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia, no Japão.Em Madison, no Estado de Wisconsin, EUA, a sede do governo, o Capitólio, foi ocupada, em março deste ano. Após movimento popular espontâneo, sem deliberação prévia, em assembléia, por óbvio, milhares de pessoas ocuparam o local durante 17 dias, para reivindicar a retirada de um projeto de lei que pretendia reduzir impostos, visando a instalação de empresas no Estado, ao ponto de eliminar o superávit, e que buscava diminuir o poder dos sindicatos do setor público, de modo a praticamente eliminá-los.No evento, segundo Erik Olin Wright e João Alexandre Peschanski[2], “os manifestantes organizaram uma área aberta para pessoas virem e expressarem topo tipo de reivindicação ou revolta que quisessem, indo de análises de conjuntura sofisticadas aos desafios do dia-a-dia da vida compartilhada no Capitólio”. Informam, ainda, que “A ‘abertura’ do Capitólio significou que qualquer um podia entrar no edifício e dormir lá dentro. Estudantes, pessoas em situação de rua, professores, bombeiros, militantes do movimento ecológico e outras pessoas compartilharam o espaço, construindo um sentido único de comunidade”, tendo os ocupantes criado o “seu próprio coletivo de segurança”, buscando resolver questões com a Polícia e cuidando para que “o prédio estivesse na medida do possível limpo”. A comunidade em geral chegava a enviar comida para os ocupantes, pois ao longo dos dias as reivindicações se ampliaram e o tema da democracia tornou-se importante, reconhecendo-se que “o que estava em jogo no conflito não eram apenas os direitos dos trabalhadores nos sindicatos, mas o vigor dos processos democráticos”, além do incentivo a uma efetiva postura de solidariedade. Dentre as atividades, também lúdicas, que se desenvolveram no local, os participantes cantavam músicas como “Solidarity Foverer”, de Pete Seeger, para recobrar as inúmeras lutas operárias travadas naquele país. O evento, que terminou com uma desocupação negociada, sem violência, mobilizou um protesto, ainda em março, de mais de 100 mil pessoas em frente ao Capitólio, que “barrou”, temporariamente, a publicação da lei e repercutiu em outras mobilizações em Ohio, Michigan, Indiana e Maine...É evidente, portanto, que se tinha pleno conhecimento do caráter político do movimento que se iniciara na ocupação da Reitoria da USP e da sua potencialidade mobilizadora. Tinham, por óbvio, também essa noção os manifestantes. Não era, e nunca foi, um problema apenas de legalidade e de retomada da posse de um prédio invadido. A atenção dada pela mídia ao fato, igualmente, atesta essa relevância, para induzir que as forças repressivas considerassem a necessidade de uma forte e rápida ação. A operação realizada serviu, assim, ao propósito de amedrontar os movimentos sociais, valendo-se até mesmo do permissivo que lhe fora concedido pela opinião pública e da fragilidade do poder de resistência dos estudantes. Explica-se, assim, também, o fato de que após realizada a desocupação, helicópteros ficaram sobrevoando a cidade de São Paulo por algum tempo.Resta clara, pois, a natureza política da ação feita na USP, o que deve fazer toda a sociedade refletir sobre os possíveis efeitos a que todos estão submetidos pela repressão que se anuncia às formas políticas de manifestação da liberdade de expressão. Em certo sentido, o método utilizado para a desocupação do prédio teve a função de fazer uma ocupação em todas as mentes.Na perspectiva da relação entre o direito e a política, o que se deve perceber é a inaptidão do direito, visto na perspectiva liberal que prioriza a proteção da propriedade, para a solução de problemas estritamente políticos que envolvem reivindicações sociais e o equívoco da opção da Reitoria em judicializar o debate. A decisão judicial determinou a desocupação do prédio. O prédio está desocupado. Mas, os problemas que geraram o conflito não apenas ainda estão presentes, como se intensificaram.O que se viu na seqüência foi a realização de uma assembléia com cerca de 3.000 estudantes, que se uniram em torno das causas defendidas pelos alunos da ocupação e que deliberaram pela deflagração de uma greve geral, ainda que sob o requisito de ser aprovada em assembléias em cada unidade. Além disso, os professores da Universidade, em assembléia, deliberam apoiar os alunos em suas reivindicações, que trazem, no centro das preocupações, a necessidade de democratização da USP, repudiando os atos arbitrários de perseguição políticas que vem se perpetrando no local nos últimos anos. Em nota, a Associação dos Professores da USP pronuncia: “Assim, conclamamos todas as entidades, associações de trabalhadores, organizações de direitos humanos e aqueles que defendem as liberdades democráticas, ameaçadas pela escalada repressiva implantada pela Reitoria, a se manifestarem contra as medidas aqui denunciadas, que tolhem o direito de livre organização e expressão.”Na própria mídia, as manifestações de mero repúdio cederam lugar a análises mais responsáveis e críticas. Depois das irracionalidades produzidas, apresenta-se o momento da razão, para que se possa fazer a leitura mais ampla de todo o contexto da situação vivenciada na USP, deixando-se para traz as visões simplistas e até preconceituosas que tentam limitar o alcance do episódio à vontade de