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COVID-19, o curto-circuito do capital e a rede de solidariedade

Artigo publicado originalmente no site da revista Carta Capital, no dia 23 de março de 2020. ***** Não há sociedade capitalista que subsista sem circulação de riquezas. “Solidão apavoratudo demorando em ser tão ruimmas alguma coisa aconteceno quando agora em mim”… – Caetano Veloso A COVID-19 está impondo à humanidade uma mudança radical na forma de viver e conviver socialmente. Não é pouco. Não se compara a outras epidemias enfrentadas recentemente. Ninguém da nossa geração ou da geração de nossos pais ou filhos havia vivenciado situação similar. Estamos confinados. Estamos apavorados diante de um vírus, cujos feitos não são completamente conhecidos. Em Porto Alegre, e certamente em outras cidades também, carros de som circulam com mensagens que lembram filmes sobre futuros distópicos: “fiquem em casa, não se contaminem, não saiam às ruas”. Multiplicam-se imagens de policiais obrigando as pessoas a voltarem para a casa ou de moradores de rua abordando os passantes para suplicar auxílio. As ruas constituem o local público por excelência. O espaço em que o reconhecimento do outro se faz real, em que enxergamos pessoas que vivem realidades diversas da nossa, praticamos empatia, exercemos nossa humanidade. É também o espaço em que a maioria de nós coloca seu corpo e sua alma à venda, em troca da remuneração que lhes permite comer, vestir e morar. Mas o espaço público está proibido. Em algumas cidades do sul do país barricadas de pedras impedem o acesso dos carros a alguns locais. A lógica do inimigo interno, sustentada de modo irresponsável por parte da imprensa e de nossos governantes nos últimos anos, hoje é potencializada diante da ameaça concreta da pandemia. Há um tanto de histeria e de descolamento da realidade, seja nos discursos terroristas que levam pessoas a estocar alimentos, comprar remédios que não combatem o vírus ou fazer barricadas, quanto naqueles habitados por pensamentos mágicos, para os quais nada de mal pode acontecer. Não estamos enfrentando uma “gripezinha” e referir-se à COVID-19 desse modo revela apenas despreparo e ignorância. A verdade é que a pandemia nos surpreende em um momento no qual já nos sentíamos desamparados. O medo dos efeitos desse novo vírus soma-se ao desespero de ter um trabalho precário e, portanto, ver-se sem condições de programar minimamente a vida. Soma-se ao medo da agressão cotidiana. No ano passado, ouvi uma ativista, mulher, negra, líder de movimento social, expor com lágrima nos olhos sua experiência de medo: medo de que seus netos e seus amigos não voltem para casa, sejam mortos ou agredidos simplesmente por existirem. Por existirem e serem negros. Por existirem e serem gays. Por existirem e serem mulheres. Por existirem e serem índios. Por existirem e serem pobres. Esse medo agora está generalizado e pode provocar uma histeria coletiva, se o risco real da COVID-19 não for afrontado com seriedade. É claro que a ameça viral não afeta todas as pessoas do mesmo modo. Quem tem medo e enclausura-se em casa, não experimenta o mesmo desamparo de quem precisa seguir pegando ônibus e indo trabalhar em supermercados, condomínios, farmácias, hospitais. Também não compartilha o medo de quem de repente se vê sem trabalho: manicures, cabelereiras, diaristas, prostitutas, motoristas de aplicativo, camelôs, vendedores ambulantes, massagistas, são pessoas para as quais a quarentena não implica apenas o confinamento; representa a perda concreta das condições de subsistência. Se alguns de nós podem realmente, não sem sacrifício da saúde psíquica, confinar-se em casa, a verdade é que muita gente segue tendo de sair às ruas e lutar para sobreviver. Quem segue trabalhando, expõe-se como escudo humano para que muitos de nós permaneçamos em casa, abrigados, acompanhando a evolução das notícias sobre a pandemia. Os que não saem porque seus clientes estão assustados e confinados, deparam-se com a possibilidade concreta da falta: de dinheiro para pagar casa, água, luz, energia, alimentos. Esses até gostariam de se expor, se isso ao menos lhes garantisse a sobrevivência. Ao medo da contaminação soma-se então o medo das carências objetivas que uma sociedade baseada na troca de trabalho por capital impõe à maioria absoluta das pessoas. Se nossos medos têm intensidade diversa e nos colocam em perspectivas diferentes diante de uma ameaça comum, é importante perceber o que nos une: de diferentes formas, estamos todos destinados a compreender que um novo começo se revela. A COVID-19 pode mesmo ser uma oportunidade para repensarmos a forma de convívio com os outros e com a natureza. Talvez marque o início de uma nova era, em que haja o efetivo reencontro dos seres humanos com tudo aquilo que os torna humanos e, portanto, seres sociais. Antes disso, porém, muita gente passará fome e será infectada. Muita gente morrerá por causa de um vírus que sequer deveria existir. Muita gente morrerá de fome. Muita gente padecerá pela ausência de condições mínimas para viver com dignidade. Os mais atingidos serão os mais vulneráveis, mas todos sentiremos o efeito do esfacelamento do tecido social. Por isso mesmo, nosso enfrentamento não pode ser passivo, nem individual. É preciso agir, de forma concreta e coletiva. Individualmente, precisamos seguir pagando os profissionais, cujos serviços utilizávamos com regularidade. Não despedir; dispensar do trabalho e garantir o salário. Reduzir as margens de lucro e os preços dos produtos de consumo necessário. Coletivamente, precisamos impedir as despedidas, as reduções de salário. Precisamos investir nas universidades públicas, para que sigam desenvolvendo estudos que compreendam e enfrentem mais essa ameaça à vida humana na terra. Precisamos determinar a utilização de hospitais privados para que atendam a demanda pública, investir em prevenção e desenvolvimento de remédios e aparelhos que nos habilitem a sobreviver ao vírus. O exato contrário do que propõe a MP 927, editada ontem pelo governo federal, ao estabelecer possibilidade de extensão de jornada por mais de 12h para profissionais da saúde, autorizar afastamento não remunerado de empregados em quarentena ou dispor que a infecção por coronavírus não constitui doença profissional. Podemos e devemos exigir que nossas autoridades não apenas parem de minimizar a pandemia e de agir com irresponsabilidade, mas também adotem medidas radicais de distribuição efetiva de renda e de proteção à saúde da população. É inadmissível que diante de um quadro de pandemia, siga-se sorrateiramente votando desmanche de direitos sociais como aquele representado pelo texto da MP 905 ou propondo falsas soluções, como a da redução de salários de servidores e mais retiradas de direitos sociais, como é o caso da MP 927, que aposta no caos, pois a retirada de salários e a extensão de jornadas não terá efeito outro que promover ainda mais adoecimento e morte. Enquanto outros países enfrentam a COVID-19 fixando pagamento de renda mínima e dificultando as dispensas, as autoridades brasileiras atuam com oportunismo, tentando fazer da pandemia mais uma desculpa para justificar sua agenda ultraliberal. Reduzir salário ou despedir gerará um efeito dominó de proporções catastróficas, especialmente para quem empreende e gera emprego em nosso país, pois significa, concretamente, retirar capacidade de consumo, incentivar a violência urbana e potencializar o adoecimento. A hora é de fixar renda mínima de pelo menos R$ 4.366,51 a quem não consegue receber isso por mês, já que se trata, segundo o DIEESE, do mínimo necessário para viver com decência. E se o governo não tem condições financeiras para isso, que exija contribuição das empresas que lucraram enquanto toda a classe trabalhadora perdia direitos. As instituições financeiras tiveram lucro de R$ 22,73 bilhões, apenas no segundo trimestre de 2019. É hora, portanto, de exercerem sua função social, doando compulsoriamente valores a serem distribuídos entre os milhões de brasileiros e brasileiras que estão sem condições de viver com dignidade. Entre as empresas mais lucrativas do mundo, está o Walmart. Por que então não exigir que contribua, distribuindo gratuitamente produtos de higiene e alimentação à população brasileira, em momentos de crise como esse que estamos enfrentando? O certo é que reduzir salários ou seguir com o desmanche de direitos sociais é acelerar as consequências sociais destrutivas dessa pandemia. Não há sociedade capitalista que subsista sem circulação de riquezas. Cruzar os braços e lamentar o fechamento de empresas e o aumento do número de despedidas não nos auxiliará a superar a crise. Assim como não nos auxiliará a edição de medidas de exceção como a MP 927, tornando ainda mais precária condição de quem vive do trabalho. É preciso pensar propostas, como a regulação imediata do imposto sobre grandes fortunas, já previsto em nossa Constituição. É claro que nada disso substitui o fato inconteste de que essa pandemia é o aviso mais cristalino e objetivo possível de que esgotamos as possibilidades do sistema do capital. É preciso reorganizar-se sobre novas bases, efetivamente voltadas à distribuição igualitária de riquezas, à produção consciente e ao respeito ao meio ambiente. Mesmo que a pandemia seja contornada, é preciso muita ingenuidade para acreditar que outras não virão, que deixaremos de ser responsabilizados pela atitude egoísta e predatória com que agimos em relação aos nossos pares e a nossa casa. Agir é indispensável. Agir com empatia, solidariedade e, sobretudo, tendo noção das consequências das nossas escolhas, pois elas determinarão nosso futuro próximo e até mesmo a possibilidade concreta de que haja algum futuro para nossas filhas, filhos netas e netos. ***** VALDETE SOUTO SEVEROÉ Presidenta da AJD - Associação Juízes para a Democracia. Diretora e Professora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS; Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e Juíza do Trabalho.