uns poucos alunos “mimados” de obterem o privilégio de fumar maconha, na universidade, sem serem incomodados pela polícia.Como concluíram Mauro Paulino e Alessandro Janoni[3], “A manifestação recente de estudantes da USP não é a brincadeira de criança que se tenta desenhar. Não se restringe ao debate sobre legalização das drogas ou estratégias de segurança pública. É um sintoma sério de crise de democracia”, vez que “as instituições tradicionais de representação do modelo hegemônico de democracia se distanciam da população, em especial dos jovens”, sendo que se é assim no “berço da classe média paulistana”, que é a USP, quanto mais o será, e de forma ainda mais preocupante, para o segmento alocado “nas franjas da cidade”.A realização, na última quinta-feira, de uma manifestação conjunta, organizada por estudantes, professores e servidores, com a presença de 5.000 pessoas em passeata pelo centro de São Paulo, que culminou um com ato na Faculdade de Direito, no Largo de São Francisco, onde 2.000 estudantes de pertencentes a praticamente todas as unidades da Universidade deliberaram pela continuidade da greve, também deixa claro a amplitude do problema a que se refere e que há, ainda, muitas lições a extrair da presente situação, para o devido aprimoramento de nossas estruturas democráticas.É preciso, portanto, tentar compreender os dilemas dos jovens e dos trabalhadores no atual estágio de desenvolvimento da sociedade e a dificuldade que possuem de conduzir suas reivindicações, sobretudo quando se trata de exprimir críticas mais contundentes ao modelo de sociedade, o que, gostem alguns, ou não, democraticamente, deve-se ter o direito de expressar.A radicalização do ato cometido pelos estudantes é fruto dessa falência e acabou sendo o meio capaz para pôr à mostra a radicalização repressiva, contrária ao diálogo, que está instaurada no seio da Universidade, refletindo, de certo modo, um sentimento intransigente de parte da sociedade em face dos movimentos sociais.A ira generalizada e preconceituosa que tombou sobre os estudantes foi, evidentemente, desproporcional e só se explica diante do contexto político apresentado, que estava velado, no entanto. E, afinal, para quê tanto ódio? Esses jovens, ademais, quebraram o estigma de uma juventude alienada, para lutar pelos seus interesses e não devem ser alvos de repúdio preconceituoso ou represália política, ainda que venha institucionalizada por vias processuais. Seu exemplo, ao contrário, deve constituir um alimento para vencermos os nossos medos e limites determinados pelas confortáveis posições que ocupamos na esfera social, a fim de que, dentro do princípio que norteia toda a ordem jurídica, o da solidariedade, compreendamos a essencialidade dos movimentos sociais, que só seriam despropositados ou inoportunos se nossa sociedade estivesse na plenitude da justiça social, mas, por certo, como é fácil perceber, não está.E, de todo modo, o debate apenas iniciou. Todo o ocorrido foi apenas o estopim para eventos mais importantes como difundir uma comoção pública de contrariedade ao desrespeito reiterado, praticado pelo próprio Estado e por alguns segmentos econômicos, aos direitos sociais e discutir os destinos da universidade pública, no sentido de constituir o ambiente apto a incentivar práticas democráticas e a produzir saber não apenas tecnológico, mas também crítico e propositivo, voltado, sobretudo, à melhoria da condição de vida dos diversos segmentos excluídos da população e dos economicamente menos favorecidos.Cumpre lembrar, a propósito, que se para alguns a manutenção das coisas como estão pode interessar, há incontáveis pessoas por aí, como diria Chico Buarque, que estão lutando contra a existência e cuja dor não sai no jornal.Agora, passados esses duros momentos advindos da irracionalidade, é hora de avançar nos debates, mantendo-se firme na defesa do direito de manifestação, para que os efeitos de toda essa grave situação não sejam destruidores de nossas possibilidades democráticas. Só isso nos permitirá continuar escrevendo uma trajetória da qual possamos nos orgulhar. Do contrário, para uma parcela considerável da nossa sociedade a história assim restará escrita: “Acossados pelos conquistadores espanhóis, depois de trezentos anos de luta, os araucanos se retiraram até àquelas regiões frias. Mas os chilenos continuaram o que se chamou “pacificação da Araucaína”, isto é, a continuação de uma guerra a sangue e fogo para desapossar nossos compatriotas de suas terras. Contra os índios todas as armas foram usadas com generosidade: disparos de carabina, incêndio de suas choças, e depois, de forma mais paternal, empregou-se a lei e o álcool. O advogado se tornou especialista também na espoliação de seus campos, o juiz os condenou quando protestaram, o sacerdote os ameaçou com o fogo eterno.” (Pablo Neruda, Confesso que Vivi).São Paulo, 16 de novembro de 2011.[1]. Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP.[2]. Os protestos de Wisconsin. In Revista Lutas Sociais. Vol. 25-26 (dez. 2010/ jun. 2011), do NEILS – Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais, ligado ao Programa de Estudos de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC/SP.[3]. Conflito na universidade é sintoma de crise democrática. Jornal Folha de S. Paulo, ed. de 13/11/11, p. C-3.

Defensoria Pública em Santa Catarina: o desafio da consolidação do Estado Democrático de Direito

Alessandro da SilvaDefensoria Pública em Santa Catarina: o desafio da consolidação do Estado Democrático de DireitoA Constituição Federal de 1988 refundou o Estado Brasileiro a partir de bases democráticas. A função jurisdicional foi uma das que mais recebeu atenção, com significativas modificações, o que revelou a intenção do constituinte de fortalecer o Estado Democrático de Direito.O Poder Judiciário foi transformado com ampliação de sua estrutura material e de pessoal, modificação da organização institucional e criação de mecanismos e instrumentos que visaram ampliar o acesso à Justiça e permitir a solução justa das lides, em prazo razoável.O Ministério Público também foi objeto de completa remodelação, pois deixou de ser arrolado como órgão do Poder Executivo, para figurar em um capítulo à parte daqueles destinados aos demais Poderes, como função essencial à justiça.Segundo Sepúlveda Pertence1, o Ministério Público foi: desvinculado do seu compromisso original com defesa judicial do Erário e a defesa dos atos governamentais aos laços de confiança do Executivo, está agora cercado de contraforte de independência e autonomia que o credenciam ao efetivo desempenho de uma magistratura ativa de defesa impessoal da ordem jurídica democrática, dos direitos coletivos e dos direitos da cidadania. Em explícita oposição ao período autoritário que a antecedeu, a Constituição Federal de 1988 declarou expressamente a existência de direitos sociais e individuais, como liberdade, igualdade, saúde, educação, moradia e segurança. Também estabeleceu como objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem pobreza e livre de preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.Preocupada não apenas em estabelecer uma declaração formal de direitos, a Constituição também previu uma série de medidas que buscaram dar efetividade a eles, como a ampliação do acesso à justiça.Mas não bastava garantir o mero acesso à via judiciária, já previsto nas Constituições anteriores, a Carta Cidadã buscou estabelecer o direito de acesso a uma ordem jurídica justa, que segundo Kazuo Watanabe2 compreende:1) o direito a informação e perfeito conhecimento do direito substancial e à organização de pesquisa permanente a cargo de especialistas e orientada à aferição constante da adequação entre a ordem jurídica e a realidade socioeconômica do País; 2) direito de acesso à justiça adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo de realização da ordem jurídica justa; 3) direito a preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a efetiva tutela de direitos; 4) direito à remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo à Justiça com tais características.Percebe-se que, além do acesso ao Judiciário, nesse novo modelo há destaque para a educação que visa dar conhecimento acerca dos próprios direitos e para o respeito aos direitos dos outros. Assim, o acesso à justiça pode ser encarado como o requisito fundamental - o mais básico dos direitos humanos - de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir e não apenas proclamar os direitos de todos3.Dessa forma, o acesso à ordem jurídica justa deve alcançar todos os cidadãos e não somente àqueles que podem pagar por orientação jurídica ou para o ajuizamento de ações, visto que cabe ao Estado prestar “assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (art. 5º, LXXIV, da CF).Para que o Estado pudesse cumprir com esse objetivo, a Constituição inovou ao criar a Defensoria Pública, “instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV” (art. 134).Percebe-se que o modelo de assistência jurídica aos necessitados por meio da Defensoria Pública é parte de um processo de afirmação da cidadania e consolidação da democracia, estabelecido na Constituição Federal de 1988.A adoção desse sistema foi objeto de profunda discussão durante a constituinte, tendo em vista a existência de outros modelos, como a defensoria dativa, no qual advogados indicados pela OAB prestam assistência judiciária. Portanto, não cabe mais questionar se a opção pela Defensoria Pública foi ou não a mais adequada.Como era de se esperar em um Estado Democrático de Direito, esse foi o caminho seguido pela imensa maioria dos entes federados da nossa República, com a nada honrosa exceção de Santa Catarina, único que ainda não instituiu a Defensoria Pública.Dentre outros argumentos menos consideráveis, o principal sustenta que o sistema de defensoria dativa cumpriria de maneira mais eficaz o dever de prestar assistência jurídica aos necessitados.O argumento é claramente equivocado, já que a Defensoria Pública vai além da mera atuação em processo judicial