Coronavírus: entre a solidariedade, a razão, a irresponsabilidade e os oportunismos

Artigo publicado originalmente no site do desembargador Jorge Luiz Souto Maior, do TRT-15, no dia 20 de março de 2020. ***** O Coronavírus (que, segundo alguns, é obra do demônio contra a ordem divina; para outros, uma invenção da China para dominar o mundo, ou dos EUA, para impedir o avanço econômico da China; para tantos outros, dependendo da respectiva posição ideológica, nada além do que uma criação das forças econômicas mundiais para favorecer a adoção de políticas de choque neoliberais, ou uma orquestração da esquerda, para gerar crise sistêmica; isso sem falar daqueles que desdenham a questão, dizendo que não passa de uma histeria midiática, e, então, cumprimentam pessoas em local público, para, logo em seguida, aparecerem em coletiva usando máscaras, mas tirando-as o tempo todo) é um fenômeno real que, independentemente de onde tenha partido e como tenha sido concebido, já ceifou milhares de vidas mundo afora e que, sem controle, pode conduzir a humanidade ao caos. Diante da situação, a humanidade clama pela razão! Não é com oportunismos, dissimulações, simulacros, disfarces, disputas ideológicas, fanatismos e desprezo ao conhecimento e ao raciocínio lógico e altruísta que se vai conseguir encontrar alguma solução para o problema, que, claro, em cada país, ainda se soma a tantos outros diversos e peculiares. No caso do Brasil, durante muito tempo se desprezou a questão social e, agora, com a pandemia, tem-se a oportunidade de perceber que o que acontece na Rocinha ou em Paraisópolis atinge quem mora no Leblon ou nos Jardins. Na história recente brasileira, aproveitou-se de circunstâncias políticas dadas para levar adiante um projeto que viabilizasse maiores lucros a grandes conglomerados econômicos, mas por meio da disseminação de fórmulas de precarização no trabalho, destruição de serviços públicos, inclusive de saúde e de previdência social, levado adiante, inclusive, com desprezo das políticas públicas, favorecendo a formalização de privatizações predatórias. Tudo em nome da “modernidade”, de uma tal “eficiência administrativa” e de um milagroso “sucesso econômico”. Agora, diante dos efeitos concretos e insofismáveis da pandemia, já é possível compreender que o serviço público de saúde é fundamental para a vida de todos; que a precarização do trabalho, sobretudo em momentos de crise verdadeira (ao contrário do que se dizia, pois utilizavam a crise econômica – falseada – como fundamento para introduzir formas precárias de trabalho) conduz pessoas à perda total de condições de sobrevivência, o que acaba interferindo na vida de todas as demais pessoas. Vejam que o próprio governo que incentivou a precarização, como forma de salvar a economia, agora diz que vai “dar” dinheiro para quem foi precarizado e os que estão na informalidade (mas as possibilidades de êxito estrutural da medida são mínimas)[i]. Neste novo contexto, acelerado pelo Coronavírus, o papel do Estado, como assegurador da vida de todos os cidadãos, e das políticas públicas, necessárias à efetivação das obrigações do Estado, é recobrado, sendo incontestável e plenamente sólido descartar a crença (quase medieval) de que a mera soma das vontades individuais e livremente manifestadas de pessoas economicamente desiguais, cujas condições de vida, como se pode ver, produzem resultados recíprocos no item sobrevivência, seja capaz de ser tomada como base da vida em sociedade. As palavras de ordem, novamente, são: solidariedade, responsabilidade social dos setores políticos e econômicos, reafirmação das práticas e instituições democráticas, com reforço das forças populares e classistas, cuja voz e interesses precisam, essencialmente, ser ouvidos e atendidos. A cada um de nós, individualmente, cumpre, portanto, um papel altamente relevante de exercitar a mente para a busca de raciocínios que permitam visualizar o que se passa ao redor e, assim, contribuir para a busca de soluções. O mínimo que se espera, em termos de tomada da razão como guia de pensamento e do agir, é a coerência. A falta de coerência é reveladora das falácias dos argumentos e de seus reais propósitos, demonstrando, por consequência, a ineficácia de uma medida proposta, que, no caso de pandemias, não é apenas um problema de ineficácia, representando, isto sim, um sério, irresponsável e, por que não dizer, criminoso ato que promove o agravamento dos problemas. É dentro desse contexto que se deve visualizar como incoerente e, portanto, criminosa, a postura da Comissão Especial do Congresso Nacional que, no meio de toda essa crise, em 17 de março último, aprovou o relatório da MP 905[ii], que institui a tal Carteira Verde e Amarelo, a qual conduz as relações de trabalho, de forma generalizada, ao nível da total informalidade, ainda mais sabendo-se, como se sabe ou se deveria saber, que a adoção de medidas como esta geram impactos negativos na arrecadação pública, cujo orçamento é essencial, exatamente, para a adoção das políticas sociais de saúde. Mas, ainda mais grave é o anúncio do governo, divulgado ontem (19 de março), sob o silêncio conivente da grande mídia, de que vai “permitir corte de salário e jornada dos trabalhadores pela metade”[iii], atendendo, inclusive, uma demanda expressa da Confederação Nacional das indústrias (CNI)[iv]. Ora, até alguns dias atrás, como modo de justificar a “reforma” trabalhista, se falava em “modernização” das relações de trabalho, marcada pela não intervenção do Estado, a eliminação do “paternalismo”, na necessidade de homenagear a vontade livre das partes e, agora, o que se propõe, de forma contundente, é uma intervenção do Estado, superando a negociação coletiva com os sindicatos, de modo a utilizar a força do Estado para fazer prevalecer a vontade de uma das partes, a das empresas, e isso, segundo se diz, por uma questão que seria de interesse nacional. A incoerência é que, agora, o que se deseja é que a intervenção do Estado prevaleça sobre o negociado, que, aliás, é simplesmente desprezado. A coerência, há de se reconhecer, está no pressuposto de que tanto nas propostas anteriores como na que ora se apresenta a suposta defesa dos superiores interesses da economia se dá pelo sacrifício dos trabalhadores. No primeiro caso, os trabalhadores, diante das condições materiais favoráveis ao capital, estavam “livres” para abrir mão de seus direitos. No segundo, estão obrigados a suportar esses sacrifícios. A questão é que, do ponto de vista jurídico, as duas proposições estão erradas, sendo certo que a complementação da proposta, prevendo que trabalhadores que ganham até 2 salários-mínimos e que tenham seus salários reduzidos recebam 25% do seguro-desemprego[v] não repara a irregularidade jurídica e, ainda, reforça a sua incoerência, vez que, concretamente, representa uma atitude paternalista no sentido da utilização de dinheiro púbico para facilitar a vida das empresas em sua relação econômica e jurídica com os trabalhadores. No quadro em que não se denotam anomalias econômicas graves, o que prevalece é o princípio da progressividade, que fundamenta a utilização dos institutos jurídicos trabalhistas na busca da melhoria da condição social e econômica de trabalhadores, com reflexos positivos na economia e na vida em geral. O patamar mínimo legalmente estabelecido serve como parâmetro para evitar que ações individuais e o exercício localizado do poder econômico sejam utilizados de maneira negativa e isso force toda a cadeia produtiva em direção de uma competitividade destrutiva da coesão social. Para situações de crise estrutural e, portanto, real, em que o sistema como um todo está na beira do caos, conforme se apresenta no presente momento (e não no caso de crises meramente especulativas e cíclicas), a ordem jurídica até prevê a possibilidade de redução de direitos, mas sempre por meio de negociações coletivas. Em texto publicado, em janeiro de 2009, apresentei os marcos dessa negociação, conforme pode ser visualizado em https://www.migalhas.com.br/depeso/76615/negociacao-coletiva-de-trabalho-em-tempos-de-crise-economica.[vi] Resumidamente, uma negociação coletiva (e somente ela), estabelecendo, pelo menos, redução proporcional dos ganhos de diretores e acionistas, fixada com prazo determinado, poderia, em tese, propor uma redução emergencial de salários e de jornada. A negociação coletiva seria também importante para que a situação de crise não fosse utilizada como forma de redução definitiva do patamar dos direitos trabalhistas e, para que, retomada a situação anterior. E para que se pudesse chegar a uma negociação neste sentido não caberia invocar os dispositivos dos artigos 501 a 504 da CLT, para conferir ao empregador o argumento, supressivo da necessária boa-fé que deve estar na base de toda negociação jurídica, de que, sem a efetivação do acordo de redução, poderia efetuar a dispensa coletiva de seus trabalhadores com pagamento pela metade da indenização a que estes teriam direito no caso de cessação imotivada, eis que estes são alguns dos pouquíssimos dispositivos da CLT que não foram alterados desde 1943 e, como diziam os adeptos da “reforma”, estão obsoletos, até porque perderam eficácia jurídica diante dos termos expressos da Constituição, que exige negociação coletiva para a retração emergencial e temporária de direitos, o que não pode, portanto, se dar por iniciativa unilateral do empregador, mesmo no que tange à cessação do vínculo ou ser utilizado como demonstração de poder para impor sua vontade aos trabalhadores, viciando, assim, o negócio jurídico que daí advenha. O problema concreto é que na recente “reforma” trabalhista o setor econômico impôs um esfacelamento, por asfixia financeira, da organização sindical, a qual precisa, portanto, urgentemente, ser reinventada, superando, inclusive, os limites das categorias profissionais e econômicas legalmente determinadas, já que o requisito de validade dos acordos coletivos é a existência de sindicatos legítimos, que, de fato e de direito, representem os efetivos interesses dos trabalhadores. No caso da redução de ganhos em situação de crise, um acordo deveria, necessariamente, ser aprovado em democrática e regular assembleia, prevendo, ainda, as condições para a retomada dos patamares social e econômico aplicáveis no momento da formalização do ajuste, pois não é de mera renúncia, em razão do estado de extrema necessidade, que se trata. Mas a destruição dos sindicatos não possibilita vislumbrar uma generalizada legitimidade procedimental democrática mínima para esse tipo de negociação. Com a “reforma” trabalhista foram destruídas as bases mínimas das relações jurídicas entre o capital e o trabalho no Brasil, o que favorece, agora, a um agravamento ainda maior da situação econômica e da coesão social. Exige-se, pois, a revogação do passo dado e não reiterar no erro e promover o seu aprofundamento. Quem, com a verdade expressa no coração e na mente, quer ser atendido por trabalhadores precarizados, sem preparação técnica, mal remunerados e sem compromissos institucionais e duradouros com a entidade prestadora de serviços? Pois é, mas foi esse tipo de serviço e de condição social, econômica e humana que a “reforma” generalizou e do qual alguns, de forma irresponsável, no meio da crise, querem se valer, alastrando ainda mais os riscos. Presenciando os efeitos concretos de uma crise plena, faz-se necessário superar os limites estritos dos dispositivos legais citados e lembrar que o vínculo jurídico básico que une os seres humanos em sociedade, no Estado Social Democrático de Direito, instituído após as duas guerras mundiais, é a solidariedade, da qual se extrai o princípio de que todos, individualmente, têm responsabilidade com a vida alheia, já que, como expresso na exposição de motivos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, para se falar em dignidade, liberdade, justiça e paz é preciso reconhecer todos os seres humanos como “membros da família humana”, com direitos iguais e inalienáveis, decorrendo daí a obrigação primária, inscrita no art. 1º da mesma Declaração, de que: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.” Daí porque não cabe em momento de pandemia invocar o direito subjetivo de aumentar o sofrimento alheio, impondo-lhe o desemprego ou a redução de salário. Agir desse modo, inclusive, frustra qualquer expectativa de preservação de humanismo nos seres humanos, além de não ser, como dito, uma atitude juridicamente válida. Às empresas, ademais, cabe a responsabilidade social mínima de não alastrar o caos, conduzindo pessoas ao desemprego ou impondo redução de salário como condição de manutenção do emprego, sem qualquer tipo de ajuste negocial neste sentido. Dito de forma mais clara, manutenção do emprego e preservação do salário constituem a responsabilidade social, jurídica e econômica mínima que se exige neste momento, podendo-se, para tanto, conceber auxílios estatais, notadamente a pequenas empresas, conforme já verificado, inclusive, em outros países[vii]. E mais jurídica e humanamente insustentável é a atitude de alguns empregadores, cujo empreendimento ou serviço não está vinculado a atividades necessárias à preservação da vida, de exigir a continuidade dos serviços, expondo em grave risco a vida dos trabalhadores (e, sobretudo, dos terceirizados), como se tem verificado, por exemplo, em alguns setores administrativos da Universidade de São Paulo e em alguns tribunais. Não é apenas de sensibilidade e compaixão que se fala, portanto. É de obrigações jurídicas sociais a todos impostas, sobretudo, em momento de efetiva crise humanitária. E no feixe de relações obrigacionais, não cabe ao Estado estimular práticas supressivas da solidariedade, ainda mais favorecendo à imposição de maiores sacrifícios aos que, historicamente, já foram bastante sacrificados. A história ensina que nos momentos de crise profunda o pior que se pode fazer é afundar com ela. Vale lembrar que as bases do Estado Social e as formas jurídicas voltadas à produção e à distribuição da riqueza foram estabelecidas em momento de crise profunda da humanidade. Assim, reduzir esse patamar não serve ao plano de superação da crise. Por isso, precisamos estabelecer novas formas de distribuição da riqueza historicamente e socialmente construída e não impor sacrifícios àqueles que a conceberam, pois há um ser humano por trás da força de trabalho e, por conseguinte, de tudo que é produzido ou realizado. Ademais, políticas estatais impositivas de sacrifícios só teriam algum argumento de legitimidade se não se voltassem, de forma seletiva e discriminadamente, a um único grupo social, mantendo os padrões da desigualdade social dos quais as crises se retroalimentam. Assim, qualquer tentativa de diminuir os efeitos da crise, assumindo a necessidade de sacrifícios individuais (sociais e econômicos), só poderia, do ponto de vista estritamente jurídico, ser levada a efeito com a generalização das imposições, exigindo maior sacrifício daqueles que mais se beneficiaram do modo como as relações sociais historicamente se institucionalizaram. Definitivamente, não é possível sequer pensar em impor ou mesmo estimular o sacrifício de salários a trabalhadores terceirizados, empregadas domésticas e demais trabalhadores e servidores em geral, enquanto mantidos inalterados os ganhos do presidente da República, dos senadores, dos deputados, dos ministros de Estado, dos ministros do Supremo, de magistrados, dos bancos, dos grandes conglomerados econômicos e de toda uma estrutura que, ao longo dos tempos, instrumentalizou a produção e a preservação de desigualdades sociais e favoreceu a exploração predatória do trabalho, o qual, como a pandemia revela e Guedes reconhece, é a verdadeira fonte de todo valor, pois sem o trabalho a economia entra em colapso[viii]. De todo modo, a retração das conquistas sociais não pode nos guiar, até porque isso só servirá para aumentar o sofrimento coletivo e agravar ainda mais os elementos da crise. A enorme dificuldade econômica que muitos empregadores (grandes, médios e pequenos) vão passar nesse momento precisa ser enfrentada com responsabilidade, para que das soluções buscadas se possam extrair as bases sociais, filosóficas, econômicas, mentais e sinceras que são essenciais a qualquer tipo de projeto que vise conferir viabilidade à vida humana na Terra. O coronavírus lançou um desafio enorme a todos nós, qual seja, o da superação do estágio de alienação a que fomos conduzidos na sociedade de consumo, da concorrência e do individualismo egoísta e reificado. Dentre os diversos riscos existentes, está o de perdemos a chance para essa reflexão e, com isso, buscarmos soluções para os nossos problemas por meio do sacrifício alheio, além de culparmos os outros pela situação, de modo a estimular atitudes ainda mais desagregadoras e instigadoras de conflitos que, ao mesmo tempo, promovem um maior afastamento do tão desejado humanismo que se espera existir em todos os seres humanos. Como conferir efeitos concretos e verdadeiros à solidariedade, ao humanismo e à razão? Eis o desafio. Precisamos vencer esse desafio, pois, do contrário, ele nos terá vencido, qualquer que seja o resultado numérico de vítimas. E para promovermos a razão é preciso ouvir, compreender, refletir, tolerar e se expressar com respeito e sinceridade teórica e coerência prática. Não possuem, portanto, qualquer validade jurídica ou apoio em preceitos humanísticos mínimos, as propostas que tentam impor, ainda mais de forma unilateral e violenta, redução de ganhos aos trabalhadores (tanto no setor privado, quanto no setor público), suprimindo o agora sim necessário diálogo social. A atuação pública jurídica, social e economicamente válida e responsável, exige medidas que se voltem à distribuição da riqueza histórica, socialmente construída e que se acumulou nas mãos de muito poucos. Medidas que, inclusive, devem ser adotadas em contexto de generalização, visualizando restrições econômicas com relação àqueles que (sobretudo grandes empresas, bancos e altos escalões das estruturas públicas e privadas) ocupam posições privilegiadas no seio social (fincadas, inclusive, em uma histórica desigualdade). Devemos, sobretudo neste momento, fincar um não ao retrocesso social, até porque essa lógica de retração de direitos, de forma oportunista, tenderá a se perenizar. E tudo isso considerando-se o ponto de vista estritamente jurídico e objetivado, tomando como parâmetro a preservação desse modo de produção e da sociedade que lhe é consequente, sem adentrar, portanto, outra discussão altamente necessária em torno da real viabilidade desse modelo para a vida humana, sobretudo, diante da verificação dos seus limites ecológicos, econômicos, sociais, políticos e racionais que, com a pandemia, saltam aos olhos, notadamente, quando, mesmo em grave contexto, oportunismos ligados a interesses seletivos e à preservação das desigualdades insistem em conduzir as políticas públicas e não se incomodam com o sofrimento alheio. São Paulo, 20 de março de 2020. ***** [i]. https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/guedes-anuncia-voucher-de-r-200-para-trabalhador-informal/[ii]. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/17/comissao-aprova-relatorio-da-mp-do-contrato-de-trabalho-verde-e-amarelo.htm[iii]. https://economia.uol.com.br/noticias/afp/2020/03/18/governo-autorizara-reducao-de-jornada-de-trabalho-e-de-salarios.htm[iv]. https://www.terra.com.br/economia/cni-apresenta-37-propostas-de-medidas-para-atenuar-efeitos-da-crise,3c0e560fdf754b81cc39aee367af4642pkwbdug8.html[v]. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/19/empregado-que-tiver-reducao-de-jornada-recebera-r-250-do-seguro-desemprego.htm[vi]. “É totalmente equivocado, desse modo, considerar que acordos e convenções coletivas de trabalho possam, sem qualquer avaliação de conteúdo, reduzir direitos trabalhistas legalmente previstos, simplesmente porque a Constituição previu o “reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho” (inciso XXVI, do art. 7º) e permitiu, expressamente, por tal via, a redução do salário (inciso VI, art. 7º), a compensação da jornada (inciso XIII, art. 7º) e a modificação dos parâmetros da jornada reduzida para o trabalho em turnos ininterruptos de revezamento (inciso XIV, do art. 7º).Ora, o artigo 7º, em seu ‘caput’, deixa claro que os incisos que relaciona são direitos dos trabalhadores, ou seja, direcionam-se a um sujeito específico, o trabalhador, não se podendo entendê-las, conseqüentemente, como algum tipo de proteção do interesse econômico dos empregadores. Além disso, as normas são, inegavelmente, destinadas à melhoria da condição social dos trabalhadores.Não se pode ver nos preceitos fixados nos incisos do art. 7º os fundamentos jurídicos para fornecer aos empregadores a possibilidade de, por um exercício de poder, induzirem os trabalhadores, mesmo que coletivamente organizados, a aceitarem a redução dos direitos trabalhistas legalmente previstos, ainda mais quando tenham sede constitucional e se insiram no contexto dos Direitos Humanos.O inciso VI, do art. 7º, por exemplo, que cria uma exceção ao princípio da irredutibilidade salarial, permitindo a redução do salário, e nada além disso, por meio de negociação coletiva, insere-se no contexto ditado pelo ‘caput’ do artigo, qual seja, o da melhoria da condição social do trabalhador e não se pode imaginar, por evidente, que a mera redução de salário represente uma melhoria da condição social do trabalhador. Assim, o dispositivo em questão não pode ser entendido como autorizador de uma redução de salário só pelo fato de constar, formalmente, de um instrumento coletivo (acordo ou convenção).A norma tratada, conseqüentemente, só tem incidência quando a medida se considere essencial para a preservação dos empregos, atendidos certos requisitos. A Lei n. 4.923/65, ainda em vigor, mesmo que parte da doutrina assim não reconheça, pois não contraria a Constituição, muito pelo contrário, fixa as condições para uma negociação coletiva que preveja redução de salários: redução máxima de 25%, respeitado o valor do salário mínimo; necessidade econômica devidamente comprovada; período determinado; redução correspondente da jornada de trabalho ou dos dias trabalhados; redução, na mesma proporção, dos ganhos de gerentes e diretores; autorização por assembléia geral da qual participem também os empregados não sindicalizados.A própria Lei de Falência e Recuperação Judicial, n. 11.101/05, de vigência inquestionável, parte do pressuposto ao respeito à política de pleno emprego, à valorização social do trabalho humano e à obrigação de que a livre iniciativa deve assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social.A recuperação judicial é um mecanismo jurídico, cuja execução compete ao Estado, por intermédio do Poder Judiciário, e tem por finalidade preservar as empresas que estejam em dificuldade econômica não induzida por desrespeito à ordem jurídica e que tenham condições de se desenvolver dentro dos padrões fixados pelo sistema, tanto que um dos requisitos necessários para a aprovação do plano de recuperação é a demonstração de sua ‘viabilidade econômica’ (inciso II, do art. 53, da Lei n. 11.101/05).O art. 47, da Lei n. 11.101/05, é nítido quanto a estes fundamentos: ‘A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.’ (grifou-se)Fácil verificar, portanto, que tal lei não se direciona à mera defesa do interesse privado de um devedor determinado. A lei não conferiu um direito subjetivo a quem deve, sem se importar com a origem da dívida e a possibilidade concreta de seu adimplemento. Não estabeleceu, conseqüentemente, uma espécie de direito ao “calote”, até porque sem a possibilidade concreta de manter a atividade da empresa com base em tais postulados esta deve ser conduzida à falência (art. 73, da Lei n. 11.101/05).O que há na lei é a defesa das empresas numa perspectiva de ordem pública: estímulo à atividade econômica, para desenvolvimento do modelo capitalista, preservando empregos e, em conformidade com a Constituição, visualização da construção de uma justiça social.A lógica do ordenamento jurídico que se direciona à manutenção da atividade produtiva das empresas é a da preservação dos empregos, admitindo como meios de recuperação judicial, a ‘redução salarial, compensação de horários e redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva’ (art. 50, inciso VIII, da Lei n. 11.101/05).Para tanto, exige-se, ainda, a ‘exposição das causas concretas da situação patrimonial’ da empresa e ‘das razões da crise econômico-financeira’ (inciso II, do art. 51), além da ‘demonstração de sua viabilidade econômica’ (inciso II, do art. 53), dentre diversos outros requisitos, sendo relevante destacar que a dispensa coletiva de empregados, em respeito ao art. 7º, I, da Constituição, não está relacionada como um meio de recuperação da empresa (vide art. 50).Como se vê, a ordem jurídica não autoriza concluir que os modos de solução de conflitos trabalhistas possam ser utilizados como instrumentos de meras reduções dos direitos dos trabalhadores, sendo relevante realçar os fundamentos que lhe são próprios, conforme acima destacado: a) fixar parâmetros específicos para efetivação, em concreto, dos preceitos normativos de caráter genérico referentes aos valores humanísticos afirmados na experiência histórica; b) melhorar, progressivamente, as condições sociais e econômicas do trabalhador.”[vii]. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/17/medidas-governo-coronavirus-trabalho.htm[viii]. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/16/guedes-diz-que-se-todos-ficarem-em-casa-pais-entra-em-colapso.htm