e também abrange o papel preventivo, de orientação e educação. Como instituição goza de autonomia funcional e administrativa, o que lhe permite inclusive atuar em face do poder público.Já a defensoria dativa é uma atividade pulverizada, sem uma diretriz de atuação definida, que se limita à assistência judiciária, pois os advogados somente recebem seus honorários do Estado se ajuizarem uma ação.De todo modo, essa discussão não tem sentido, pois se cada cidadão puder descumprir a Constituição com o singelo argumento de que tem uma solução melhor do que a por ela adotada, nosso Estado Democrático de Direito estará com os dias contados. A prevalecer a posição catarinense, logo teremos que admitir, por exemplo, que outro Estado possa extinguir o Ministério Público e transferir suas funções para os procuradores do estado.Ora, a escolha pelo modelo de Defensoria Pública já foi feita pela Constituição e cabe aos Estados cumprir o que ela estabeleceu!O fato é que em nosso estado até as pedras sabem que a grande resistência, até agora bem sucedida, à criação da Defensoria Pública, se dá pela cúpula local da OAB. A defensoria dativa é utilizada em grande medida como um meio de subsistência para advogados em início de carreira e sua manutenção serve de plataforma eleitoral nas eleições da seccional.O sistema também abastece os cofres da entidade, que fica com dez por cento de todos os valores pagos pelo Estado como honorários aos defensores dativos. São cerca de três milhões de reais anuais destinados à OAB a título de indenização pelas despesas com administração da defensoria dativa. Dinheiro público, cuja utilização não está sujeita a nenhum tipo de controle externo.Essa postura pequena, de um corporativismo mesquinho, contrária a explícitas manifestações de presidentes do Conselho Federal4, mancha a atuação da seccional da OAB em Santa Catarina e é incompatível com a grandeza dos posicionamentos que, ao longo da história, essa instituição assumiu.Essa conduta vai de encontro à postura de várias entidades com a quais a OAB, em regra, anda de braços dados na defesa das boas causas, pois a sociedade catarinense se organizou e apresentou na Assembleia Legislativa um projeto de lei de iniciativa popular, com 48 mil assinaturas, para criação da Defensoria Pública.Além disso, tramitam no Supremo Tribunal Federal duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade que têm por objeto o sistema de defensoria dativa adotado em Santa Catarina, sendo que na de número 3892 o Procurador Geral da República apresentou parecer no qual afirma que: A olhos vistos, no Estado de Santa Catarina se ignora o modelo constitucional de instituição autônoma funcional e administrativamente para a Defensoria Pública. Em suma, o Estado absolve-se, pelo sistema normativo que adota, do dever de prestar assistência jurídica aos necessitados, remetendo tal papel a organismo estranho ao corpo estatal. A obstinação de Santa Catarina em permanecer na ilegalidade faz lembrar a conhecida anedota da família que foi assistir a parada militar em que o rapaz desfilava. Quando o seu regimento passava, o pai não se conteve de orgulho e exclamou: “Puxa, no meio de tanta gente, o nosso filho é o único com o passo certo!”Também revela o tamanho do desafio que temos pela frente para criar e consolidar instituições que são essenciais à afirmação do Estado Democrático de Direito, em meio à resistência daqueles que, na expressão de Raymundo Faoro, ex-presidente do Conselho Federal da OAB, insistem em se considerar donos do poder5.1 Apud MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 602.2 WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. São Paulo: RT, 1988. p. 128.3 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2002. p. 11-12.4 Brasília, 17/11/2004 - O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato, defendeu hoje (17) a concessão de maior autonomia à Defensoria Pública, um dos itens da Reforma do Judiciário previstos para serem votados logo mais pelo Senado Federal. “A autonomia funcional e administrativa para a defensoria pública é perfeitamente cabível. Mais do que cabível, é necessária”, afirmou Busato, certo do avanço do Senado também neste campo. (...) In “Busato defende maior autonomia para Defensoria Pública”. http://www.oab.org.br/noticia.asp?id=3180.Brasília, 25/02/2007 – (...) Na ocasião, Brito também lembrou que é do Estado a tarefa de garantir o acesso à Justiça e, por meio das defensorias públicas, assegurar assistência aos mais necessitados. E garantiu que a OAB cobrará esses compromissos. In “Defensores Públicos agradecem apoio de Cezar Britto”. http://www.oab.org.br/noticia.asp?id=9086.5 Cf. FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Globo, 2001.