O machismo nosso de cada dia na suposta polêmica de Michelle Bolsonaro

Artigo publicado originalmente no site da revista Carta Capital, no dia 15 de março de 2020. ***** Exploração da vida privada de Michelle Bolsonaro contribui apenas para a disseminação do machismo que já é estrutural em nossa sociedade Recentemente foi veiculada a notícia de que Michelle Bolsonaro estaria traindo o marido com Osmar Terra. Uma das reportagens veiculada no site Brasil 247 refere: “Ela chegou, inclusive, a viajar sozinha pelo país com Osmar Terra, o que seria o principal motivo de sua queda”. Sozinha? Mas não viajamos todas (e todos) sempre sozinhos, mesmo quando outras pessoas conhecidas nos acompanham? Ela não estava acompanhada do ministro? E ele? Viaja sozinho também? Ou será que ainda estamos vivendo tempos em que mulher deve viajar acompanhada… do marido, do filho, dos pais, de alguma espécie de tutor, fiador de sua moralidade? Pior de tudo é ver homens e mulheres que se dizem de esquerda comemorar, repassando à exaustão mensagens sobre a suposta traição que, vamos combinar, caso tenha ocorrido, simplesmente não nos interessa. As florestas da Amazônia estão sendo negociadas; um navio com minério da Vale (de novo a Vale!) está afundando na costa do Maranhão, prestes a iniciar mais um terrível desastre ambiental. O INSS não atende as pessoas que, dependentes de “benefícios” previdenciários, pernoitam em filas imensas. Escolas estão sendo militarizadas. O desemprego não cai. A informalidade escraviza. O dólar segue alto. Os casos de feminicídio só aumentam. Não há evolução nas investigações sobre a morte de Marielle. Até hoje ninguém sabe quem foi o responsável pela cocaína apreendida em avião presidencial. O presidente chama pessoas para um ato contra o parlamento, mas… estamos preocupados em discutir a vida amorosa de Michelle Bolsonaro. Michelle é uma mulher. Não importa que seja casada com alguém que para quem é melhor que o filho “morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí”, alguém para quem existem mulheres que “merecem” ser estupradas e podem ser chamadas de vagabunda. Não importa. A vida pessoal de Michelle apenas a ela pertence e se não compreendermos isso, não podemos falar em superação do modelo patriarcal e misógino que retroalimenta a sociedade do capital. Compreender que simplesmente não é mais possível usar o machismo como arma política de reprodução de sujeição é uma lição urgente, inclusive para quem se diz crítico da sociedade atual. Não há mulher alguma, ao menos da geração que compartilho, cuja vida sexual não tenha sido já utlizada, em algum momento, como argumento de repreensão moral e política. Não há mulher da minha geração que já não tenha sido repreendida ou de algum modo “lembrada” de que os abusos que porventura sofreu no casamento, no ambiente de trabalho ou no espaço público são consequências do seu comportamento. São, portanto, culpa sua. Seguiremos reproduzindo essa mesma lógica? O discurso que “incrimina” Michelle por um suposto caso extraconjugal é nojento. Perpetua a “caça às bruxas” que persegue as mulheres desde o século XV, como ensina Silvia Federici, pensadora italiana em “O Calibã e a Bruxa” (Tradução Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2018). Superar esse machismo estrutural depende de uma atitude diária e constante de refutar qualquer comportamento que o reproduza. Podemos e devemos fazer críticas ao atual governo, mas não conseguiremos instaurar uma discussão que nos conduza a mudanças, se insistirmos em cometer os mesmos erros daqueles que professam o conservadorismo machista. Nossos corpos nos pertencem! É preciso compreender que essa é já uma proposição revolucionária, pois o sistema social em que vivemos utiliza corpos como mercadorias. E domina também nossas mentes. Na época das eleições, muitos revelaram espanto diante da constatação de que, dentre os eleitores do discurso violento que nunca escondeu seu desejo de eliminação da população pobre, negra e LGBTI, bem como da sujeição das mulheres, estivessem justamente pessoas negras, pobres, mulheres[1]. É preciso voltar a estudar Marx[2], Althusser[3], Gramsci[4]. Eles insistem em revelar que a ideologia é a principal arma do capital. E que ela se reproduz desde antes do nosso nascimento, em praticamente todas as instâncias sociais, criando um pensamento hegemônico que nos convida, mesmo que de modo inconsciente, à identificação com padrões que tantas vezes sequer nos representam. Com padrões de conduta social que nos assujeitam ou eliminam. Dizer que menina usa rosa e menino veste azul é parte disso. Usar a intimidade de uma mulher para tentar criar um fato político, também. No Mês da Mulher, em que nos convoca a reconhecer o longo caminho que ainda precisamos percorrer para viver em uma sociedade na qual todas as pessoas convivam com igualdade e respeito, é essencial perceber que não haverá avanços significativos, estruturais, enquanto não reconhecermos o “machismo nosso de cada dia”[5] e, sobretudo, sua íntima imbricação com a ideologia do capital. ***** [1] Um estudo sobre os eleitores do atual presidente identifica, dentre eles. “Femininas e “bolsogatas”, mulheres “jovens, faixa etária dos 20 a 30 anos, sem filhos ou com filhos pequenos, com diploma em áreas diversas, atuam no mercado em diferentes profissões”, independentes financeiramente, bem como “mães de direita”, mulheres entre 30 a 50 anos, de classe média baixa, para as quais “gays, lésbicas, bi e transexuais deveriam “viver entre os seus””. Leia na íntegra. [2] [3] [4] Leia aqui. [5] Expressão usada pela colega e amiga Gabriela Lenz de Lacerda, de que aqui me aproprio. ***** VALDETE SOUTO SEVEROÉ Presidenta da AJD - Associação Juízes para a Democracia. Diretora e Professora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS; Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e Juíza do Trabalho.

Entre o pânico e o descaso, a imbecilidade!

Artigo publicado originalmente no Blog do Frederico Vasconcelos, do jornal Folha de S.Paulo, no dia 16 de março de 2020. ***** O que é desconhecido sempre nos assusta. Especialmente quando se trata de um vírus, com capacidade letal, para o qual ainda não temos vacina. Natural, portanto, que muitas pessoas neguem a gravidade da pandemia e que, inclusive, ajam em sentido exatamente contrário ao recomendado: saíam as ruas, debochem das medidas de prevenção. Essas pessoas, de certo modo, refletem a mesma histeria coletiva daquelas que se encerram em um quarto e estocam alimentos, preocupando-se apenas consigo mesmas, enquanto exigem que seus empregados sigam trabalhando para servi-los. Entre o pânico e o descaso, o que mais assusta, porém, é a imbecilidade de quem, ciente da gravidade da doença e tendo o dever de agir para prevenir a disseminação e proteger a população que o elegeu, adota conduta absolutamente irresponsável. Na América Latina, enquanto praticamente todos os demais países adotaram medidas de prevenção, suspenderam aulas ou restringiram o trânsito de pessoas em rodoviárias e aeroportos, no Brasil o presidente saiu às ruas domingo cumprimentando e fazendo selfies, mesmo sabendo que pelo menos 11 pessoas da comitiva de sua última viagem aos EUA estão infectadas. A histeria coletiva que pode levar tanto ao pânico quanto ao descaso é melhor evitada quando as autoridades demonstram serenidade e preocupação com a adoção de medidas de prevenção. Afinal, estamos falando de uma doença que para as pessoas com condições precárias de saúde ou com mais de 80 anos pode atingir uma taxa de mortalidade de até 20%. Não é pouca coisa. Estamos falando de um país em que faltam vagas em leitos hospitalares, especialmente no inverno, mesmo sem pandemia. Um país que contingenciou os gastos com saúde por 20 anos e que, portanto, tem hoje menos capacidade de atendimento do que tinha há dois anos. Um país desgovernado. É urgente a adoção de medidas simples, como a distribuição gratuita de álcool gel e a suspensão das atividades escolares ou que de algum modo gerem aglomeração de pessoas, e de medidas estruturais, como a revogação da Emenda Constitucional 95, que promoveu corte orçamentário, além de um pesado investimento em saúde e em distribuição de renda aos miseráveis. Subestimar um vírus que pode ser letal não é apenas infantilidade ou maldade. É crime de responsabilidade, que atinge toda a população brasileira.

O coronavírus e a democracia adoecida

Artigo publicado originalmente no site do jornal O Estado de São Paulo no dia 13 de março de 2020. ***** Os sinais de abandono de práticas democráticas em nosso país estão cada vez mais claros. Está em curso uma política de desrespeito a nossa soberania, bem representada pela fala de Bolsonaro, quando afirma concordar com a deportação sumária de brasileiros que tenham ingressado ilegalmente nos EUA; pela agenda de legislações que destroem direitos; pela inércia em relação à apuração de assassinatos como o de Marielle; pelo descaso com a pandemia mundial. Em comunicado oficial, o presidente esquece suas funções e pede apoio, em lugar de indicar as medidas a serem tomadas para conter a disseminação do vírus. Mas não há espanto. Há uma espécie de anestesia, de adoecimento coletivo. Em lugar da indignação, o silenciamento que decorre da perseguição a quem publica opinião ou artigo com críticas ao governo, a quem julga com base na Constituição. Em lugar da ação, a censura às universidades, à imprensa, às artes. É nesse estado de adoecimento social que o Brasil se defrontará com o coronavírus. O sucateamento do serviço de saúde, os escassos investimentos em ciência e tecnologia e a absoluta ausência de políticas públicas de distribuição de renda potencializarão a disseminação da doença. Como proteger quem vive na rua? Como evitar que os doze milhões de desempregados e os cinco milhões de desalentados paguem com a vida a não-política que vem sendo praticada em nosso país? Quem ignora propositadamente direitos sociais, aposta no caos e atua para promovê-lo, não tem condições de agir em um quadro tão adverso. O coronavírus talvez não mate mais do que a fome, a miséria e até mesmo a violência de gênero no Brasil, mas sem dúvida evidencia ainda mais o adoecimento de nossa democracia, a inércia de nossas instituições e a urgência por mudanças estruturais profundas. ***** Valdete Souto Severo é presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD)    

O juiz garantista?

Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 4 de março de 2020. ***** A Constituição Federal de 1988 inaugurou um panorama calcado na maior proteção do ser humano frente às ingerências do Estado, operando uma virada copérnica quanto ao catálogo dos direitos fundamentais. A título de exemplo, para não pecar no vício da prolixidade que infelizmente persegue esse articulista, tem-se que a matéria passou a ser tratada logo no início do texto constitucional pelo legislador constituinte originário de 1988, ao passo que em experiências anteriores o trato do tema se dava ao final, talvez por se colocar em patamar de desimportância ou nítido nominalismo o plexo de valores mais intrínsecos do ser humano pelo próprio Estado. Tal aspecto é revelador da fixação do compromisso de todos os poderes quanto à densificação/concreção dos direitos e garantias fundamentais e, no caso do Poder Judiciário, da atribuição da missão institucional de proteção do ser humano frente ao arbítrio estatal. No processo penal, a incidência de direitos essenciais como a presunção da inocência, devido processo legal, vedação a tratamento cruel ou degradante, entre outros, torna ainda mais impositiva a obrigação de o membro do Poder Judiciário atuar como verdadeiro tutor das regras do jogo e da plena eficácia dos direitos fundamentais, como fator de atribuição de legitimidade de uma eventual intervenção do Estado no bem maior da liberdade individual. O sistema acusatório encontra-se fincado na dicção do art. 129, inciso I, da Constituição Federal, dispositivo esse recentemente concretizado por meio do art. 3º-A, do Código de Processo Penal, após o advento da Lei nº 13.694/19. A junção do referido sistema com a normatividade do princípio da presunção da inocência resultariam na atribuição da cargas probatórias ao órgão acusatório, fixando-lhe a tarefa/ônus de comprovar os elementos da sua hipótese acusatória. E, quando não existente base probatória suficientemente apta para a afirmação da responsabilidade criminal do réu, não se exigiria maior carga de fundamentação, mesmo porque a sua inocência é presumida, não sendo necessária maior digressão para sua afirmação. Embora tudo isso pareça ser uma obviedade, posto que decorrente da própria interpretação do plexo de valores trazidos pela ordem constitucional vigente, o estado real das coisas é demonstrativo da existência de uma sociedade que clama por punição a qualquer custo. E, transgredindo a sua concepção de instância contra-majoritária, não raras vezes o membro do Poder Judiciário inspira-se nas vozes das ruas (o canto da sereia de Homero), a admitir voluntarismos que desvirtuam a sua missão institucional, culminando numa inversão de valores que resulta na demonização do juiz que segue a Constituição Federal e as leis vigentes, como se tal agente político fosse um entrave para o clímax do gozo da punição clamada pelo corpo social. No afã de punir a qualquer custo, o julgador incorpora o personagem Dredd dos quadrinhos, aglutinando as funções de investigar, acusar e julgar, num claro exemplo de sistema pós-acusatório tão bem mencionado por GLOECKNER (GLOECKNER, 2018, p. 24). Na dúvida, não simplesmente absolve – deixando de aplicar o princípio da presunção da inocência como regra de julgamento – mas persegue uma verdade e uma vontade construída no seu psiquê, rompendo com toda a liturgia que um sistema que adota a separação de funções fixa, incorporando-se à arena processual como se jogador fosse e não como árbitro (ROSA; LOPES JUNIOR). O juiz garantista, por sua vez, ainda preocupado com a integridade do texto constitucional e o sistema de proteção inaugurado como decisão política fundamental, optaria por cumprir as regras vigentes, sem protagonismo, sem holofotes, sem anseios de satisfação do sentimento majoritário populacional. Observador da produção da prova, quando viesse a se deparar com uma acusação infundada, sem ressonância probatória para a submissão do cidadão a uma reprimenda penal, não deveria se envergonhar de absolver, sendo que poucas palavras deveria externar para tanto, já que não precisaria fundamentar exaustivamente a respeito da inocência da pessoa. Entretanto, como diz o culto professor Lênio Streck, aplicar a Constituição nos dias atuais é um ato revolucionário. Diante de uma sociedade que clama por mais e mais punição, a iniciativa de cumprir o manto de valores plasmado no texto constitucional, através de decisão de cunho libertário, principalmente quando emanada por um juiz que se alinhe a um perfil garantista, acaba por exigir, paradoxalmente, maior carga de fundamentação, tanto como forma de autodefesa institucional por parte de quem assina o decisório, como meio de, através do constrangimento argumentativo, apontar o caos que se insere o estado de coisas atual e reafirmar os valores da ordem constitucional vigente. A primeira razão justificadora para a emanação de uma fundamentação exauriente libertária diz respeito a uma instintiva autoproteção do agente emanador do decisório. É que, diante do pensamento majoritário relativizador das garantias fundamentais, a culminar, vez por outra, na admissão de fundamentação condenatória com base probatória rarefeita, o juiz garantista, numa atividade parecida como um exorcismo argumentativo, aponta exaustivamente as razões para uma absolvição ou soltura do cidadão, de modo a deixar inquestionável que exerce a sua função com base nas leis vigentes e não por mera preferência pessoal ou filosófica. Quanto a isso, não é demais lembrar que julgadores com perfil mais garantista já foram alvo de questionamentos em instâncias correcionais em razão do conteúdo libertário das suas decisões. É sempre importante citar os casos dos juízes Roberto Luiz Corciolli Filho e Kenarik Boujikian, os quais responderam a processos administrativos disciplinares fundados em inconformismos derivados do perfil decisório, sendo que o primeiro chegou a ser punido com sanção disciplinar de censura pelo Órgão Especial do TJSP, enquanto que a segunda, após ter sido também censurada pelo mesmo órgão, felizmente teve revertida a punição pelo Conselho Nacional de Justiça. Superada a vertente da autoproteção, o agir revolucionário citado por Streck impõe que o juiz garantista aponte as falhas da atuação dos órgãos da persecução penal, tanto como forma de apresentar uma decisão de perfil argumentativo constrangedor ao excesso de arbítrio estatal, assim como para reafirmar exaustivamente a plena eficácia dos direitos fundamentais que devem ser observados na justiça criminal. Na missão contramajoritária de garantir a integridade do texto constitucional, o excesso argumentativo, ainda que em sede de decisão de cunho libertário, expõe as mazelas de um sistema pós-acusatório ou neoinquisitorial, reajustando os ponteiros da bússola protetiva que sempre deveria guiar a prestação jurisdicional. Trata-se de postura comprometida com os valores entrincheirados em 05 de outubro de 1988, quando promulgada a Constituição Federal atualmente vigente. Ao Poder Judiciário o legislador constituinte originário fixou prerrogativas (art. 95) visando a sua independência funcional para fins de concretizar o texto constitucional e não para desfigurá-lo, de modo que, se o que inspira o julgador é o sentimento majoritário, a via legítima de deixar a toga e aventurar-se pelo Poder Legislativo ou Executivo é mais adequada para tanto. Oxalá um dia não se necessite mais fundamentar exaustivamente decisões que ofertem a devida eficácia aos direitos fundamentais, pois isso se constituirá como um atestado de que finalmente internalizou-se o espírito emancipatório que inspirou a sua edição. Enquanto isso não acontece, o paradoxo permanece. ***** GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal [recurso eletrônico] : uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro, volume 1 / Ricardo Jacobsen Gloeckner. -1. ed. – Florianópolis [SC] : Tirant Lo Blanch, 2018. MORAIS DA ROSA, Alexandre; LOPES JR., Aury. “Afinal, se no jogo não há juiz, não há jogada fora da lei”, disponível em https://www.conjur.com.br/2019-jul-05/limite-penal-jogo-nao-juiz-nao-jogada-fora-lei, acesso em 02/03/2020. STRECK, Lênio. Entrevista disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/581764-aplicar-a-constituicao-hoje-e-um-ato-revolucionario-entrevista-com-lenio-streck, acesso em 02/03/2020. ***** Matheus Martins Moitinho é juiz de direito do TJBA, membro da Associação Juízes pela Democracia e IBADPP.