  • Início
  • Anterior
  • 9
  • 10
  • 11
  • 12
  • 13
  • 14
  • 15
  • 16
  • 17
  • 18
  • Próximo
  • Fim
Página 14 de 20

logo horizontal branco

Reunir institucionalmente magistrados comprometidos com o resgate da cidadania do juiz, por meio de uma participação transformadora na sociedade.

Rua Maria Paula, 36 - 11º andar, Conj.B
Bela Vista, São Paulo-SP, CEP: 01219-904
Tel.: (11) 3242-8018 / Fax.: (11) 3105-3611
juizes@ajd.org.br

 

Aplicativo AJD

O aplicativo da AJD está disponível nas lojas para Android e IOs. Clique abaixo nos links e instale:

google

apple

Juízes para a Democracia © 2019-2023 Todos os direitos reservados.

logo

  • Início
  • Sobre nós
    • Quem somos
    • Conselho
    • Núcleos
    • Estatuto da AJD
    • Aplicativo AJD
    • Política de Privacidade
  • Notícias
  • Podcasts
  • Documentos
    • Atividades do Conselho
    • Cidadania
    • Voto e Cidadania
    • A AJD em juízo
  • Decisões
    • Eleitoral
    • Penal
    • Trabalho
    • Administrativo
    • Cível
    • Consumidor
    • COVID-19
    • Povos indígenas e comunidades tradicionais
    • Juros e correção monetária na JT
  • Artigos
  • Publicações
    • Jornal
    • Revista
  • Eventos