Juízes e juízas sob censura

Artigo publicado no site da revista Carta Capital no dia 02 de março de 2020. ***** Recente investida de tribunal contra magistrado que se posicionou crítico à incitação ao golpe de Presidente é mais um episódio de censura Em nota com o título “AJD contra a censura”, a Associação Juízes para a Democracia denunciou recentemente a atuação seletiva do Conselho Nacional de Justiça, ao atuar de ofício contra juízas e juízes que expõem um pensamento crítico sobre o atual governo. No último dia 27 de fevereiro, o Corregedor Nacional de Justiça Ministro Humberto Martins instaurou, de ofício, pedido de providências para que a Corregedoria do TRT da 4ª Região apure manifestação na rede social Facebook realizada pelo juiz do Trabalho Rui Ferreira dos Santos. A postagem manifestava a inconformidade desse cidadão brasileiro com a convocação feita pelo Presidente, para um ato “fora Maia e Alcolumbre” no próximo dia 15/3. Um ato de provocação à ruptura da ordem constitucional. O print da postagem apontada como “político-partidária” foi feito apenas 45 minutos após a sua publicação. O ministro Humberto Martins referiu que a conduta “em tese”, é vedada “pela Constituição Federal, em seu artigo 95, parágrafo único, III”[1], na “Lei Orgânica da Magistratura, artigo 36, III”[2], bem como no “artigo 4º, II[3], da Resolução CNJ n. 305/2019”. A postagem teve o seguinte teor: “O que está acontecendo neste país? O Presidente miliciano da república- vergonha da história do Brasil – convoca o povo (o gado bolsomínio) para manifestação contra o Congresso Nacional e nenhum dos presidentes da Câmara e Senado Federal pede a cassação desse energúmeno? Tampouco o Presidente do STF se manifesta com a veemência necessária? Estariam acovardados? Têm medo do capitão-do-mato? E a OAB está esperando o quê para pedir o impeachment desse asno do bozo? Estão esperando os tanques nas ruas? Onde estão os senadores e deputados federais que não pedem o impeachment desse miliciano? E o impeachment não é só do Presidente miliciano é do vice também. E com novas eleições, de imediato! Aí, sim, estaremos vivendo um Estado Democrático de Direito e numa democracia consolidada!!! Será? Sonho…” O juiz, portanto, não se refere – de forma crítica ou entusiasta – a partido político algum. É bom lembrar que o atual Presidente está, inclusive, sem partido político. Também não faz críticas a processos ou decisões judiciais. Sua crítica é dirigida ao parlamento, que silenciou de modo vergonhoso diante do pedido do Presidente para que as pessoas participem de ato contra a sua existência. Fez crítica também ao STF, que na condição de guardião da Constituição, nada fez diante da atitude adotada pelo Presidente, essa sim passível de configurar crime de responsabilidade, na forma do art. 85 da Constituição, como aliás já referiu inclusive o Ministro Celso de Mello. Note-se que mesmo sem discutir o conteúdo da Resolução 305/2019, que extrapola os termos da Constituição e até mesmo da Lei Orgânica da Magistratura, sabidamente gestada durante o período de ditadura civil-militar, é um desafio “enquadrar” o desabafo contra o silêncio do parlamento e do STF como ato que “demonstre atuação em atividade político-partidária”. As hipóteses do artigo da resolução, referido pelo ministro, não podem ser aplicadas isoladamente, pois a se compreender de tal modo, estar-se-á admitindo a completa impossibilidade de atuação política por parte das juízas e juízes. Política no sentido amplo, como o conjunto de princípios e de opiniões, o envolvimento em tudo o que interessa à pólis. Vedar qualquer manifestação de apoio ou crítica pública a “candidato, lideranças políticas ou partidos políticos”, sem que se esteja no âmbito de uma atuação político-partidária, nos termos literais da Constituição, implica vedar praticamente toda a manifestação pública. Implica, portanto, suprimir o direito à livre manifestação do pensamento. Implica censura. A postagem acima reproduzida qualificou o Presidente de energúmeno, o que também não pode ser considerado ofensivo, na medida em que a palavra já foi utilizada pelo próprio Jair Bolsonaro, para qualificar Paulo Freire, alguém que nunca fez comentários racistas, machistas e LGBTfóbicos, nem atribuiu as queimadas da Amazônia a Leonardo di Caprio ou referiu que livros didáticos tem muita coisa escrita. E que também nunca disse que não há fome em nosso país, nem houve ditadura. O Presidente da República de um país que se autodeclara Democrático de Direito e que tem como poderes da União, “independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” (Art. 2º, CR) chama a população brasileira para protestar contra o funcionamento do Legislativo; o STF e o parlamento não reagem, e quem está, em tese, cometendo um ilícito é o cidadão que manifesta sua indignação com tais fatos. Também não há como afirmar que a postagem indignada contenha inverdades. Diante da notícia de que o Presidente está veiculando vídeo convidando as pessoas para um ato contra o parlamento, o ministro presidente do STF limitou-se a fazer uma nota em que sequer cita diretamente tal vídeo. Refere que “é preciso paz para construir o futuro”. Apenas isso. Maia e Alcolumbre, alguns dias depois da divulgação da veiculação do vídeo, declararam que “vão trabalhar para reduzir a tensão” e que o Brasil “precisa garantir segurança jurídica para que o setor privado possa investir”. É imensa a violência simbólica da normalização de atos como esses que, através de supostas mensagens de paz, omitem que estamos enfrentando uma verdadeira guerra ideológica, de discurso e de atos. Uma violência tão grande quanto aquela que vem sendo praticada pelo atual governo, quando ofende, distorce, debocha, destrói. Essa normalização da perversidade acaba autorizando um caminhar para experiências cotidianas cada vez mais bárbaras. É estrada direta para o autoritarismo. A questão central, quando percebemos o uso do Conselho Nacional de Justiça como mecanismo de silenciamento da magistratura nacional, é que não há como instaurar uma lógica de violência real e simbólica sem que exista um número significativo de pessoas que atuem, em diferentes posições sociais, para reproduzir e espalhar tal violência. No caso do CNJ, não é apenas a atuação de juízes como censores de juízes que chama a atenção. Também a omissão em relação a condutas de magistrados que têm abertamente defendido o atual governo, revela uma atuação seletiva, que poderia, “em tese”, ser considerada “político-partidária”, caso o termo fosse compreendido como manifestação “em apoio” público a “candidato, lideranças políticas ou partidos políticos”, como refere a Resolução 305. O juiz que determinou ou impediu provas e interferiu nos rumos de investigação policial, e que foi premiado com cargo de ministro, teve os processos contra si arquivados pelo CNJ. O juiz que andou em carro oficial e participou de atividade política ao lado de Bolsonaro, só teve sua conduta questionada pelo CNJ após denúncia formulada pela OAB. Nada foi dito ou feito também, em relação à desembargadora que aproveitou uma sessão do Tribunal para fazer apologia a Bolsonaro. É sintomático que haja uma atuação direcionada apenas contra quem revela capacidade de indignação diante de um governo abertamente hostil aos indígenas, aos moradores das periferias, às mulheres, à classe que vive do trabalho e mesmo à natureza; um governo que aposta na necropolítica e que investe contra os poderes instituídos. Como a AJD referiu em sua nota, todas as juízas e juízes, como seres políticos, têm o direito fundamental de manifestar-se publicamente, contra ou a favor de fatos que interferem e interessam a quem vive em sociedade. É fundamental, em um sistema democrático, defender esse direito à manifestação de pensamento de modo radical. O que se vê, entretanto, é que a perseguição, que não deveria ocorrer de modo algum, é ainda seletiva, e por vezes tão eficiente a ponto de determinar a investigação sobre fato que ainda nem ocorreu. O Brasil está assistindo à deterioração diária de um pacto democrático firmado com tanto sacrifício e tão bem representado pelo texto da Constituição vigente. Calar, em momentos como esse, implica compactuar. Pior do que calar, perseguir quem tem a coragem que a muitos falta, em momentos como esse, significa ser cúmplice. Não temos o direito de ser ingênuos. Há um flerte cada vez mais flagrante e decisivo com a ruptura completa da ordem democrática. E bem sabemos que a democracia, mesmo com seus limites e falhas, é a forma de organização que permite pensar criticamente, expor o pensamento e agir para alterar a realidade. É por isso que nenhuma forma de censura serve à democracia, especialmente aquela em que são os próprios juízes a agir como algozes. ***** [1] Art. 95, Parágrafo único: Aos juízes é vedado: III – dedicar-se à atividade político-partidária. [2] Art. 36 – É vedado ao magistrado: III – manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério. [3] Art. 4º Constituem condutas vedadas aos magistrados nas redes sociais: II – emitir opinião que demonstre atuação em atividade político-partidária ou manifestar-se em apoio ou crítica públicos a candidato, lideranças políticas ou partidos políticos. ***** VALDETE SOUTO SEVERO - É Presidenta da AJD - Associação Juízes para a Democracia. Diretora e Professora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS; Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e Juíza do Trabalho.

O STF em 2020: matar no peito e fazer um golaço ou chutar a CF?

Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 27 de fevereiro de 2020. ***** “Se avexe não. Amanhã pode acontecer tudo, inclusive nada”.(Letra da música “A natureza das coisas”, de Accioly Neto) Só os poetas conseguem traduzir sentimentos e emoções inalcançáveis aos homens normais. Esse trecho citado acima é da música “A natureza das coisas”, de Accioly Neto e mais conhecida na interpretação do forrozeiro Flávio José, uma das vozes mais marcantes do forró, depois de Luiz Gonzaga. Outro trecho dessa bela canção: “Se avexe não. Toda caminhada começa no primeiro passo. A natureza não tem pressa, segue seu compasso. Inexoravelmente chega lá”. Então, para falar sobre o que será do STF em 2020, nada mais apropriado do que imaginar que tudo pode acontecer, inclusive nada. De outro lado, toda caminhada começa no primeiro passo e, inexoravelmente, a história segue seu compasso, sem pressa. A história? A história “é um carro alegre, cheio de um povo contente, que atropela indiferente todo aquele que a negue”, como já trovaram Pablo Milanés e Chico Buarque na “Cancion por la Unidade de Latino América”. Também impossível imaginar o STF em 2020 sem considerar o que ele foi nos últimos anos, desde aquela fatídica profecia de um certo senador da República: “com o Supremo, com tudo”! O resultado, como se sabe, foi o impeachement sem crime político da ex-presidenta Dilma Roussef, com determinante apoio da questionada “Operação Lavajato”, a ascensão de grupos políticos que por diversas eleições não convenciam os eleitores através do voto e o início do desmonte das políticas sociais e do Estado Democrático de Direito. Ainda no início desse processo, quando instado, o STF negou seu papel de guardião da Constituição ou omitiu-se, permitindo que a Constituição fosse vilipendiada e ultrajada. O resultado dessa primeira fase, como a história precocemente escancarou, foi a submissão do STF aos caprichos e interesses pessoais de um grupo de procuradores e juízes endeusados pela grande mídia e apresentados como os redentores e construtores de uma sociedade livre da corrupção, falsamente julgada e condenada como a grande causadora das desigualdades sociais e da pobreza no Brasil. Evidente que o STF teve papel fundamental na construção da narrativa anticorrupção, fácil de ser absorvida pela maioria esmagadora da população, mas o papel da grande mídia foi determinante para que multidões fossem às ruas e conferissem legitimidade ao golpe que destituiu uma presidenta honesta e democraticamente eleita. Em consequência, “com o Supremo, com tudo”, incluindo agora a denominada “República de Curitiba” e o Tribunal Superior Eleitoral, através de eleições influenciadas por métodos não muito convencionais e mais uma vez com o papel decisivo da grande mídia, o país elegeu um presidente de extrema direita e que está colocando em jogo o futuro de uma das nações que mais prometiam para os próximos anos com suas políticas de inclusão social, de distribuição de renda e fortalecimento da democracia na América Latina. Pois bem, retornando ao nosso tema, o que podemos esperar do STF para este ano de 2020? Em primeiro, como se sabe, o Supremo terá duas fases ainda este ano: a conclusão da gestão do Ministro Dias Toffoli em setembro e o início da gestão do novo presidente. Mas até que um novo presidente assuma, teremos alguns meses com julgamentos extremamente importantes para o mundo jurídico e para o Estado Democrático de Direito. Dentre esses temas, logo em 04 de março, o julgamento da ADI 5828, movida pela Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis (Cobrapol), do Mato Grosso do Sul, contra Decreto Estadual nº 14.827, de 28 de agosto de 2017, que restringiu o direito de reunião e manifestação na área denominada “Parque dos Poderes”, espaço territorial onde está concentrado o centro político administrativo do Estado de Mato Grosso do Sul. Essa ADI já conta com liminar deferida pelo Ministro Dias Toffoli e espera-se que o STF, no seu papel de guardião da Constituição, freie essa tentativa de violação ao artigo 5º, XVI, da CF. Em 11 de março será a vez do julgamento da ADI 5543, movida pelo Partido Socialista Brasileiro contra o ato do Ministério da Saúde que dispõe sobre a “inaptidão temporária para indivíduos do sexo masculino que tiveram relações sexuais com outros indivíduos do mesmo sexo realizarem doação sanguínea nos 12 (doze) meses subsequentes a tal prática”. O Relator dessa ADI é o Ministro Edson Fachin e já conta com o voto favorável dos Ministros Barroso, Rosa Weber e Fux. Aguarda-se o voto do Ministro Gilmar Mendes. Imagine-se, portanto, que para a Portaria atacada, o fato de manter relações sexuais com pessoa do mesmo sexo torna essa pessoa impura e contaminada. É incompreensível que tal possa acontecer sob a égide de uma Constituição que tem como garantia fundamental exatamente a igualdade de todos perante a lei e sem distinção de qualquer natureza, bem como diante de um ordenamento jurídico que admite a união estável e também o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O Supremo, portanto, é chamado, mais uma vez a barrar essa agressão à Constituição. Também estarão na pauta do Supremo para o primeiro semestre de 2020 matérias econômicas, trabalhistas, tributárias, reforma do ensino médio, dentre outros. Existem dois julgamentos, no entanto, que estão ainda sem pauta, mas que são determinantes para a afirmação dos direitos fundamentais e da democracia: o habeas corpus em que o ex-presidente Lula questiona a imparcialidade do ex-juiz Sérgio Moro em seu julgamento e o Recurso Extraordinário 635.659, que tem como Relator o Ministro Gilmar Mendes, cujo objeto é a declaração de inconstitucionalidade do artigo 28, da lei nº 11.343/06, a lei de drogas. Além desses dois casos emblemáticos, o Supremo precisa dar uma resposta à sociedade e ao Congresso Nacional acerca do Juiz de Garantias. Para o segundo caso, evidente que a resposta não pode ser outra: o artigo 28 é claramente inconstitucional. A consequência desse reconhecimento implicará, certamente, no primeiro momento, em grande debate hermenêutico por juízes e tribunais acerca do alcance da decisão e da interpretação da lei 11.343/06 após o expurgo do artigo 28. Para o primeiro caso, o reconhecimento da parcialidade do ex-juiz, agora ministro do governo que tem um presidente eleito, dentre outras razões, por que o candidato condenado pelo então juiz foi impedido de concorrer, implicará no restabelecimento de um julgamento justo para o ex-presidente Lula, como tem defendido o Ministro Gilmar Mendes. A segunda fase do STF em 2020 será a eleição do novo presidente. A seguir a tradição, o que deve acontecer, deverá ser eleito o Ministro Luiz Fux. Afirmou o eminente Ministro, em sua rápida biografia no site da UERJ, que em seus julgamentos primeiro busca uma solução justa e depois a roupagem jurídica para aquela decisão. O que se questiona, no entanto, é qual o critério ou parâmetro de sua excelência para definir o que seja uma solução justa? Evidente que esse “justo” só pode ser o resultado de seu lugar no mundo e de seu horizonte histórico, visto que o eminente Ministro não é um extraterrestre, mas um ser humano com todas as imperfeições, pré-conceitos e pré-juízos inerentes à espécie humana. Comenta-se, por fim, que seria do Ministro Luiz Fux a emblemática frase de que para certo julgamento, ele “mataria no peito”. Muito bem. Mais do que isso, espera-se que o eminente Ministro, enquanto futuro presidente da mais alta corte de Justiça do Brasil, além de “matar no peito”, também drible os arroubos de autoritarismo que batem à porta do país, dê um toque de classe para o Estado de Direito, avance para receber a bola na frente e, ao invés de chutar a Constituição, faça dela o “manto sagrado” de seus julgamentos, desloque o goleiro do fascismo, chute forte no canto esquerdo e faça um golaço em favor da Justiça!! ***** Gerivaldo Neiva é juiz de Direito no TJBA e membro da Associação Juízes para a Democracia            

Sobre a greve dos petroleiros

"Ociosa, mas alargada de preocupações sexuais, a vida do senhor de engenho tornou-se uma vida de rede. [...]Da rede não precisava afastar-se o escravocrata para dar suas ordens aos negros.." (Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala). "Esse é o momento em que, tanto do ponto de vista prático, quanto ideológico e teórico, as classes dominantes e dirigentes, em escala mundial, apostam (e ganham) no retrocesso, no recuo das conquistas sociais e econômicas das classes subalternas." (L.G.Belluzzo, 2013:33). O cenário de abertura é o da Casa Grande de uma sociedade escravocrata e patriarcal, organizada a partir de uma economia primário-exportadora, em que os direitos dos homens e das mulheres eram sonegados à grande maioria (COSTA, 1998). As citações de dois pensadores do Brasil, de períodos distintos, escolhidas como epígrafes, auxiliam a que se desvendem os imensos desafios ainda hoje colocados à caminhada de construção de uma sociedade menos desigual e mais justa, com normas de proteção social que assegurem um patamar civilizatório eficaz e que contribuam para concretizar os princípios da dignidade humana e do valor social do trabalho, estruturantes da Declaração Universal dos Direitos Humanos, incorporados pela Constituição de 1988. A Abolição livrou o país de seus inconvenientes. Quanto aos negros, abandonou-os à própria sorte (COSTA, 1998). Deles não se ocuparam as elites e o Estado (BIAVASCHI, 2007). Assim, a relação entre escravo e senhor acabou, formalmente, por culminar no homem “livre”, sem terem sido superadas as condições instituintes da dominação e sujeição. A existência de dominantes e dominados marcou a ferro e fogo nossa estrutura social, tendo na desmoralização do trabalho uma de suas expressões (COSTA, 1998: 15). Vivem-se resquícios dessa herança: seja nas dificuldades para democratizar o acesso aos bens essenciais à dignidade humana como terra, renda, moradia, saúde e emprego decente; seja nas dificuldades para incluir os trabalhadores domésticos no campo de abrangência da CLT; seja na exploração do trabalho em condições análogas à de escravo e nos obstáculos à aprovação do Projeto de Emenda Constitucional, PEC 438/01, que autorizou a expropriação da propriedade quando evidenciada essa condição e, agora, nas reais dificuldades para regulamentá-la; seja na intolerância de parte expressiva da sociedade às políticas sociais redutoras das desigualdades que, aliás, a cada dia se aprofundam; seja no rechaço e nas formas de discriminação que, volta e meia, afloram com violência, tornando vivo os refrões do Rappa (BIAVASCHI, 2007)²: A carne mais barata no mercado/É a carne negra, ou Todo o camburão tem um pouco de navio negreiro. Essas considerações são relevantes quando, em meio à greve dos petroleiros, e em cenário de desconstituição da coisa pública e da tela de proteção ao trabalho, duas decisões monocráticas de Ministros das Cortes superiores, um do Tribunal Superior do Trabalho, TST, e outro do Superior Tribunal Federal, STF, em sede liminar, atentam contra um direito duramente conquistado e incorporado como social fundamental pela Constituição da República de 1988: o direito de greve. E sendo a greve assegurada como direito social fundamental, conquista dos trabalhadores, as recentes decisões dos Ministros Ives Gandra Filho, TST, e Dias Toffoli, STF, violam preceitos fundamentais. Mas, no descompasso entre essas decisões e a realidade da vida e apesar das duras ameaças dirigidas aos petroleiros, a greve se expande, atingindo cerca de 121 unidades da PETROBRAS. Trata-se de greve legítima, apoiada por notas de solidariedade de várias entidades de representação do mundo do trabalho, juristas, pesquisadores, enfim, e que reivindica, pasmem, o cumprimento de Acordo Coletivo de Trabalho ajustado em 2019 com a PETROBRAS e suas empresas, entre elas a Araucária Nitrogenados, homologado pelo Tribunal Superior do Trabalho, TST, onde o processo de negociação foi mediado. Nesse Acordo Coletivo, em uma de suas cláusulas (cláusula 26 do Acordo envolvendo a Araucária e cláusula 41 do Acordo com a PETROBRAS), a PETROBRAS e suas empresas assumiram o compromisso de não efetivarem despedidas em massa sem discussão com as entidades sindicais representativas dos trabalhadores. O estopim da greve foi justo a ameaça de despedida de cerca de mil trabalhadores da Fábrica de Fertilizantes Nitrogenados do Paraná, Fafen-PR, em desrespeito ao acordado em instrumento legal chancelado pelo próprio TST. Assim, a legitimidade dessa greve que, em suas pautas prevalentes, inclui o cumprimento de tal cláusula, é incontestável. Ademais, greve é direito social constitucionalmente assegurado. Daí a inconstitucionalidade da decisão monocrática do Ministro Ives Gandra do TST que, de forma inusitada e, ela sim, abusiva, decretou a abusividade de uma greve em sede liminar, deslegitimando o que fora ajustado em processo negocial perante o próprio TST e, dessa forma, fragilizando tanto o instituto da negociação coletiva, quanto a tela pública de proteção social ao trabalho, bem como o papel das instituições do trabalho. Ademais, ações punitivas e antisindicais, além de aprofundarem o enfrentamento e acirrarem o conflito, podem impor sérias consequências à sociedade. Fere o sendo jurídico também a decisão do Presidente do STF, Ministro Dias Toffoli que, igualmente em sede liminar, acolheu pedido da PETROBRAS, restituindo a validade de outra liminar do mesmo Ministro Ives Gandra, vencida por decisão colegiada da sessão competente do TST, a SDC, e determinando que os sindicatos mantenham nas unidades de produção 90% dos petroleiros em atividade. E assim, ao limitar a greve a 10% dos trabalhadores, acabou por violar preceito fundamental, negando o próprio direito que a Constituição assegura. Vivem-se tempos de regresso das conquistas sociais. Realidade que se insere em um projeto maior em andamento que busca retirar o Estado da condição de coordenador do desenvolvimento econômico com inclusão social, ferindo a soberania nacional, os direitos sociais conquistados, a democracia e atingindo importante patrimônio dos brasileiros: a PETROBRAS. Referências bibliográficas BIAVASCHI, Magda Barros. O Direito do Trabalho no Brasil 1930-1932. São Paulo, LTr, 2007.BELLUZZO, Luiz Gonzaga. O Capital e suas metamorfoses. São Paulo: UNESP, 2013.COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à República. 4. ed. São Paulo: Unesp, 1998. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. 25.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.ROSSI, P.; MELLO, G. “Choque recessivo e a maior crise da história: A economia brasileira em marcha à ré. Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica” - IE/UNICAMP. Nota do Cecon, nº. 1, Abril de 2017. ***** ¹Desembargadora aposentada do TRT4; pesquisadora no CESIT-IE UNICAMP e do CLACSO, professora convidada na pós-graduação do IE-UNICAMP e professora permanente do doutorado em Ciências Sociais do IFCH-UNICAMP.²O Rappa é uma banda de rock-reggae, que nasceu na baixada fluminense, fruto do trabalho da FASE/RJ.

“Parasita” e o Judiciário

Artigo publicado no site Justificando no dia 10 de fevereiro de 2020. ***** Não vou falar neste espaço sobre as recentes mentiras e os impropérios lançados pelo ministro Paulo Guedes que chamou os servidores públicos de parasitas. O “Parasita” que menciono é o incrível filme coreano, ganhador de cerca de duas dezenas de prêmios, sendo o último o Óscar, de melhor filme, roteiro original, diretor e filme internacional, que a tantos impactou. Há muitos gatilhos nesta obra que desencadeiam significantes e significados, que devem variar de pessoa para pessoa. O que me fez retomar a memória, que sei que faz parte da vivência de toda pessoa que esteve em uma prisão ou em um ambiente que tenha presença de presos (como um fórum) foi o personagem invisível: o cheiro. Fico me perguntando: qual seria o cheiro que o diretor Bong Joon Ho colocaria nas salas de cinema, se isto fosse factível, para que o público sentisse pelo olfato o que os personagens do filme experimentam? Na primeira cena que esta questão vem à tona em “Parasita”, minha cabeça voou para o longínquo dia que fui pela primeira vez em uma penitenciária. Foi na década de 80, quando era estudante da Faculdade de Direito da PUC. Fui para um estágio voluntário, em razão de encaminhamento feito pelo professor José Gaspar Gonzaga Franceschini, que nos relatou em sala de aula os problemas da deficiência da assistência judiciária. Portões abrindo e fechando atrás de mim e quanto mais adentrava ao presídio mais sentia o forte cheiro sufocante que nunca tinha vivido e que voltei a sentir em todas as oportunidades que estive em prisões. Não sei bem descrever. Um cheiro que sufoca, incomoda, dá um pouco de náusea. Talvez venha da mistura de mofo, suor, cigarro, azedo da comida estragada, insalubridade, esgoto, falta de banho, banho rápido e gelado (a amiga Sonia Drigo, do Grupo “Mulheres Encarceradas”, me diz que em dia de visita o cheiro muda um pouco, pois mistura com a fragrância de shampoos). É odor que fica impregnado nas pessoas para quem as promessas constitucionais nunca foram cumpridas. Cheiro de abandono. Tive a sensação que este cheiro da prisão deve ser o mesmo cheiro sufocante do porão que uma das famílias do filme “Parasita” reside, onde não há sol, não há luz, não há direitos e que contrasta com a casa dos endinheirados, que é ampla, clara, iluminada, envidraçada, ainda que tenha um porão, cuja existência desconhecem . O “cheiro” é o fio condutor que aparece em vários momentos chaves do filme e costura o mar de violência estrutural daquela sociedade. O patriarca endinheirado sente na pessoa de seu motorista; o patriarca pobre percebe, já que o patrão mostrou gestualmente o incômodo pelo odor; a mulher rica sente igualmente; a criança rica fala que os quatros pobres têm o mesmo cheiro; os empregados ouvem os patrões falando com repugnância do cheiro ruim; os pobres pensam em se livrar do cheiro; usam estratagemas para mudar os cheiros de cada qual, mas a filha tira as ilusões do pai: É o cheiro do porão e não há como escapar enquanto estiverem lá. E finalmente, num momento emblemático, é na cara nauseante, pelo cheiro exalado, que os últimos gatilhos disparam no filme. Bem, mas o que o cheiro tem a ver com o Judiciário? Simbolicamente, o cheiro tira a dignidade das pessoas. É como se o cheiro fosse um não reconhecimento da qualidade do humano que existe no outro ser. Em relação ao sistema prisional, retira-se de circulação a pessoa que incomoda socialmente, que cheira, mas é certo que eles voltarão um dia . Constata-se uma resistência por parte do Judiciário para que as pessoas retornem. Certamente muitos juízes gostariam que essas pessoas ficassem eternamente no porão, que os muros fossem eternos e que os cheiros não ocupassem os lugares que frequentam. Talvez isto explique porque o Tribunal de Justiça de São Paulo negou, em 2019, 60% dos pedidos de prisão domiciliar para mulheres grávidas ou com filhos de até 12 anos, em que pese haver decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Por que será que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o maior de todos, resiste em obedecer uma decisão do STF e a lei 13.769, de 19.12.2018 (que estabelece a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar da mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência e para disciplinar o regime de cumprimento de pena privativa de liberdade de condenadas na mesma situação)? Por primeiro, creio que falta a compreensão do papel do magistrado no Estado Democrático de Direito. O juiz deve ser o instrumento da Constituição na defesa incondicional e na garantia efetiva dos direitos fundamentais da pessoa humana. Ele é responsável para que a Constituição Federal não se torne letra morta. Em suas mãos está a manutenção da higidez constitucional. Um Judiciário só pode se dizer democrático se for capaz de dar as respostas necessárias para o projeto de democracia que o país agasalhou na Constituição Federal de 1988, que tem em sua essencialidade um sistema de direitos fundamentais individuais, coletivos, econômicos, sociais e culturais, acentuado nos princípios da igualdade e justiça social. Sem esta compreensão o juiz substitui os valores constitucionais pelos pessoais e , nesta medida, acha que pode descumprir uma ordem judicial, o que jamais seria tolerada se fosse a sua. A regra: decisão judicial se cumpre, não serve para este tipo de juiz, que desrespeita a ordem democrática. Fui juíza e desembargadora do TJSP por pouco mais de 30 anos e ouvi no ambiente forense, inúmeras vezes, que os juízes não tinham qualquer a responsabilidade pelo sistema prisional, que era afeta apenas ao Executivo. Mas é certo que o Supremo Tribunal Federal (STF), alguns Tribunais e juízes , reconhecem em várias decisões que o Judiciário tem responsabilidade sobre o sistema carcerário. Destaco apenas uma decisão da mais alta corte do país, que segundos os dados da Secretaria de Administração Penitenciária ( SAP), não está sendo cumprida, devidamente. Pois bem. Em 20 de fevereiro de 2018, no HC coletivo 143.641, o STF, levando em conta, dentre outros, a sua decisão na ADPF 347, que reconhece que o sistema carcerário caracteriza-se por verdadeiro estado de coisas inconstitucional; o panorama do encarceramento de mulheres e a repercussão na vida dos filhos, concedeu prisão domiciliar para presas provisórias, mediante requisitos: que estivessem grávidas ou tivessem filhos de até 12 anos ou com deficiência; que não tivessem praticado crime com violência ou grave ameaça; ou contra os próprios filhos ou que não fosse adequada a medida, em situações “excepcionalíssimas”. Lamentavelmente, ouvir desembargadores afirmarem que fariam de tudo para não cumprir esta decisão do STF. Como se pode constatar, a excepcionalidade foi e é forma usada pelos magistrados para não dar cumprimento à ordem exarada pelo STF. Em audiência pública realizada na Câmara dos Deputados, em 15.8.2019, convocada pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, a Dra. Fabiane Pereira de Oliveira, assessora no STF, em análise pessoal, apontou os equívocos mais corriqueiros na aplicação do HC coletivo: sentença condenatória, não transitada em julgado; tráfico de entorpecente; tráfico em estabelecimento prisional ou na própria residência; não comprovação de vínculo empregatício ( como se emprego formal fosse uma possibilidade para todos); juntada de certidão de nascimento; não comprovação da indispensabilidade da mãe para os cuidados da criança; prova de aptidão para exercer a maternidade; invocação da reincidência. Passados oito meses, uma nova decisão do STF esclareceu que a decisão deve ser aplicada igualmente para presas por tráfico de drogas e mães condenadas sem condenação definitiva. Os dados oriundos da Secretaria Estadual da Administração Penitenciária (SAP) indicam que entre a data da decisão do STF e o dia 30 de janeiro de 2020, 3.957 pedidos foram julgados e 60,4% (2.390 casos) foram negados pelo Judiciário Paulista. Neste mundo existem muitos espaços, o da casa grande e senzala; a mansão e a periferia; a casa rica e o seu porão, que o próprio morador desconhece. O porão, a prisão e o cheiro dividem os dois mundos. A aversão ao cheiro, transposta em uma sentença, é a exteriorização dos preconceitos e a ausência de alteridade no julgamento e o não saber da democracia. Mas qual o cheiro do Judiciário? ***** Kenarik Boujikian, desembargadora TJSP ( 1989/2019); cofundadora da Associação Juizes para a Democracia e da ABJD

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